O assunto
que agora me proponho falar – a introdução da indústria de serralharia
mecânica em Aveiro – foi tema dado pelo meu falecido amigo, o
António
Correia Saraiva, que várias vezes insistiu para que eu o
desenvolvesse, por ser do seu conhecimento que eu acompanhei aquele
facto desde o princípio. Prometi-lhe, pouco antes do seu falecimento,
que o faria, mas só agora se proporcionou oportunidade para tal.
Ao Saraiva
mostrava, antes de as publicar, as minhas Achegas, não só para
que ele me desse a opinião, mas também para que ele corrigisse algum
erro que nelas existisse.
O Saraiva
era muito inteligente, tinha excelente memória, tendo ainda o condão de
não fazer juízos precipitados; e só dava a sua opinião – não só no caso
das Achegas (de que venho a tratar), como também nos assuntos da
sua vida particular e nos da sua vida profissional – depois de ter
amadurecido, no seu pensamento, os prós e os contras daquilo que lhe foi
proposto: este seu feitio tornava-o um introvertido. Pertenceu a uma
plêiade de estudantes (que frequentaram
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a Escola Primária Superior (curso que foi extinto) e, a seguir, a Escola
Comercial e Industrial Fernando Caldeira, donde saíram muitos e
bons profissionais, nas carreiras que cada um escolheu para governar a
sua vida; e, entre os seus colegas – e mestres – era considerado dos
mais sabedores – se não, mesmo, o melhor de todos.
Entre essa
rapaziada, na qual figuravam algumas raparigas (as primeiras que
frequentaram a Escola Comercial) – todos mais novos do que eu cerca de
dez anos – tive dos meus melhores amigos, a maior parte deles – e tantos
são – já não pertencem ao número dos vivos.
Que
descansem em Paz!
Deixemos,
porém, estas recordações e vamos ao que importa, para satisfazer a
promessa feita ao Saraiva.
A indústria
de serralheira mecânica e de fundição de metais é relativamente nova em
Aveiro.
Noutro
tempo, havia a de serralharia civil, de cujas oficinas saíam trabalhos
muito perfeitos, como gradeamentos, portões e outros trabalhos do mesmo
género, que honravam, pela sua perfeição, os operários aveirenses
daquela indústria.
Dos meus
tempos de rapaz, lembro-me das
Oficinas dos Trindades,
na Rua Direita (hoje, dos Combatentes da Grande Guerra) que se
especializaram em reparações de bicicletas e, mais tarde, foram os
agentes-gerais das da marca TRIUMPH, de grande fama e consideradas as
melhores que havia no mercado.
Aquando da
abertura da Nova Avenida (hoje, do Dr. Lourenço Peixinho), transferiram
os Trindades as suas instalações para esta artéria citadina, onde, além
das oficinas, montaram os seus «stands» de vendas, não só das bicicletas
atrás citadas, como, também, das motocicletas TRIUMPH, que foram das
primeiras que apareceram no nosso mercado. Mais tarde, mas não por muito
tempo, também foram vendedores de automóveis.
E, por estar
a falar desta firma, acode-me ao pensamento o caso passado com um juiz
do nosso Tribunal que, aos Trindades, foi pedir para admitirem ao seu
serviço, como aprendiz, mas sujeito ao regime estabelecido para os
restantes operários da mesma categoria, um filho seu que, andando a
estudar no Liceu, não conseguia progredir nos estudos, por a eles não se
dedicar – segundo dizia o pai –, devido à permanente brincadeira em que
andava. Os Trindades, contrariados e fazendo ver ao juiz que aquela não
seria a profissão indicada para castigar o filho de um magistrado, por
ser muito suja, lá aceitaram o rapazito, somente para satisfazerem o
desejo do pai; porém, tratavam-no um pouco melhor que aos seus colegas,
evitando que o pequeno fizesse trabalhos violentos e sujos. Entretanto,
o juiz começou a visitar, assiduamente, as oficinas, para apreciar o
comportamento do filho; e, notando a diferença de tratamento, exigiu,
como o já havia feito aquando do seu pedido de admissão, que
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fosse tratado tal-qualmente como os seus colegas, incluindo puxar o carro
de mão pelas ruas para fazer os transportes dos materiais e das obras.
