Já, e por mais de uma vez,
me referi a artífices sapateiros que, noutros tempos, em Aveiro, tiveram
nomeada.
A primeira vez fi-lo,
quando, falando da MINA, referi que o Besugo, sapateiro, morador
na Rua do Gravito, e exímio em pregar partidas, se ia meter dentro da
referida mina, depois de ter propalado que, lá, vivia um urso que à
noitinha, e de vez em quando, aparecia à boca da mesma, desde que lhe
cheirasse a comida.
Houve, como então contei,
quem fosse levar comida para conseguir ver o urso, ou parte dele, comida
com a qual o Besugo se regalava em casa, logo que da mina se
podia raspar sem ninguém o ver, a coberto da noite.
Ora o Besugo, com
os seus colegas de ofício Mofa e Fandunga, moradores,
também, no Gravito, formavam um trio especializado em fazer partidas às
pessoas que tivessem a infelicidade de lhes caírem nas mãos, pois, se
entrassem em qualquer das três oficinas à procura de algo que não fosse
da sua especialidade, ou a pedir qualquer informação, era certo e sabido
que seriam remetidas para as outras, e, em todas intrujadas.
Dentre as muitas partidas
que se contavam terem sido feitas por aquele trio – algumas simples
brincadeiras –, destaco uma que sempre considerei atrevida e de mau
gosto: convencer uma mulherzinha, de uma das aldeias próximas, que lhes
foi perguntar como havia de mandar um telegrama ao marido, que andava a
trabalhar fora, a ir acima da ponte de Esgueira e dependurar o
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telegrama – que eles «fizeram» – nos fios que passavam por cima, pois,
assim, o telegrama chegava mais depressa ao seu destino…
O Besugo era um
homem forte, valentão mas pacato, e com grande descontracção.
Contava-se, dele, a
seguinte proeza: Um dia, na Costa Nova, ao tomar banho no mar, uma onda
levou-o para o largo, e pregou com ele no enfiamento da corrente. Toda a
gente que estava na praia se assustou e gritou, prevendo grande
desgraça; porém, o Besugo não se atrapalhou e, virando-se, pôs-se
a boiar de costas, deixando-se seguir na corrente, visto que a maré
estava na enchente, e, portanto, dirigindo-se para a Barra.
Por todo o areal, da Costa
Nova à Barra, se juntou uma grande multidão, que acompanhou a aventura
do Besugo, receando o pior. Quando este, tendo conseguido entrar
na Barra e arranjar pé, junto do Forte – e estava rodeado por muita
gente que, pelo paredão, o havia acompanhado com enorme ansiedade –
virou-se para aquela multidão e, serenamente, e como se a sua aventura
tivesse sido planeada, disse: – Sempre gostava de saber que tempo
demorei da Costa ao Forte, pelo mar.
Outro dos sapateiros, a
que já me referi, foi o Zacarias, que morava ao alto da Rua Larga, na
oficina do qual o distinto aveirógrafo, e pessoa muito respeitada,
José Reinaldo Rangel de Quadros, foi intrujado, quando pretendeu que
lhe fosse mostrada uma imagem de Santo Antoninho, que lhe disseram que o
Zacarias possuía, sendo certo que este lhe mandou mostrar um objecto
muito diferente daquele que ele procurava e que o levou a desabafar,
dizendo: – Olhe, seu mestre Zacarias, vocemecê não tem culpa; culpa
teve quem cá me mandou.
E quem, com mais de vinte
anos, se não recorda, ou não ouviu falar do Eduardo Sapateiro,
com oficina na Rua do Rato, e das suas partidas?
Por lá passaram, e foram
intrujadas, com maior ou menor diplomacia, pessoas de todas as classes
sociais.
Objectos idênticos aos que
o Zacarias mandou mostrar ao José Reinaldo, tinha-os ele de vários
tamanhos, e mudavam de nome conforme as ocasiões e as circunstâncias:
eram máquinas fotográficas, calendários, selins de bicicleta, canários,
etc., etc., e, até, livros raros.
Aconteceu que um aluno do
nosso Liceu – menino bem que para aqui se havia transferido de um
colégio particular, na altura em que, pela primeira vez, funcionou, em
Aveiro, o 7.º ano liceal, pretendia adquirir um compêndio de Física, ou
de Química (não me lembro bem), da autoria do Dr. Pinto Basto, livro que
estava esgotado e que ele já tentara obter na sua terra e nas livrarias
de Aveiro que conhecia, sem qualquer resultado.
Queixou-se desta
dificuldade aos colegas, e um deles lembrou que podia
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ser que o Eduardo Sapateiro tivesse por lá algum daqueles livros; e
explicaram-lhe que aquele indivíduo, além da sua profissão de sapateiro,
era, também, alfarrabista.
E como o jovem – que
estava há pouco tempo em Aveiro –, mesmo depois das explicações que lhe
foram dadas acerca da localização do estabelecimento que lhe havia sido
indicado, não sabia onde o mesmo se situava, os colegas ofereceram-se
para o acompanhar e o apresentar ao Eduardo Sapateiro, o que fizeram, de
seguida.
Chegados que foram à
oficina, procederam à apresentação do pretendente ao livro, explicaram as
dificuldades em que estava o seu colega e amigo que, para Aveiro tinha
vindo há pouco tempo, e pediram-lhe, com empenho, que, se possível, o
«desenrascasse».
O ti Eduardo mostrou muito
interesse em servir o menino, mas afirmou que o livro que ele tanto
empenho tinha em adquirir era dos que raramente apareciam lá pela loja,
mas que chamaria a Luísa – pois era ela que lidava mais com os livros –
e lhe faria a recomendação necessária para procurar bem, vendo se, por
acaso, lá tinha algum que servisse ao interessado.
