Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Introdução da serralharia mecânica

O assunto que agora me proponho falar – a introdução da indústria de serralharia mecânica em Aveiro – foi tema dado pelo meu falecido amigo, o António Correia Saraiva, que várias vezes insistiu para que eu o desenvolvesse, por ser do seu conhecimento que eu acompanhei aquele facto desde o princípio. Prometi-lhe, pouco antes do seu falecimento, que o faria, mas só agora se proporcionou oportunidade para tal.

Ao Saraiva mostrava, antes de as publicar, as minhas Achegas, não só para que ele me desse a opinião, mas também para que ele corrigisse algum erro que nelas existisse.

O Saraiva era muito inteligente, tinha excelente memória, tendo ainda o condão de não fazer juízos precipitados; e só dava a sua opinião – não só no caso das Achegas (de que venho a tratar), como também nos assuntos da sua vida particular e nos da sua vida profissional – depois de ter amadurecido, no seu pensamento, os prós e os contras daquilo que lhe foi proposto: este seu feitio tornava-o um introvertido. Pertenceu a uma plêiade de estudantes (que frequentaram / 165 / a Escola Primária Superior (curso que foi extinto) e, a seguir, a Escola Comercial e Industrial Fernando Caldeira, donde saíram muitos e bons profissionais, nas carreiras que cada um escolheu para governar a sua vida; e, entre os seus colegas – e mestres – era considerado dos mais sabedores – se não, mesmo, o melhor de todos.

Entre essa rapaziada, na qual figuravam algumas raparigas (as primeiras que frequentaram a Escola Comercial) – todos mais novos do que eu cerca de dez anos – tive dos meus melhores amigos, a maior parte deles – e tantos são – já não pertencem ao número dos vivos.

Que descansem em Paz!

Deixemos, porém, estas recordações e vamos ao que importa, para satisfazer a promessa feita ao Saraiva.

A indústria de serralheira mecânica e de fundição de metais é relativamente nova em Aveiro.

Noutro tempo, havia a de serralharia civil, de cujas oficinas saíam trabalhos muito perfeitos, como gradeamentos, portões e outros trabalhos do mesmo género, que honravam, pela sua perfeição, os operários aveirenses daquela indústria.

Dos meus tempos de rapaz, lembro-me das Oficinas dos Trindades, na Rua Direita (hoje, dos Combatentes da Grande Guerra) que se especializaram em reparações de bicicletas e, mais tarde, foram os agentes-gerais das da marca TRIUMPH, de grande fama e consideradas as melhores que havia no mercado.

Aquando da abertura da Nova Avenida (hoje, do Dr. Lourenço Peixinho), transferiram os Trindades as suas instalações para esta artéria citadina, onde, além das oficinas, montaram os seus «stands» de vendas, não só das bicicletas atrás citadas, como, também, das motocicletas TRIUMPH, que foram das primeiras que apareceram no nosso mercado. Mais tarde, mas não por muito tempo, também foram vendedores de automóveis.

E, por estar a falar desta firma, acode-me ao pensamento o caso passado com um juiz do nosso Tribunal que, aos Trindades, foi pedir para admitirem ao seu serviço, como aprendiz, mas sujeito ao regime estabelecido para os restantes operários da mesma categoria, um filho seu que, andando a estudar no Liceu, não conseguia progredir nos estudos, por a eles não se dedicar – segundo dizia o pai –, devido à permanente brincadeira em que andava. Os Trindades, contrariados e fazendo ver ao juiz que aquela não seria a profissão indicada para castigar o filho de um magistrado, por ser muito suja, lá aceitaram o rapazito, somente para satisfazerem o desejo do pai; porém, tratavam-no um pouco melhor que aos seus colegas, evitando que o pequeno fizesse trabalhos violentos e sujos. Entretanto, o juiz começou a visitar, assiduamente, as oficinas, para apreciar o comportamento do filho; e, notando a diferença de tratamento, exigiu, como o já havia feito aquando do seu pedido de admissão, que / 166 / ele fosse tratado tal-qualmente como os seus colegas, incluindo puxar o carro de mão pelas ruas para fazer os transportes dos materiais e das obras.