Isto – dizia
o juiz – para sua vergonha; regime que o rapazito cumpriu. Em regime
igual, e, também pelas mesmas razões, a pedido de pais das minhas
relações, tive eu de admitir, na Cerâmica Aveirense, vários rapazes,
sendo certo que, na maior parte – se não na totalidade –, os resultados
destas experiências foram satisfatórios, pois, ao retomarem os estudos,
conseguiram satisfazer os pais, por cumprirem os seus deveres escolares.
Um dos que
andaram a transportar telhas ao ombro (não havia, então, elevadores) foi
o meu sobrinho João que, ainda hoje, reconhece quanto lhe foi útil tal
treino.
Mas... eu
estava a lembrar as oficinas de serralharia civil que, em Aveiro, havia
nos meus tempos de rapaz. É o que passarei a fazer já a seguir.
Além das
oficinas dos Trindades, havia, também, na Rua Direita, a do
Carlos
Picado que, mais tarde, passou para o Largo da Apresentação, para um
edifício que havia no local daquele onde hoje estão os Correios.
Na Rua dos
Ferradores (hoje, do Tenente Resende), havia a do Manuel Ferreira
(que chegou a ser proprietário de quase metade dos prédios daquela Rua)
e que se dedicava, especialmente, ao fabrico e ao comércio de móveis de
ferro (camas, lavatórios, etc.), que era a mobília que, então, usavam as
pessoas de menores recursos, mas que já podiam comprar esse mobiliário,
pois, grande parte tinha como cama a tarimba e, para lavatório, dispunha
de uma bacia de barro posta em cima de uma cadeira ou de um caixote.
Até a água
era preciso ir buscá-la à fonte, em canecos (ou cântaros), pelo que era
necessário poupá-la, pelo trabalho e perda de tempo que ocasionava o seu
transporte para casa.
Igualmente
me lembro da Oficina dos
Gamelas que, sendo
especialmente de segeiro (reparação de carros: seges), também fazia algum
serviço de serralharia, principalmente de serralharia artística –
chamemos-lhe assim – para o que dispunha de muita habilidade.
Além destas oficinas – consideradas das
grandes, por terem pessoal ao seu serviço –, havia muitas outras, em
regime familiar, isto é, em que trabalham o seu proprietário e um filho,
ou um rapaz seu vizinho, para tocar ao fole da forja e malhar.
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Quando era
necessário fazerem-se reparações em máquinas ou motores das poucas
indústrias que por cá havia, ou tinham de montar-se novas indústrias,
recorria-se às oficinas do Porto ou de Lisboa, que para cá deslocavam os
seus operários, alguns dos quais, ou porque beberam água da bica do meio
da Fonte dos Arcos, ou por qualquer outra circunstância, por cá casaram
e por aqui ficaram, e bons e dedicados aveirenses se fizeram.
Estou a
lembrar-me, entre outros, do Américo Teixeira, que veio dirigir a
montagem da «Fábrica da Lixa» – que, fundada em Soza pelo senhor Brito,
foi transferida para Aveiro, muito ampliada e aperfeiçoada no seu
fabrico, com a entrada dos capitalistas António e João Ferreira
(este casou com a filha do primeiro dos referidos capitalistas).
Lembro-me do Augusto Lopes que, de Lisboa, veio colaborar na
montagem da seca artificial de bacalhau, no Cais de S. Roque, e da qual
eram gerentes Albino Pinto de Miranda e
Henrique Ratto
(respeitemos a grafia que ele usava, e fazia questão disso), que
resolveu – terminada que foi a sua colaboração na seca – ficar por cá
como «chauffeur» de praça; e lembro-me, sobretudo, do
Mestre
Jorge Pestana, que veio dirigir as montagens dos motores dos navios
da Empresa de Pesca de Aveiro, fornecidos pela Metalúrgica Alentejana,
de Lisboa, de que era proprietário Carlos Roeder – e que, quando
este montou os Estaleiros São Jacinto, passou a ser sócio desta firma, e
seu administrador, visto que, de há muitos anos, ele era amigo dedicado
e colaborador daquele industrial.
O facto de
não haver em Aveiro oficinas de serralharia mecânica era um
quebra-cabeças para os industriais que, normalmente, tinham ao seu
serviço operários que, pela prática adquirida e pela habilidade de que
dispunham, iam safando as «enrascadas» que surgiam no dia-a-dia; porém,
quando a avaria era grande, ou fora do habitual, esses serralheiros não
só não tinham os conhecimentos necessários para a resolver, como nem
sequer tinham ferramentas para o efeito; era, então, que havia que
recorrer às oficinas especializadas de Lisboa e do Porto, o que
ocasionava demoras e muitas despesas. Veremos, a seguir, como foi
ultrapassada esta dificuldade.