A ti Luísa, depois de
ouvir a recomendação do marido, retirou-se lá para dentro, demorou algum
tempo (que aquele aproveitou para conversar com a rapaziada). Logo que
ela, de avental tapado, reapareceu na loja, os companheiros foram-se
chegando para a porta; e, quando ela destapou o avental e mostrou a
série de objectos que nele trazia e perguntou ao rapazote se algum
daqueles lhe servia, este, chocado, desatou a chorar... e os seus
colegas rasparam-se.
Como estas, muitas e
variadas cenas houve por lá. Vejamos mais algumas
partidas feitas pelos sapateiros.
O caso passado com um
fundidor de sinos, de Braga, é, para mim, dos que demonstram o à-vontade
como o Eduardo Sapateiro actuava nas suas brincadeiras. Eu conto:
Em certa altura,
realizou-se uma excursão de Aveiro a Braga, a preços muito baratos,
mesmo para a época, e o nosso Eduardo Sapateiro também nela participou,
o que aconteceu com uma grande parte da população aveirense.
Além das visitas ao Bom
Jesus, ao Sameiro e à Sé, tivemos oportunidade de ver e observar várias
oficinas de fundição de sinos, indústria que muito interessou
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os excursionistas, pois se tratava de uma actividade que não existia em
Aveiro, onde não havia, ainda, oficinas – como hoje há – de fundição de
ferro e de metais não ferrosos.
Ora o Eduardo, como não
podia deixar de ser, entabulou conversa animada com o proprietário da
oficina que visitou e, com o vício que tinha de estar, sempre, a
impingir histórias e meter petas, afirmou-lhe que, em Aveiro, havia uma
torre, com um carrilhão no qual se podiam tocar variadas músicas; e,
como o fabricante dos sinos se mostrasse muito admirado com o que o
Eduardo lhe contava (pois nunca ouvira falar em tal), este
prontificou-se, no caso de ele estar interessado em ver esse carrilhão,
a mostrar-lho, em qualquer altura em que ele passasse por Aveiro. Para
tanto, bastava-lhe perguntar, em qualquer ponto da cidade, pelo Eduardo
Sapateiro, que toda a gente lhe indicaria a sua morada, e ele se
encarregaria de lhe mostrar o referido carrilhão.
O ti Eduardo não mais se
lembrou da peta que pregara; porém, o fundidor de Braga é que jamais se
esqueceu da oferta que lhe fora feita; e, quando teve oportunidade para
isso – e já se tinha passado muito tempo –, deslocou-se a Aveiro, pelo
caminho de ferro.
Logo na estação, ao
desembarcar, perguntou onde era a morada do Eduardo Sapateiro (que lhe
foi indicada e ele encontraria com facilidade).
Disseram-lhe que seguisse
sempre em frente, pela Rua do Americano (actual Rua do Comandante Rocha
e Cunha, que, em parte tinha traçado diferente), que atravessasse a
Ponte de Pau e continuasse até, à direita, ver a torre de uma igreja, e,
aí, perguntar a qualquer pessoa.
De uma coisa se certificou
o homem de Braga: o Eduardo Sapateiro era pessoa muito conhecida, pois,
sempre que encontrava alguém, e que perguntava por ele, toda a gente lhe
indicava, sem qualquer dúvida, a sua morada; isto lhe dava uma certa
confiança, apesar de já ter notado uns certos ares de riso quando
perguntava por aquele cavalheiro.
Em casa do Eduardo, a quem
reconheceu imediatamente, verificou que ele o não reconhecera; e
disse-lhe quem era e ao que vinha.
O Eduardo, como sempre,
não se enrascou; e, mesmo como estava, e acompanhado pelo fundidor, foi
a casa do João dos Doces (o sacristão de S. Domingos), que morava nas
casas que existiam na actual Praça do Milenário, e arranjou processo de
lhe emprestarem a chave da torre, e lá foi mostrar os quatro sinos da
mesma, que ele apelidara de carrilhão, e badalou, nuns e noutros,
conforme sabia.
O homem de Braga, muito
desanimado e aborrecido, desabafou, dizendo:
– E vim eu de Braga para
ver uma porcaria destas!
O João dos Doces escamou-se todo ao ouvir tocar os sinos, e o homem de
Braga continuava aborrecido, mas o ti Eduardo lá conseguiu compor as
coisas, e todos ficaram de bem.
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O Eduardo Sapateiro viveu,
durante muitos anos, principalmente enquanto os muitos filhos que tinha
eram pequenos, com enormes dificuldades, pois os consertos que fazia
rendiam pouco dinheiro; naquela casa, porém, nunca faltava alegria, que
ele e os filhos mantiveram pela vida fora.
Contava-se que, quando não
havia dinheiro para o almoço do dia seguinte, ele propunha, à noite, aos
filhos: – A quem não quiser cear, eu dou um vintém. Proposta que todos
aceitavam (aliás, não tinham outro recurso); e, depois de uma tocata de
viola e de uma cantoria, todos iam para a cama mais cedo.
Na manhã seguinte, fazia
nova proposta: – Quem quiser almoçar tem de pagar um vintém; o certo é
que todos esportulavam o vintém recebido na véspera.
Era um filósofo, o Eduardo
Sapateiro!
Com todas as suas
dificuldades, e com grandes sacrifícios, conseguiu criar
os seus filhos e dar-lhes, também, uma certa dose de
bonomia, que eles têm mantido, como acontece com o Luís, o engraxador do
Trianon, que toda a gente conhece, considera e respeita, pela sua
constante boa disposição.
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