Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Partidas feitas pelos sapateiros

Já, e por mais de uma vez, me referi a artífices sapateiros que, noutros tempos, em Aveiro, tiveram nomeada.

A primeira vez fi-lo, quando, falando da MINA, referi que o Besugo, sapateiro, morador na Rua do Gravito, e exímio em pregar partidas, se ia meter dentro da referida mina, depois de ter propalado que, lá, vivia um urso que à noitinha, e de vez em quando, aparecia à boca da mesma, desde que lhe cheirasse a comida.

Houve, como então contei, quem fosse levar comida para conseguir ver o urso, ou parte dele, comida com a qual o Besugo se regalava em casa, logo que da mina se podia raspar sem ninguém o ver, a coberto da noite.

Ora o Besugo, com os seus colegas de ofício Mofa e Fandunga, moradores, também, no Gravito, formavam um trio especializado em fazer partidas às pessoas que tivessem a infelicidade de lhes caírem nas mãos, pois, se entrassem em qualquer das três oficinas à procura de algo que não fosse da sua especialidade, ou a pedir qualquer informação, era certo e sabido que seriam remetidas para as outras, e, em todas intrujadas.

Dentre as muitas partidas que se contavam terem sido feitas por aquele trio – algumas simples brincadeiras –, destaco uma que sempre considerei atrevida e de mau gosto: convencer uma mulherzinha, de uma das aldeias próximas, que lhes foi perguntar como havia de mandar um telegrama ao marido, que andava a trabalhar fora, a ir acima da ponte de Esgueira e dependurar o / 153 / telegrama – que eles «fizeram» – nos fios que passavam por cima, pois, assim, o telegrama chegava mais depressa ao seu destino…

O Besugo era um homem forte, valentão mas pacato, e com grande descontracção.

Contava-se, dele, a seguinte proeza: Um dia, na Costa Nova, ao tomar banho no mar, uma onda levou-o para o largo, e pregou com ele no enfiamento da corrente. Toda a gente que estava na praia se assustou e gritou, prevendo grande desgraça; porém, o Besugo não se atrapalhou e, virando-se, pôs-se a boiar de costas, deixando-se seguir na corrente, visto que a maré estava na enchente, e, portanto, dirigindo-se para a Barra.

Por todo o areal, da Costa Nova à Barra, se juntou uma grande multidão, que acompanhou a aventura do Besugo, receando o pior. Quando este, tendo conseguido entrar na Barra e arranjar pé, junto do Forte – e estava rodeado por muita gente que, pelo paredão, o havia acompanhado com enorme ansiedade – virou-se para aquela multidão e, serenamente, e como se a sua aventura tivesse sido planeada, disse: – Sempre gostava de saber que tempo demorei da Costa ao Forte, pelo mar.

Outro dos sapateiros, a que já me referi, foi o Zacarias, que morava ao alto da Rua Larga, na oficina do qual o distinto aveirógrafo, e pessoa muito respeitada, José Reinaldo Rangel de Quadros, foi intrujado, quando pretendeu que lhe fosse mostrada uma imagem de Santo Antoninho, que lhe disseram que o Zacarias possuía, sendo certo que este lhe mandou mostrar um objecto muito diferente daquele que ele procurava e que o levou a desabafar, dizendo: – Olhe, seu mestre Zacarias, vocemecê não tem culpa; culpa teve quem cá me mandou.

E quem, com mais de vinte anos, se não recorda, ou não ouviu falar do Eduardo Sapateiro, com oficina na Rua do Rato, e das suas partidas?

Por lá passaram, e foram intrujadas, com maior ou menor diplomacia, pessoas de todas as classes sociais.

Objectos idênticos aos que o Zacarias mandou mostrar ao José Reinaldo, tinha-os ele de vários tamanhos, e mudavam de nome conforme as ocasiões e as circunstâncias: eram máquinas fotográficas, calendários, selins de bicicleta, canários, etc., etc., e, até, livros raros.

Aconteceu que um aluno do nosso Liceu – menino bem que para aqui se havia transferido de um colégio particular, na altura em que, pela primeira vez, funcionou, em Aveiro, o 7.º ano liceal, pretendia adquirir um compêndio de Física, ou de Química (não me lembro bem), da autoria do Dr. Pinto Basto, livro que estava esgotado e que ele já tentara obter na sua terra e nas livrarias de Aveiro que conhecia, sem qualquer resultado.

Queixou-se desta dificuldade aos colegas, e um deles lembrou que podia / 154 / ser que o Eduardo Sapateiro tivesse por lá algum daqueles livros; e explicaram-lhe que aquele indivíduo, além da sua profissão de sapateiro, era, também, alfarrabista.

E como o jovem – que estava há pouco tempo em Aveiro –, mesmo depois das explicações que lhe foram dadas acerca da localização do estabelecimento que lhe havia sido indicado, não sabia onde o mesmo se situava, os colegas ofereceram-se para o acompanhar e o apresentar ao Eduardo Sapateiro, o que fizeram, de seguida.

Chegados que foram à oficina, procederam à apresentação do pretendente ao livro, explicaram as dificuldades em que estava o seu colega e amigo que, para Aveiro tinha vindo há pouco tempo, e pediram-lhe, com empenho, que, se possível, o «desenrascasse».

O ti Eduardo mostrou muito interesse em servir o menino, mas afirmou que o livro que ele tanto empenho tinha em adquirir era dos que raramente apareciam lá pela loja, mas que chamaria a Luísa – pois era ela que lidava mais com os livros – e lhe faria a recomendação necessária para procurar bem, vendo se, por acaso, lá tinha algum que servisse ao interessado.