Em 1920 ou
1921, veio a Aveiro, por conta de uma oficina de Lisboa, dirigir um
trabalho de reparações na Junta da Barra, Miguel Ferreira de Oliveira,
que se apercebeu das necessidades que Aveiro e a sua região tinham da
existência de uma oficina capaz de prestar assistência técnica às
indústrias já montadas e àquelas que se previa que fossem montadas em
curto prazo; e tomou
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João Pereira Campos,
proprietário da Cerâmica Aveirense do Canal de S. Roque,
industrial de muita visão e grande coragem – como o havia demonstrado em
vários negócios em que se tinha metido – e convenceu-o a montarem uma
oficina de serralharia mecânica, com fundição de ferro e outros metais,
tanto mais que tinha facilidade de deslocar do Porto oficiais
competentes que servissem de base ao início da oficina e de guia aos
aprendizes que, certamente, apareceriam para aprender estes novos
ofícios; e tinha a possibilidade de escolher bons operários, porque um
seu cunhado – que também viria – era mestre fundidor numa grande
oficina e tinha muitas e boas relações na classe operária de serralharia
mecânica.
João Campos
entusiasmou-se com a ideia – era, na verdade, uma nova indústria que
fazia falta e que seria, certamente, um novo passo para o progresso de
Aveiro – e, depois de conversar com dois dos seus amigos muito queridos,
Manuel Pratt e Manes Nogueira, e, com eles, ponderar os
prós e os contras, resolveu fundar, com estes e o Oliveira, a Empresa
Metalúrgica de Aveiro, Ld.ª, com sede e escritórios no Cais de S. Roque,
junto à sua fábrica, pois ele seria o administrador e o capitalista,
visto que nenhum dos seus sócios tinha dinheiro para empatar numa
empresa daquela categoria.
Logo que
isto ficou resolvido, João Campos deu ordem ao Oliveira para ele
comprar as máquinas e ferramentas indispensáveis para o início da
oficina e que assegurasse a vinda para Aveiro do pessoal necessário para
acudir aos trabalhos que surgissem, oficina que seria montada num
armazém que, do Cais do Alboi, dava para o Largo dos Santos Mártires
(hoje, Largo do Conselheiro Queiroz), a título provisório e enquanto
ele, João Campos, não construísse um edifício apropriado, no terreno
que, por troca, com a Empresa do Sal, adquiriu junto da sua fábrica,
onde tinha existido a fábrica dos Adubos da Ria de A veiro (cuja
matéria-prima de base era o caranguejo), transferida, pouco tempo antes,
para S. Jacinto e para o local onde hoje estão os Estaleiros.
Durante a
montagem da oficina começaram a aparecer futuros clientes a fazerem as
suas consultas sobre trabalhos de que tinham necessidade; e, logo que a
mesma começou a funcionar com o pessoal vindo do Porto (torneiros e
serralheiros), foram admitidos aprendizes (rapazes saídos das escolas
com a quarta classe) e, ainda, alguns serralheiros civis que desejavam
aperfeiçoar os seus conhecimentos, pessoal que, depois de uns anos de
prática, serviu de base às oficinas que se montaram, não só na cidade,
como, também, nos arredores.
O Oliveira,
apesar de saber do seu ofício – como era notório e o demonstrou –, era
um lunático e mau chefe de oficinas; orçamentos feitos por ele –
era ele quem os tinha de fazer – era certo e sabido que davam prejuízo,
acontecendo, muitas vezes, que João Campos, ao ver esses orçamentos, lhe
chamava a atenção – o que ele, dificilmente, aceitava – para o que lhe
parecia ter sido mal calculado, quer no que diz respeito a «mão de
obra», quer ao
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tempo necessário para executar o trabalho, tanto mais que – segundo ele
já havia acrescentado tempo para imprevistos. E ficava muito admirado ao
ver os resultados finais, ele que tinha baseado os seus cálculos em
tabelas publicadas em livros da especialidade…
Houve duas
obras em que ele se meteu e que deram enorme prejuízo: a reparação da
máquina de vapor da Empresa Electro-Oceânica (a empresa que tomou sobre
si o encargo de fornecer luz eléctrica a Aveiro) e a reparação da draga
da Junta Autónoma da Barra de Aveiro.
