Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Grupos dramáticos – Môlho de Escabeche

Em 1940, o Grupo Cénico do Clube dos Galitos ensaiou e levou à cena a revista-fantasia regional MÔLHO DE ESCABECHE, em 2 actos e 26 quadros, original de António José Flamengo, com versos do Dr. Luís Regala e música de João Lé, e com uma valsa de Nóbrega e Sousa, nosso patrício, que já fazia parte dos quadros musicais da Emissora Nacional e cujas músicas estavam, então, muito em voga.

Destes autores, faleceu o António José Flamengo: Paz à sua Alma!

Os restantes estão vivos, felizmente.

Nóbrega e Sousa, ainda há pouco nas bocas do mundo, por ter sido o autor da canção «Sobe, sobe, balão, sobe!», que representou a RTP portuguesa no último Festival Internacional da Canção, tendo obtido uma boa classificação a melhor, salvo erro, das até agora conseguidas naquele concurso anual.

O Dr. Luís Regala continua a «poetar» guardando, porém, para si, a maioria das suas produções, dando-nos, muito raramente, por intermédio de Pedro Zargo – personagem em quem o poeta se encarnou – um ou outro dos seus admiráveis poemas.

O João Lé, tendo deixado (por se ter aposentado) as suas actividades escolares, continua – suponho – como componente da Orquestra Sinfónica do Porto. Da sua música naquela revista-fantasia, direi que a E.N. [Emissora Nacional] mostrou – aquando dos espectáculos dados em Lisboa –, interesse em gravar, para os seus arquivos, alguns dos números, pelo que o Grupo Cénico se deslocou aos estúdios daquela E.N., para lá fazerem essas gravações; e, bem assim, que, nessa altura, estava em Lisboa, de passagem para a América, um maestro austríaco de grande nomeada (de que não me lembra, agora, o nome) que, nos vários meios musicais de Lisboa com quem contactou, foi informado da representação do MOLHO DE ESCABECHE e da repercussão que nesses meios teve a música desta revista. Lamentando-se de, por falta de tempo, não poder assistir ao espectáculo, foi informado da gravação que se iria fazer na E.N.; e, tendo mostrado interesse de a ela assistir, conseguiu-o, por intermédio de pessoas ligadas aos meios musicais que, em Lisboa, ele frequentou. / 139 / De tal forma a música lhe agradou que, no final, felicitou o João Lé, a quem disse, mais ou menos, na sua linguagem muito arrevesada, o seguinte: «Bela música e bom compositor. Lé, nome pequeno, mas grande músico, que eu não esquecerei».

Felicitou, também, os intérpretes dos vários números gravados, incluindo os coros, que considerou muito bem ensaiados, e mostrou o seu desgosto por não poder assistir ao espectáculo dessa noite, por ter de seguir para a América.

Às pessoas mais novas, habituadas a ver e a usar os actuais aparelhos de gravar e de reproduzir essas ou outras gravações, causará, certamente, estranheza a necessidade que houve do Grupo Cénico se deslocar à E.N., e não ser esta que se tenha deslocado ao Coliseu. As coisas, então, eram diferentes: não havia aparelhagem do tipo da actual e, até – segundo, então, nos informaram –, aos discos que a E.N. gravou não se lhes podia dar o uso dos que se fabricavam para fins comerciais, porque se «apagavam» com relativa facilidade.

«O Molho de Escabeche», tal como aconteceu com o «Ao Cantar do Galo», deu grande número de espectáculos, quer em Aveiro, quer fora, sempre muito aplaudidos e com casas «à cunha».

A Imprensa falou de tal maneira desta revista que os profissionais de teatro se sentiram, de certo modo, afectados com essas referências.

E até a Censura nos tentou fazer a vida cara, pois não só exigiu, no dia do primeiro espectáculo, (de tarde), que fizéssemos um ensaio completo, com as chefes de grupo, devidamente equipadas, como, também, só nos entregou a peça (com cortes feitos) à última-da-hora, impondo que esses cortes fossem respeitados escrupulosamente, sob pena de mandarem suspender a representação.

E já o pessoal estava a jantar para se dirigir ao Coliseu, quando eu e o Dr. Alberto Souto (que à Direcção Geral dos Espectáculos tínhamos ido buscar a peça), andámos de pensão em pensão, a dar instruções sobre os cortes efectuados, e, de acordo com o Flamengo, das novas deixas que, de tais cortes, resultaram.