A ti Luísa, depois de ouvir a recomendação do marido, retirou-se lá para dentro, demorou algum tempo (que aquele aproveitou para conversar com a rapaziada). Logo que ela, de avental tapado, reapareceu na loja, os companheiros foram-se chegando para a porta; e, quando ela destapou o avental e mostrou a série de objectos que nele trazia e perguntou ao rapazote se algum daqueles lhe servia, este, chocado, desatou a chorar... e os seus colegas rasparam-se.

Como estas, muitas e variadas cenas houve por lá. Vejamos mais algumas partidas feitas pelos sapateiros.

O caso passado com um fundidor de sinos, de Braga, é, para mim, dos que demonstram o à-vontade como o Eduardo Sapateiro actuava nas suas brincadeiras. Eu conto:

Em certa altura, realizou-se uma excursão de Aveiro a Braga, a preços muito baratos, mesmo para a época, e o nosso Eduardo Sapateiro também nela participou, o que aconteceu com uma grande parte da população aveirense.

Além das visitas ao Bom Jesus, ao Sameiro e à Sé, tivemos oportunidade de ver e observar várias oficinas de fundição de sinos, indústria que muito interessou / 155 / os excursionistas, pois se tratava de uma actividade que não existia em Aveiro, onde não havia, ainda, oficinas – como hoje há – de fundição de ferro e de metais não ferrosos.

Ora o Eduardo, como não podia deixar de ser, entabulou conversa animada com o proprietário da oficina que visitou e, com o vício que tinha de estar, sempre, a impingir histórias e meter petas, afirmou-lhe que, em Aveiro, havia uma torre, com um carrilhão no qual se podiam tocar variadas músicas; e, como o fabricante dos sinos se mostrasse muito admirado com o que o Eduardo lhe contava (pois nunca ouvira falar em tal), este prontificou-se, no caso de ele estar interessado em ver esse carrilhão, a mostrar-lho, em qualquer altura em que ele passasse por Aveiro. Para tanto, bastava-lhe perguntar, em qualquer ponto da cidade, pelo Eduardo Sapateiro, que toda a gente lhe indicaria a sua morada, e ele se encarregaria de lhe mostrar o referido carrilhão.

O ti Eduardo não mais se lembrou da peta que pregara; porém, o fundidor de Braga é que jamais se esqueceu da oferta que lhe fora feita; e, quando teve oportunidade para isso – e já se tinha passado muito tempo –, deslocou-se a Aveiro, pelo caminho de ferro.

Logo na estação, ao desembarcar, perguntou onde era a morada do Eduardo Sapateiro (que lhe foi indicada e ele encontraria com facilidade).

Disseram-lhe que seguisse sempre em frente, pela Rua do Americano (actual Rua do Comandante Rocha e Cunha, que, em parte tinha traçado diferente), que atravessasse a Ponte de Pau e continuasse até, à direita, ver a torre de uma igreja, e, aí, perguntar a qualquer pessoa.

De uma coisa se certificou o homem de Braga: o Eduardo Sapateiro era pessoa muito conhecida, pois, sempre que encontrava alguém, e que perguntava por ele, toda a gente lhe indicava, sem qualquer dúvida, a sua morada; isto lhe dava uma certa confiança, apesar de já ter notado uns certos ares de riso quando perguntava por aquele cavalheiro.

Em casa do Eduardo, a quem reconheceu imediatamente, verificou que ele o não reconhecera; e disse-lhe quem era e ao que vinha.

O Eduardo, como sempre, não se enrascou; e, mesmo como estava, e acompanhado pelo fundidor, foi a casa do João dos Doces (o sacristão de S. Domingos), que morava nas casas que existiam na actual Praça do Milenário, e arranjou processo de lhe emprestarem a chave da torre, e lá foi mostrar os quatro sinos da mesma, que ele apelidara de carrilhão, e badalou, nuns e noutros, conforme sabia.

O homem de Braga, muito desanimado e aborrecido, desabafou, dizendo:

E vim eu de Braga para ver uma porcaria destas!

O João dos Doces escamou-se todo ao ouvir tocar os sinos, e o homem de Braga continuava aborrecido, mas o ti Eduardo lá conseguiu compor as coisas, e todos ficaram de bem. / 156 /

O Eduardo Sapateiro viveu, durante muitos anos, principalmente enquanto os muitos filhos que tinha eram pequenos, com enormes dificuldades, pois os consertos que fazia rendiam pouco dinheiro; naquela casa, porém, nunca faltava alegria, que ele e os filhos mantiveram pela vida fora.

Contava-se que, quando não havia dinheiro para o almoço do dia seguinte, ele propunha, à noite, aos filhos: – A quem não quiser cear, eu dou um vintém. Proposta que todos aceitavam (aliás, não tinham outro recurso); e, depois de uma tocata de viola e de uma cantoria, todos iam para a cama mais cedo.

Na manhã seguinte, fazia nova proposta: – Quem quiser almoçar tem de pagar um vintém; o certo é que todos esportulavam o vintém recebido na véspera.

Era um filósofo, o Eduardo Sapateiro!

Com todas as suas dificuldades, e com grandes sacrifícios, conseguiu criar os seus filhos e dar-lhes, também, uma certa dose de bonomia, que eles têm mantido, como acontece com o Luís, o engraxador do Trianon, que toda a gente conhece, considera e respeita, pela sua constante boa disposição.

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