Isto – dizia o juiz – para sua vergonha; regime que o rapazito cumpriu. Em regime igual, e, também pelas mesmas razões, a pedido de pais das minhas relações, tive eu de admitir, na Cerâmica Aveirense, vários rapazes, sendo certo que, na maior parte – se não na totalidade –, os resultados destas experiências foram satisfatórios, pois, ao retomarem os estudos, conseguiram satisfazer os pais, por cumprirem os seus deveres escolares.

Um dos que andaram a transportar telhas ao ombro (não havia, então, elevadores) foi o meu sobrinho João que, ainda hoje, reconhece quanto lhe foi útil tal treino.

Mas... eu estava a lembrar as oficinas de serralharia civil que, em Aveiro, havia nos meus tempos de rapaz. É o que passarei a fazer já a seguir.

Além das oficinas dos Trindades, havia, também, na Rua Direita, a do Carlos Picado que, mais tarde, passou para o Largo da Apresentação, para um edifício que havia no local daquele onde hoje estão os Correios.

Na Rua dos Ferradores (hoje, do Tenente Resende), havia a do Manuel Ferreira (que chegou a ser proprietário de quase metade dos prédios daquela Rua) e que se dedicava, especialmente, ao fabrico e ao comércio de móveis de ferro (camas, lavatórios, etc.), que era a mobília que, então, usavam as pessoas de menores recursos, mas que já podiam comprar esse mobiliário, pois, grande parte tinha como cama a tarimba e, para lavatório, dispunha de uma bacia de barro posta em cima de uma cadeira ou de um caixote.

Até a água era preciso ir buscá-la à fonte, em canecos (ou cântaros), pelo que era necessário poupá-la, pelo trabalho e perda de tempo que ocasionava o seu transporte para casa.

Igualmente me lembro da Oficina dos Gamelas que, sendo especialmente de segeiro (reparação de carros: seges), também fazia algum serviço de serralharia, principalmente de serralharia artística – chamemos-lhe assim – para o que dispunha de muita habilidade.

Além destas oficinas – consideradas das grandes, por terem pessoal ao seu serviço –, havia muitas outras, em regime familiar, isto é, em que trabalham o seu proprietário e um filho, ou um rapaz seu vizinho, para tocar ao fole da forja e malhar. / 167 /

Quando era necessário fazerem-se reparações em máquinas ou motores das poucas indústrias que por cá havia, ou tinham de montar-se novas indústrias, recorria-se às oficinas do Porto ou de Lisboa, que para cá deslocavam os seus operários, alguns dos quais, ou porque beberam água da bica do meio da Fonte dos Arcos, ou por qualquer outra circunstância, por cá casaram e por aqui ficaram, e bons e dedicados aveirenses se fizeram.

Estou a lembrar-me, entre outros, do Américo Teixeira, que veio dirigir a montagem da «Fábrica da Lixa» – que, fundada em Soza pelo senhor Brito, foi transferida para Aveiro, muito ampliada e aperfeiçoada no seu fabrico, com a entrada dos capitalistas António e João Ferreira (este casou com a filha do primeiro dos referidos capitalistas). Lembro-me do Augusto Lopes que, de Lisboa, veio colaborar na montagem da seca artificial de bacalhau, no Cais de S. Roque, e da qual eram gerentes Albino Pinto de Miranda e Henrique Ratto (respeitemos a grafia que ele usava, e fazia questão disso), que resolveu – terminada que foi a sua colaboração na seca – ficar por cá como «chauffeur» de praça; e lembro-me, sobretudo, do Mestre Jorge Pestana, que veio dirigir as montagens dos motores dos navios da Empresa de Pesca de Aveiro, fornecidos pela Metalúrgica Alentejana, de Lisboa, de que era proprietário Carlos Roeder – e que, quando este montou os Estaleiros São Jacinto, passou a ser sócio desta firma, e seu administrador, visto que, de há muitos anos, ele era amigo dedicado e colaborador daquele industrial.

O facto de não haver em Aveiro oficinas de serralharia mecânica era um quebra-cabeças para os industriais que, normalmente, tinham ao seu serviço operários que, pela prática adquirida e pela habilidade de que dispunham, iam safando as «enrascadas» que surgiam no dia-a-dia; porém, quando a avaria era grande, ou fora do habitual, esses serralheiros não só não tinham os conhecimentos necessários para a resolver, como nem sequer tinham ferramentas para o efeito; era, então, que havia que recorrer às oficinas especializadas de Lisboa e do Porto, o que ocasionava demoras e muitas despesas. Veremos, a seguir, como foi ultrapassada esta dificuldade.