Assim, no dia do primeiro espectáculo, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, as primeiras filas estavam ocupadas por actores – era segunda-feira, dia de descanso para estes –, que fizeram constar tal facto, com o fim de influenciarem o comportamento dos amadores provincianos, que deviam recear exibir-se perante, e de frente, a actores profissionais, esperando que eles (amadores) não tivessem a presença de espírito necessária para se desempenharem dos seus papéis com a alegria e a desenvoltura de que os jornais falavam.

Todo o Grupo foi avisado deste facto e mentalizado para não ligar qualquer importância à assistência dos actores profissionais: eram público, como os restantes espectadores. / 140 /

O espectáculo iniciava-se mostrando um cenário com vários motivos de Aveiro, e um grupo de raparigas vestidas com uma fantasia muito leve e deitadas em diversas posições.

As raparigas, acompanhadas por uma orquestra-jazz que já se ouvia há pedaço e que, então, entrando no palco, cantavam:

Oh linda terra de amores!

Teu nome jamais apagas,

Que as fainas dos pescadores,

São ondas nas tuas vagas.

Os dramas dos teus poentes

E as brumas desses teus prados,

Dão sonhos incandescentes

Aos olhos dos namorados.

A luz do céu que te cobre

Sobre a cor da água inquieta

É a alegria do pobre

Numa canção bela de poeta.

As tradições mais antigas

Da tua história sem par,

Só a voz das raparigas

Sabe dizer e cantar.

Entrava, de seguida, um grupo de rapazes, formando-se um coro misto, que cantava:

Oh Aveiro,

Oh Aveiro,

Oh Aveiro sem rival:

Meu formoso

Cativeiro

Das ondas de Portugal!

Doce fada,

Namorada

Duma beleza sem par!

És ainda  / 141 /

Terra linda,

Linda terra à beira-mar.

A solo, Sebastião Amaral continuava a canção:

Gaivotas voando

Num voo ligeiro

Lá voam cantando

A Ria de Aveiro.

E os barcos na Ria

E as velas no ar,

Dão mais alegria

Às ondas do mar.

A que se seguia um coro, com a letra que, acima, se indicou, isto é: Doce fada… etc.

Ao fechar a cortina, reboa uma tremenda salva de palmas, com a plateia, entusiasmada e em pé, entusiasmo de que partilharam – e calorosamente os artistas profissionais, que, no intervalo, e junto das pessoas de Aveiro, reconheceram que os profissionais do teatro não eram capazes de fazer melhor.

Continuemos a falar do «Molho de Escabeche».

O guarda-roupa, muito vistoso e, até algum dele muito luxuoso, foi executado, propositadamente, em casa da especialidade, em Lisboa, sob desenhos do figurinista profissional Laiert Neves e, também, do nosso conterrâneo Aníbal Ramos, distinto artista fotográfico, falecido no vigor da idade.

Os cenários e as cortinas foram pintados, em Aveiro, pelo cenógrafo profissional Reinaldo Martins, de Lisboa, que para cá se deslocou, a fim de observar e pintar os locais onde se passavam as várias cenas da peça.

Uma dessas cortinas, porém, foi pintada pelo artista aveirense Licínio Pinto, por incumbência do Dr. Abílio Justiça, que a pagou do seu bolso e o ofereceu ao Grupo Cénico.

O investimento necessário para a montagem desta revista-fantasia foi muito vultuoso e, para o tempo, muito atrevido.

Um grupo de cagaréus, todos eles «Manatas» – grupo que apoiou, com o seu entusiasmo, o seu trabalho e o seu dinheiro, diversas iniciativas do Clube dos Galitos – acreditou no êxito daquela revista e quis vê-la montada tal qual o / 142 / António José Flamengo a idealizou, convencidos de que a sua representação honraria, não só o nome do Clube dos Galitos, como, e principalmente, o de Aveiro; o que, na realidade, aconteceu.

Assim, o referido grupo tomou a responsabilidade de obter ali quantias necessárias para aquele efeito, apondo as suas assinaturas em letras bancárias que garantiam, no Banco Regional de Aveiro, os levantamentos efectuados.

É aqui a altura própria de recordar os seus nomes: António Luís Morais da Cunha; Dr. Abílio Justiça; Dr. Augusto Cunha; António da Costa Ferreira; e João Ferreira de Macedo.

De todo o Grupo dos Manatas apenas são vivos o João Macedo e o Primo da Naia Pacheco.

Outrossim é de recordar, aqui, o nome de José Vieira de Oliveira Barbosa, que suponho não ter pertencido aos avalistas das letras a que atrás se faz referência, mas que foi, no entanto, o administrador das importâncias levantadas e das que renderam os espectáculos, cujas bilheteiras ele fiscalizava como de coisa sua se tratasse; e trazia, sempre, todas as contas em dia, e delas dava conhecimento, após cada uma das representações, aos capitalistas para estes saberem «às quantas andavam».