Uma e outra,
não só por ultrapassarem, em muito, quer o orçamento dado, quer o tempo
previsto para o seu acabamento, ocasionaram dificuldades enormes na
liquidação e arrumo destes assuntos.
Os prejuízos
acumulavam-se e iam sendo liquidados à custa dos abonos de João Campos.
Com a morte
deste, em 1928, a firma cessou a sua actividade.
Ainda em
vida de João Pereira Campos (que morreu repentinamente),
João André
da Paula Dias (que se dedicava à lavoura e ao fornecimento de barro
às fábricas de telhas e tijolos dos arredores do Porto), pressionado por
seus filhos, que desejavam ser, na vida, mais alguma coisa do que
simples lavradores, resolveu montar uma serralharia mecânica.
De
princípio, e porque eles desconheciam tal indústria e se tinham de
sujeitar ao pessoal que conseguiram desviar doutros lados, tiveram
enormes prejuízos, que abalaram muito a fortuna do «ti» João Dias e lhe
causaram muitos dissabores e dificuldades. Estas foram superadas com os
negócios que o filho mais velho – o José – ia fazendo (ele que de ferros
nada sabia, mas que tinha tendência natural para comerciante) com a
ajuda de amigos.
Mais tarde,
com o auxílio de Carlos Roeder, que os orientou e aconselhou, e com o
concurso de seu genro, David Melo, que foi tirar o curso na Escola
Industrial Infante D. Henrique, do Porto, e que à oficina se dedicou de
corpo e alma, aplicando, na sua direcção técnica, os conhecimentos
práticos que já tinha e os teóricos que ainda aprendeu naquela Escola, e
os que obteve nos livros da especialidade, a oficina progrediu e o seu
proprietário resolveu dar sociedade aos filhos, criando a firma Paula
Dias & Filhos, Ld.ª, que atingiu o valor industrial que todos nós
conhecemos.
David Melo,
durante o seu curso industrial de 4 anos, frequentou as aulas nocturnas
– algumas das quais acabavam à meia-noite –, pelo que, todos os
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dias, depois dos serviços prestados nas oficinas, se deslocava de
comboio ao Porto.
Aqui, tinha
de levantar-se às 5 horas da manhã, para tomar o comboio de regresso a
Aveiro.
Pela mesma
altura da fundação desta firma, e devido ao desenvolvimento do uso de
motocicletas e de automóveis, alguns operários serralheiros que tinham umas
luzes de mecânica e alguma habilidade para as usarem, montaram diversas
oficinas, que se dedicavam, especialmente, a fazer reparações naqueles
veículos, mas que, algumas vezes, trabalhavam para as fábricas acudindo
a avarias mais simples de resolver.
Manuel
Bóia, que começou com uma «oficineca»
destas, a pouco e pouco foi criando
o nome que lhe ia permitindo o desenvolvimento da sua actividade
profissional.
Com a ajuda
de amigos, que, reconhecendo nele, não só qualidades de trabalho, como
de seriedade e de administrador, depois de andar instalado por diversos
locais (alguns cedidos gratuitamente por verdadeiros amigos), atreveu-se
a montar, na Rua das Barcas, uma oficina já de certa categoria, na qual
se faziam, além de reparações de motocicletas e automóveis, as de
algumas máquinas industriais, dedicando-se, a sério, ao fabrico de
aparelhagem destinada aos navios de pesca, indústria que, então,
começava a desenvolver-se entre nós.
Também as
máquinas das indústrias de mármore e das madeiras o entusiasmaram.
Chamou,
então, para junto de si e para com ele colaborarem, os seus irmãos
Domingos, Paulo e Carlos, respectivamente serralheiro, forjador e
torneiro, que tinham estado ao serviço das oficinas da Metalúrgica de
Aveiro.
A
Empresa Cerâmica Vouga, com fábrica de telhas e tijolos, a certa
altura, montou uma serralharia mecânica, com fundição de metais, não só
para apoio à sua fábrica, como, também, para trabalhar para fora. Pouco
tempo depois, verificando a falta de rentabilidade, desistiu desta
indústria.
Dois
funcionários que, naquela Empresa, estavam ao serviço da metalurgia (os
irmãos Oliveira) resolveram montar, na Estrada Nova do Canal, a firma
METALO-MECÂNICA, dedicando-se ao fabrico de peças de fundição de artigos
de série que, em pouco tempo, tiveram grande aceitação em todos os
mercados do País.
Mais tarde,
viraram-se para a construção e montagem de aparelhos marítimos.
Continuarei porque há mais que contar. |