Em 1920 ou 1921, veio a Aveiro, por conta de uma oficina de Lisboa, dirigir um trabalho de reparações na Junta da Barra, Miguel Ferreira de Oliveira, que se apercebeu das necessidades que Aveiro e a sua região tinham da existência de uma oficina capaz de prestar assistência técnica às indústrias já montadas e àquelas que se previa que fossem montadas em curto prazo; e tomou / 168 / conhecimento com João Pereira Campos, proprietário da Cerâmica Aveirense do Canal de S. Roque, industrial de muita visão e grande coragem – como o havia demonstrado em vários negócios em que se tinha metido – e convenceu-o a montarem uma oficina de serralharia mecânica, com fundição de ferro e outros metais, tanto mais que tinha facilidade de deslocar do Porto oficiais competentes que servissem de base ao início da oficina e de guia aos aprendizes que, certamente, apareceriam para aprender estes novos ofícios; e tinha a possibilidade de escolher bons operários, porque um seu cunhado – que também viria – era mestre fundidor numa grande oficina e tinha muitas e boas relações na classe operária de serralharia mecânica.

João Campos entusiasmou-se com a ideia – era, na verdade, uma nova indústria que fazia falta e que seria, certamente, um novo passo para o progresso de Aveiro – e, depois de conversar com dois dos seus amigos muito queridos, Manuel Pratt e Manes Nogueira, e, com eles, ponderar os prós e os contras, resolveu fundar, com estes e o Oliveira, a Empresa Metalúrgica de Aveiro, Ld.ª, com sede e escritórios no Cais de S. Roque, junto à sua fábrica, pois ele seria o administrador e o capitalista, visto que nenhum dos seus sócios tinha dinheiro para empatar numa empresa daquela categoria.

Logo que isto ficou resolvido, João Campos deu ordem ao Oliveira para ele comprar as máquinas e ferramentas indispensáveis para o início da oficina e que assegurasse a vinda para Aveiro do pessoal necessário para acudir aos trabalhos que surgissem, oficina que seria montada num armazém que, do Cais do Alboi, dava para o Largo dos Santos Mártires (hoje, Largo do Conselheiro Queiroz), a título provisório e enquanto ele, João Campos, não construísse um edifício apropriado, no terreno que, por troca, com a Empresa do Sal, adquiriu junto da sua fábrica, onde tinha existido a fábrica dos Adubos da Ria de A veiro (cuja matéria-prima de base era o caranguejo), transferida, pouco tempo antes, para S. Jacinto e para o local onde hoje estão os Estaleiros.

Durante a montagem da oficina começaram a aparecer futuros clientes a fazerem as suas consultas sobre trabalhos de que tinham necessidade; e, logo que a mesma começou a funcionar com o pessoal vindo do Porto (torneiros e serralheiros), foram admitidos aprendizes (rapazes saídos das escolas com a quarta classe) e, ainda, alguns serralheiros civis que desejavam aperfeiçoar os seus conhecimentos, pessoal que, depois de uns anos de prática, serviu de base às oficinas que se montaram, não só na cidade, como, também, nos arredores.

O Oliveira, apesar de saber do seu ofício – como era notório e o demonstrou –, era um lunático e mau chefe de oficinas; orçamentos feitos por ele – era ele quem os tinha de fazer – era certo e sabido que davam prejuízo, acontecendo, muitas vezes, que João Campos, ao ver esses orçamentos, lhe chamava a atenção – o que ele, dificilmente, aceitava – para o que lhe parecia ter sido mal calculado, quer no que diz respeito a «mão de obra», quer ao / 169 / tempo necessário para executar o trabalho, tanto mais que – segundo ele já havia acrescentado tempo para imprevistos. E ficava muito admirado ao ver os resultados finais, ele que tinha baseado os seus cálculos em tabelas publicadas em livros da especialidade…

Houve duas obras em que ele se meteu e que deram enorme prejuízo: a reparação da máquina de vapor da Empresa Electro-Oceânica (a empresa que tomou sobre si o encargo de fornecer luz eléctrica a Aveiro) e a reparação da draga da Junta Autónoma da Barra de Aveiro.