Não vou falar, agora, da contribuição do José Barbosa nas várias festas e actos cívicos realizados em Aveiro: o nosso amigo Eduardo Cerqueira – o distinto aveirógrafo – já o evocou, nas páginas do “Litoral”, pouco tempo após o seu falecimento.

 

O Dr. Abílio Justiça, solteirão, teve, no final da sua vida, duas paixões: a do Teatro e a de pescador-amador; nesta, pouco ou nenhum peixe conseguia apanhar, apesar de variar, muitas vezes, a isca que empregava para ver se enganava os peixitos. Para a montagem do «Molho de Escabeche», não só após a sua assinatura nas letras a que já fiz referência, como, também, se ofereceu para pagar, até onde a sua fortuna o permitisse, o prejuízo que a revista viesse a dar. O que ele queria era vê-la representada com o brilhantismo com que o António José sonhava, e incitava este a que não olhasse a despesas para o conseguir.

Quando da ida ao Coliseu dos Recreios, receando qualquer contratempo que pudesse surgir e para o qual a Direcção do Grupo não fosse preparada, meteu no bolso vinte e seis contos – nesse tempo era uma grande quantia «para o que desse e viesse».

O António Cunha, outro solteirão, também adquiriu, no final da sua vida, duas paixões: a dos grupos teatrais e a de administrador do Teatro Aveirense, quando este atravessou um período muito difícil de gestão.

Todo o seu tempo disponível dedicava-o ao Teatro Aveirense, então ameaçado de venda em hasta pública, por motivo das dívidas resultantes da grande modificação efectuada no mesmo, e no período em que a televisão desviou do / 143 / cinema os seus frequentadores. Maus dias foram esses, os que o António Cunha aguentou.

Quando, no «Molho de Escabeche», o José Barbosa estava «à rasca» para fazer qualquer liquidação urgente, recorria ao António Cunha que, do seu bolso, acudia, de imediato, a essa emergência. E, quando terminou a actuação daquela revista, tomou, para si, o encargo de fazer a liquidação final de todas as contas; apesar dos seus colegas «capitalistas» se oferecerem (como, aliás, lhes competia) para partilharem com a sua quota-parte, não aceitou essa oferta.

Eram, assim, os Manatas: cagaréus cem por cento, e galitos até à medula.

A Direcção do Grupo Cénico do Clube dos Galitos, quando pensou na ida deste a Lisboa, convidou o ilustre jornalista e crítico teatral Artur Inês, conhecido como muito rigoroso nas suas apreciações, a assistir, em Aveiro, a um espectáculo e a dar a sua opinião quanto à possível exibição do «Molho de Escabeche» no Coliseu dos Recreios.

Artur Inês ficou entusiasmado com o que viu, deu alguns conselhos que a sua prática entendia deverem ser seguidos, indicou alguns cortes que conviria fazer para a revista ficar um pouco mais curta e foi de opinião de que ela alcançaria, em Lisboa, um grande êxito.

Aliás, já quando da deslocação do Grupo Cénico a Lisboa, com a revista «Ao cantar do Galo», foi ouvida, previamente, e a conselho de D. Carolina Christo – salvo erro – (grande entusiasta desta deslocação) a opinião daquele jornalista.

Do artigo que Artur Inês escreveu, no jornal REPÚBLICA, de 24-12-1940, transcrevo o seguinte:

«(...) O que mais seduziu a nossa atenção foi a graciosidade dos quadros regionais, cem por cento portugueses, onde os tipos estão admiravelmente marcados num pensamento etnográfico sem mácula, que encanta o espectador pela vista e pelo coração.

Como em maravilhoso caleidoscópio, passam pelo espectador os padeirinhos, as serranas, o Chico da Nau – da Nau Portugal, que esteve na exposição –, a tricana da época do Senhor D. Pedro IV e a tricana dos nossos dias, as empilhadeiras, os moliceiros, a vendedora da gare, gente de Aveiro, gente de Ílhavo, de Ovar, da Murtosa, do S. Paio da Torreira, gente boa, alegre e afectiva, de toda essa luminosa e pitoresca região de Portugal, que trabalha e canta. / 144 /

O quadro de abertura Aveiro!... Aveiro!... é uma impressionante alegoria, triunfal, dinâmica, empolgante, onde o encenador dá imediatas provas do seu talento realizador.

Os quadros dos Ramos – a que auguro um êxito formidável em Lisboao do Sampaio da Torreira e Sinfonia das Ondas, Cenas da Bairrada, Xailes de Aveiro, todos os quadros de fantasia, enfim, estão plenos de cor, de movimento, de alegria sadia e clara, esmaltados pela graciosidade das tricaninhas airosas e dos moços entusiastas, que completam o admirável grupo de 28 raparigas e 25 rapazes, que são as actrizes, os actores e os bailarinos deste lindo e colorido espectáculo regional.

Mas o autor não se limitou a apresentar uma sucessão de quadros coloridos e ricos da sua incomparável região. Ele dá-nos, aqui e ali, a feição crítica do comentário de revista através de algumas rábulas curiosas, e bem achadas, outras, como Doido por Festas, de que se encarregou, e muito bem, António José FIamengo, autor, actor e ensaiador do «Molho de Escabeche».

Também do jornal O SÉCULO, de 30-12-1940, transcrevo:

– «O Grupo Cénico do Clube dos Galitos, de Aveiro, que Lisboa conhece por via da representação da revista «Ao Cantar do Galo» que há três anos, levou, em três noites consecutivas, milhares e milhares de pessoas ao Coliseu, vem novamente à capital, como “O Século” tem noticiado, desta feita com outra peça ainda mais linda e mais vistosa do que aquela, intitulada «Molho de Escabeche».

A graça das tricanas, a beleza da ria, a magia das cantigas da serra, da planura ou da beira-mar, os costumes da gente aveirense, tudo o que a região tem de belo e de característico, foi aproveitado com arte e integrado no interessante espectáculo, que, além da sua feição colorida e aliciante, constitui um reclamo vivo e movimentado do formoso distrito do Douro-Litoral.

Matos Sequeira, e outros críticos dos jornais de Lisboa e Porto, fizeram referências, altamente elogiosas, à revista-fantasia, ao desempenho a cargo de rapazes e senhoras; aos coros formados por gentis tricanas; indumentária vistosa e colorida; à partitura alegre e melodiosa; à montagem cénica, notável pelo bom gosto e pelo acerto. Tudo concorre para que o «Molho de Escabeche» pareça uma peça realizada por um grande empresário e erguida à custa de rios de dinheiro, para a qual se tivesse escolhido uma companhia de valores excepcionais. De facto, nada há nesse espectáculo que não seja, ou não pareça excepcional. Vozes frescas, frisos de raparigas insinuantes, vocações indiscutíveis da arte de representar, dedicações a marcar brio e, principalmente, um esforço imenso por parte do grupo que serve de fanfarra aos Galitos e a Aveiro, são outros tantos elementos de valorização da fantasia, que o público de Lisboa poderá admirar nas noites de 11, 12 e 13 de Janeiro. / 145 /

“O Século” patrocina a iniciativa do prestigioso Clube, que sabe manter as suas honradas tradições e prosseguir na obra que se impõe: o de fazer bom teatro e, com ele, servir a sempre encantadora cidade de Aveiro.»

Além dos artigos atrás transcritos, em parte, todos os outros jornais de Lisboa disseram da sua opinião, após os espectáculos.

O que escreveram os do Porto, fica para novas «Achegas».

O êxito dos espectáculos do «Molho de Escabeche», em Lisboa, nos dias 11, 12 e 13 de Janeiro de 1941, foi tal, e teve tamanha repercussão em todo o País, devido ao que se escreveu na Imprensa, que Aveiro delirou de satisfação e alegria.

Assim, no regresso do Grupo Cénico do Clube dos Galitos, no dia 15, foram à estação do caminho de ferro esperá-lo, acompanhados das duas bandas de música que, então, havia na cidade, as várias colectividades com as suas bandeiras e uma enorme massa do povo anónimo – que o acompanharam, em cortejo, até à sede do Clube dos Galitos, com enorme entusiasmo.

Assim que o comboio entrou nas agulhas, estralejaram muitas girândolas de foguetes e vários morteiros.

Na paragem do comboio, em Paraimo, a gerência das Caves do Barrocão ofereceu bastantes garrafas de espumante das suas marcas, demonstrando, desta forma, a sua satisfação pelo número que, na revista, se referia a essa qualidade de vinhos da nossa região.

E que lindo número que era!

Mas... falemos do êxito da representação:

Uma patrícia nossa, vivendo em Lisboa há muitos anos, escreveu a uma pessoa de família, residente em Aveiro, o seguinte:

«Fui, também, ao Coliseu dos Recreios assistir à representação do «Molho de Escabeche», e fiquei maravilhada, pois nunca pensei que fosse tão bom aquilo que vi. As componentes do grupo aveirense não ficam a dever nada às nossas artistas profissionais, tendo ainda a favor delas a beleza e frescura das suas poucas Primaveras. Gostei de todas; mas a preferida foi a gentil Ângela de Jesus. Enfim, todos cá de casa estamos encantados, por considerarmos o grupo de amadores de Aveiro uma coisa única no género.» (in jornal “Democrata”, n.º 1664 de 18-1-1941).