Uma e outra, não só por ultrapassarem, em muito, quer o orçamento dado, quer o tempo previsto para o seu acabamento, ocasionaram dificuldades enormes na liquidação e arrumo destes assuntos.

Os prejuízos acumulavam-se e iam sendo liquidados à custa dos abonos de João Campos.

Com a morte deste, em 1928, a firma cessou a sua actividade.

Ainda em vida de João Pereira Campos (que morreu repentinamente), João André da Paula Dias (que se dedicava à lavoura e ao fornecimento de barro às fábricas de telhas e tijolos dos arredores do Porto), pressionado por seus filhos, que desejavam ser, na vida, mais alguma coisa do que simples lavradores, resolveu montar uma serralharia mecânica.

De princípio, e porque eles desconheciam tal indústria e se tinham de sujeitar ao pessoal que conseguiram desviar doutros lados, tiveram enormes prejuízos, que abalaram muito a fortuna do «ti» João Dias e lhe causaram muitos dissabores e dificuldades. Estas foram superadas com os negócios que o filho mais velho – o José – ia fazendo (ele que de ferros nada sabia, mas que tinha tendência natural para comerciante) com a ajuda de amigos.

Mais tarde, com o auxílio de Carlos Roeder, que os orientou e aconselhou, e com o concurso de seu genro, David Melo, que foi tirar o curso na Escola Industrial Infante D. Henrique, do Porto, e que à oficina se dedicou de corpo e alma, aplicando, na sua direcção técnica, os conhecimentos práticos que já tinha e os teóricos que ainda aprendeu naquela Escola, e os que obteve nos livros da especialidade, a oficina progrediu e o seu proprietário resolveu dar sociedade aos filhos, criando a firma Paula Dias & Filhos, Ld.ª, que atingiu o valor industrial que todos nós conhecemos.

David Melo, durante o seu curso industrial de 4 anos, frequentou as aulas nocturnas – algumas das quais acabavam à meia-noite –, pelo que, todos os / 170 / dias, depois dos serviços prestados nas oficinas, se deslocava de comboio ao Porto.

Aqui, tinha de levantar-se às 5 horas da manhã, para tomar o comboio de regresso a Aveiro.

Pela mesma altura da fundação desta firma, e devido ao desenvolvimento do uso de motocicletas e de automóveis, alguns operários serralheiros que tinham umas luzes de mecânica e alguma habilidade para as usarem, montaram diversas oficinas, que se dedicavam, especialmente, a fazer reparações naqueles veículos, mas que, algumas vezes, trabalhavam para as fábricas acudindo a avarias mais simples de resolver.

Manuel Bóia, que começou com uma «oficineca» destas, a pouco e pouco foi criando o nome que lhe ia permitindo o desenvolvimento da sua actividade profissional.

Com a ajuda de amigos, que, reconhecendo nele, não só qualidades de trabalho, como de seriedade e de administrador, depois de andar instalado por diversos locais (alguns cedidos gratuitamente por verdadeiros amigos), atreveu-se a montar, na Rua das Barcas, uma oficina já de certa categoria, na qual se faziam, além de reparações de motocicletas e automóveis, as de algumas máquinas industriais, dedicando-se, a sério, ao fabrico de aparelhagem destinada aos navios de pesca, indústria que, então, começava a desenvolver-se entre nós.

Também as máquinas das indústrias de mármore e das madeiras o entusiasmaram.

Chamou, então, para junto de si e para com ele colaborarem, os seus irmãos Domingos, Paulo e Carlos, respectivamente serralheiro, forjador e torneiro, que tinham estado ao serviço das oficinas da Metalúrgica de Aveiro.

A Empresa Cerâmica Vouga, com fábrica de telhas e tijolos, a certa altura, montou uma serralharia mecânica, com fundição de metais, não só para apoio à sua fábrica, como, também, para trabalhar para fora. Pouco tempo depois, verificando a falta de rentabilidade, desistiu desta indústria.

Dois funcionários que, naquela Empresa, estavam ao serviço da metalurgia (os irmãos Oliveira) resolveram montar, na Estrada Nova do Canal, a firma METALO-MECÂNICA, dedicando-se ao fabrico de peças de fundição de artigos de série que, em pouco tempo, tiveram grande aceitação em todos os mercados do País.

Mais tarde, viraram-se para a construção e montagem de aparelhos marítimos. Continuarei porque há mais que contar.

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