Não é possível transcrever e publicar as muitas e variadas apreciações dos / 146 / nossos patrícios residentes na capital, feitas aos seus familiares, ou simples conhecidos.

Houve um aveirense residente há 60 anos em S. Paulo (Brasil), que lembrou a possibilidade do Grupo se deslocar àquela cidade, encarregando-se ele de lá tratar do que fosse necessário para tal deslocação, pois estava convencido de que toda a colónia portuguesa, mas, especialmente, a aveirense, acorreria a ver tal espectáculo.

Do “Jornal de Notícias”, datado de 17 de Março de 1941, transcrevo o final de uma crítica, feita por um seu redactor que veio, propositadamente, a Aveiro, assistir ao espectáculo que antecedeu a deslocação do Grupo Cénico ao Porto, para dar três espectáculos a favor da Casa da Imprensa e do Livro, que era presidida pelo Dr. Alfredo de Magalhães.

«Um grande mérito tem o original de António José Flamengo, singularmente enriquecido pelos versos do Dr. Luís Regala – a simplicidade da linguagem.

Essa simplicidade, que não exclui a beleza, que é, talvez, a sua mais sólida base, torna acessível o «Molho de Escabeche» a toda a gente. Evita-se o calão, foge-se à porcaria, não se recorre ao duplo sentido pornográfico ou soez. As personagens, símbolos ou projecção de símbolos humanos, falam a linguagem corrente de todos os dias.»

E, a seguir, entra na apreciação dos componentes do grupo e da sua actuação, escrevendo:

«Lourdes Teles impõe-se pela desenvoltura e pela naturalidade. Veste primorosamente. Ângela de Jesus pode considerar-se uma estrela entre as estrelas. Canta, dança, representa, e vai sempre na primeira linha. A sua Serrana é um primor de observação; o seu Chico da Nau, que o Porto bisará com entusiasmo, uma afirmação brilhantíssima. Laura de Albuquerque acompanha-a em voo alto. Vai sempre bem, mas, no Rapaz dos Moinhos – voltamos a repeti-lo – emociona. Ester Amaral é preciosíssima. O quarteto dos lncurcionistas, rico de observação cómica, deve-lhe muito. Não deixem de trazer esse número ao Porto! É, sem dúvida, um dos mais completos da peça – e dos mais felizes.

Outras raparigas a destacar: Adelaide Ferreira, simples e natural; Maria do Céu Lourenço, muito conscienciosa; Democracia Graça, graciosíssima; Maria Celeste Matos, superior de distinção, numa chefe de quadro; Zídia Lemos, muito correcta.

Do elemento masculino, sobressai o autor – que tem verdadeiras criações.

Diz sem ênfase, naturalmente. Não se repete, nem repete os seus tipos. Mário Teles acerta com o conjunto. Firmino Costa valoriza as suas rábulas; Agnelo Coelho, tem muito carácter.

Há um rapazito – Fernando Morais Sarmento – verdadeiramente notável. / 147 / Diz bem; representa melhor. Mas o que surpreende neste fedelho é o ar consciente como ouve, a convicção com que se integra no conjunto. Numa idade crítica – talvez quinze anos – prejudica-o, apenas, o timbre da voz que, sem ser de criança, ainda não é de homem. Lisboa aclamou-o. O Porto, decerto, seguir-lhe-á as pisadas. É estupendo.

Um tenor excelente, muito modesto e simpático – Sebastião Amaral. A fantasia de Aveiro deve-lhe muito. Um baixo com pouca escola, mas de admirável voz – Luís António. O friso dos cavadores, tão expressivo, vive da sua preciosa colaboração. Digamos que os rapazes – oito – acusam bom ensaiador.

Os coros, numerosos e disciplinados, dão à peça muita animação. Caras lindas, frescas, trabalhando não por dever, com a mira nos lucros, mas por paixão à arte e à terra natal. Boas marcações coreográficas. Uma orquestra magnífica. Cenários novos, com boa luz, raro bom gosto. Indumentária artística, por vezes luxuosa, dos costureiros de Lisboa Isaura de Paiva e Laiert Neves d'après figurinos de Laiert Neves e Aníbal Ramos. Segura direcção musical. A encenação do autor – que também ensaiou os grupos coreográficos – de ritmo admiravelmente ajustado à acção.»

Isto disse o «Jornal de Notícias».

Também “O Primeiro de Janeiro” e o “Comércio do Porto” fizeram as suas críticas, pois a Casa da Imprensa e do Livro fez deslocar o Aveiro os repórteres desses jornais, a fim de preparar o público portuense para assistir aos espectáculos, que se realizaram em 20, 21 e 22 de Abril de 1941, com um enorme êxito e casas à cunha.

Ainda continuarei a falar do «Molho de Escabeche». Desculpem, se me estou a tornar maçador, mas a verdade é que ele merece-o.

P.S. – Ao Dr. Luís Regala agradeço a sua amável carta e peço-lhe que insista com o Pedro Zargo para que nos vá dando mais dos seus lindos poemas, como aquele que o “Litoral” publicou no seu último número.

Continuo a transcrever, dos jornais do Porto, pedaços do que eles publicaram acerca do MOLHO DE ESCABECHE.

Do diário “O Comércio do Porto”, de 18-3-941, assinado por Edurisa:

«(...) Desde o largo corpo coral formado por Estefânia Pires, Suzana Pires, Alice Picado, Georgina Lourenço, Conceição Costa, Silvina Freire, Antonieta / 148 / de Carvalho, Noémia Miranda, Maria de La-SalIete, Guilhermina Pinho, Estrela Castro, Maria Adelaide Trindade Ferreira, Maria Arroja, Isaura Silva, Maria da Conceição Silva, Emília de Albuquerque, Florentino Maia, Carlos Rodrigues, Jaime Mourisca Simões, João Moreira, António Borrego, Jaime Magalhães, Manuel de Oliveira e Silva, António José Rodrigues, Alberto Pires, Guilherme Maia, Manuel Arroja, Jaime Andias, Gilberto Nogueira, Carlos Gamelas, João Velhinho, Manuel Amaral e José Laranjeira Marques; desde o magnífico grupo até às figuras do elenco, todos, à compita, sem o mais leve deslize nem a menor incerteza, dão excelente conta de si, entusiasmando o público e nobilitando, de melhor a melhor, as tradições artísticas do Clube. E, por cima de todas estas manifestas afirmações de tendências cénicas, temos um halo de beleza espiritual, que se desprende do friso grácil e elegante das vinte e seis raparigas que formam o elenco feminino da companhia.

O corpo coral feminino canta e trabalha com afinação, desenvoltura, segurança, disciplina e relevo, como não se vê nos nossos teatros.

Tudo isto contribui para o conjunto de atractivos que tem, nos seus 26 quadros, espalhados por 2 actos, a fantasia regional «Molho de Escabeche» que, na noite de anteontem, teve, no Teatro Aveirense, a sua 15.ª representação e para a qual os representantes da Imprensa diária do Porto foram, especialmente, convidados, assistindo, assim, a um espectáculo interessantíssimo e que decorreu no meio do maior entusiasmo. Além do apreciável corpo coral, temos o grupo de actrizes e de actores, todo ele brilhante e possuindo vários valores marcantes.

Assim, «Molho de Escabeche» teve uma interpretação animada, graciosa, expressiva, aqui e ali com puros e verdadeiros lampejos de boa arte teatral.

Aliada a uma consciência cénica inquebrantável – todos os intérpretes acusavam intuição e naturalidade fora do vulgar.

À frente temos Lourdes Teles, esguia e delicada como certas figurinhas de Sandro Boticceli, representando e cantando melhor do que certas actrizes do nosso teatro de revista; Ângela de Jesus, beleza sadia de portuguesa, possuidora de uma linda voz e de acentuado vigor artístico; Laura Albuquerque, sorridente e gaiata, representando com expressiva desenvoltura; Ester Amaral, olhos buliçosos e sorriso luminoso, mostrando-se, acima de tudo, uma esplêndida característica; Adelaide Ferreira, esbelta e expressiva; (...) e, todas elas, afirmando-se valores dentro da sugestiva peça; Maria do Céu Lourenço, Virgínia Calixto, Democracia Graça, Maria Celeste Matos e Zídia Lemos – em suma, todas as intérpretes realçam os seus belos dotes físicos, as suas vitoriosas mocidades e as suas vocações artísticas.

No elemento masculino, temos Mário Teles, amador vigoroso; Firmino Costa, um óptimo cómico; José Duarte Vieira, interessantemente caricatural; / 149 / Agnelo Coelho, de bom humorismo; Sebastião Amaral, distinto e expressivo e cantando belamente; António José Flamengo, autor e doublé de intérprete brilhante; F. Morais Sarmento, rapazinho ainda, mas uma vincada vocação artística; e Luís António, um basso esplêndido.(...)»

O artigo termina com a apreciação da peça, dizendo:

«(...) «Molho de Escabeche» é da autoria de António José Flamengo (o poema) e do Dr. Luís Carlos Regala (os versos), que escreveram uma revista melhor do que muitas que se exibem no teatro de profissionais. Debaixo do seu aliciante e vistoso aspecto de fantasia, tem acentuado religiosismo e vivo carácter. Obra escrita com paixão e entusiasmo – ela não podia deixar de ser, pois, uma peça interessante, vivaz, calorosa de sentimento e entusiástica de exaltação patriótica e moral. Não lhe falta a charge feliz, a legenda espirituosa e a nota de crítica, mas nela abunda o cunho regionalista e o panorama de fantasia, tudo numa sugestiva conjunção de belezas visuais e de aparatosos efeitos cénicos para o que muito concorreu a excelência, o bom gosto e o luxo dos cenários e guarda-roupa verdadeiramente encantadores, ricos e atraentes, dando à peça uma montagem cénica superior à de muitas revistas do nosso teatro.

A música é de João Lé – são trinta números encantadores, belamente instrumentados, aos quais uma orquestra de 30 figuras, entre as quais os distintos professores Mário Delgado, Manuel Ruivo e José de Magalhães, idos do Porto, sob a direcção proficiente do autor, deram o máximo relevo.

Lindo espectáculo, pois, a afirmação absoluta e concreta de como se faz melhor arte, tantas vezes, entre os amadores do que no meio dos profissionais.»

Veremos, a seguir, o que disse “O Primeiro de Janeiro”, de 17 de Março de 1941.

«A PEÇA «Molho de Escabeche» mostra-nos a hospitalidade de Aveiro quando recebe os dois serranos que descem da montanha solitária ao ambiente acolhedor do Litoral. Depois, curiosos apontamentos típicos da Beira-Mar. A seguir, a tarefa das empilhadeiras, a evocação de uma tragédia marítima, a tradicional e característica Festa dos Ramos, um apontamento ruidoso do Carnaval, um friso de tricanas com os seus xailes, uma tirada patriótica marcada junto da Nau «Portugal», a nota romântica ao longo da Ria, a alegoria à laboriosa população da Bairrada, as apoteoses movimentadas às gentes do mar e da Indústria.

Versos mimosos e agradáveis. Algumas charges felizes – à Nau, no Cortejo Histórico, e à regulamentação dos trajos nas nossas praias. Recortam-se, / 150 / ainda, algumas rábulas de intencional efeito, como Doido por festas, Velho pescador, Amador de cacos e Boémio. Apontam-se, ainda, alguns quadros decorativos de sabor local.

António José Flamengo, autor do poema, e o Dr. Luís Regala, que escreveu os versos, foram os cozinheiros deste saboroso e tão característico «Molho de Escabeche», que, sem hesitação, pode ser servido em qualquer dos nossos palcos, com a certeza de satisfazer. É pena que alguns sambas, integrando a fantasia no ritmo estrangeiro, desviem a peça do seu verdadeiro carácter.

A MÚSICA – Pertence ao professor João Lé a partitura, que é agradável e melodiosa, embora de quando em quando, influenciada por números internacionais. Possui um minuete delicado e um concertante inspirado, cheio de contrastes e bem orquestrado. O fado-canção tem sentimento, assim como o número do Cavador. A valsa de Nóbrega e Sousa tem suavidade e largueza. A orquestra, sob a direcção de João Lé, deu atenta execução à partitura.

A INTERPRETAÇÃO – Não se pode exigir mais de amadores. Todos trabalharam com vontade. Muita mocidade e alegria. Por vezes, um certo dinamismo. Um dos grandes factores do êxito da fantasia está, sem dúvida, no seu desempenho. Ângela de Jesus, à frente do conjunto, é uma revelação. Canta, diz com intenção e a gesticulação é precisa, certa. Naturalidade e frescura, duas características que se notam nos seus trabalhos. Está ali o estofo de uma actriz. Laura de Albuquerque é outro valor nas suas interpretações comunicativas de alegria e ternura. Adelaide Ferreira, muito graciosa. Lourdes Teles tem a presença semelhante a certas vedetas do Cinema. É uma alegre commère. Ester Amaral, a Micas, mostrou seguras aptidões para característica. Maria Celeste Matos foi... um sorriso, num chefe de quadro. Maria do Céu Lourenço, Virgínia Calisto, Democracia Graça e Zídia Lemos, bons elementos. António José Flamengo – um dos autores – deu relevo aos seus personagens, embora num deles – Doido por festas – tivesse retoque um pouco carregado. Sebastião Amaral fez vários tipos de graça. F. Morais Sarmento dispõe de vivacidade e vontade de acertar; as suas interpretações demonstram qualidade. Luís António – um baixo com qualidades – houve-se correctamente. Mário Teles fez, com sentido de observação, o Velho pescador. Firmino Costa, José Duarte Vieira e Agnelo Coelho dão boa colaboração.

Aprumado o corpo coral, sobretudo rostos sorridentes, exteriorizando a alegria precisa no teatro musicado. Equilíbrio e harmonia nas marcações. Sonoridade afirmada nos coros.

MONTAGEM – A peça está esmeradamente montada. Cenários de bom colorido – aspectos panorâmicos de Aveiro que são surpreendentes de beleza. O guarda-roupa acusa magnífico desenho decorativo e é luxuoso.

Em resumo: um atraente e agradável espectáculo.» / 151 /

O que atrás se transcreve é uma parte do que publicou o jornal “O Primeiro de Janeiro”, de 17 de Março de 1941.

A propósito da interpretação do Doido por Festas, vem a talhe de foice dizer que, no primeiro espectáculo do Coliseu, um dos censores que havia assistido ao ensaio, que serviu para a respectiva comissão fazer a censura, ao ver o desempenho de tal personagem, desabafou:

«Este levou-me; se ele tivesse, depois, representado assim, eu cortava este personagem, pois, agora, deu-lhe a intenção que ele – que é o autor – desejava dar, e que, no ensaio, teve a habilidade de encobrir. É certo que as palavras são as mesmas, mas a maneira de dizer foi outra...».

Mas... para o êxito desta, como o de todas as outras peças teatrais, contribuem, não somente os figurantes – que o espectador, repimpadamente, sentado na sua cadeira, vê desfilar pelo palco –, como, também, outros que se não vêem.

Quem nunca assistiu ao que se passa nos bastidores, não pode calcular o movimento que por lá se faz.

São os carpinteiros que têm de desmontar e montar os cenários num tempo mínimo, a fim de evitar que os intervalos se tornem excessivamente demorados, para o que é necessário ter tudo em ordem, com um chefe capaz de dirigir a equipa de forma a que cada um dos seus componentes se desempenhe da obrigação que lhe foi distribuída, sem atropelos: o Belmiro Fartura, que tinha enorme facilidade de resolver os problemas que surgiam, comandava uma equipa treinada por ele e que era muito eficiente. No Coliseu dos Recreios ouvi eu os profissionais de palco tecerem-lhe os maiores elogios.

E são os homens das cordas que movimentam as cortinas, os telões e o pano de boca, que têm de estar atentos, e executar, a tempo, as ordens dadas pelo contra-regra, ou, como aconteceu nas revistas de que tenho vindo a falar, estarem, com muita atenção aos toques de campainha e às luzes de várias cores manobradas pelo ponto que tomou para si o encargo de comandar o pessoal do palco (com o fim de facilitar a missão do contra-regra) e, até, de fazer o pré-aviso e a ordem de execução ao chefe da orquestra e aos próprios músicos.

E, sem qualquer vaidade da minha parte, quero recordar a cara de espanto dos profissionais do Coliseu, quando lhes pedi para fazerem a montagem das luzes e campainhas nos locais que lhes indiquei, com ligação a um painel que estava no buraco do ponto, (que nós havíamos levado de Aveiro) e do qual fizemos uso em todos os espectáculos. Questionaram, e não queriam fazer tal serviço, por entenderem ser uma chinesice, pois, na sua opinião, o ponto não tinha possibilidade de se manter atento ao decorrer da peça, ao comportamento dos personagens e, ainda, manobrar o tal painel. Nunca tinham feito tal coisa.

Foi necessária a intervenção enérgica do empresário do Coliseu, para que / 152 / o electricista, com a ajuda do falecido Mário Pessoa, conseguisse ter o trabalho pronto um pouco antes de se iniciar o espectáculo.

E é o contra-regra que tem de andar atrás de toda a gente para que, a tempo e horas, não falhem nas suas entradas, saibam as suas primeiras palavras (não vá ter uma amnésia) e não se esqueçam de levar consigo os objectos de que devam servir-se em cena.

O Natividade e Silva, formado (pela muita prática) na execução desse lugar, foi o escolhido, e sempre o desempenhou a contento de todos devido à sua paciência e diplomacia, ou melhor, maleabilidade.

Na preparação dos espectáculos, outros personagens têm de trabalhar muito: ensaiadores, caracterizadores, aderecistas, etc., etc. de que, talvez, venha a falar, noutra ocasião.

Por agora, faço ponto final nestas coisas de teatro, para não me tornar maçador.

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