Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Navio Desertas

Ao falar da base aeronaval estabelecida pela França em S. Jacinto aquando da primeira grande guerra (1914-1918), surgiu à minha memória o que se passou com o navio DESERTAS, que encalhou entre a Costa Nova e a Vagueira.

Como já disse anteriormente, Portugal entrou naquela guerra por isso lhe ter sido imposto pela Alemanha que, para tal, lhe fez a respectiva declaração, em 1916, baseando-se no facto de lhe termos apreendido os navios mercantes que aquele país havia recolhido nos nossos portos no início dessa guerra, pois sendo nós um país neutral, a Alemanha julgava tê-los aqui em segurança.

Essa apreensão foi feita a pedido, ou por imposição, da Inglaterra, com quem tínhamos e mantemos o tratado de aliança mais antigo do mundo; e foi feita com o argumento de que desses navios tínhamos também / 121 / para o nosso comércio externo, prejudicado com os afundamentos que os submarinos alemães faziam constantemente por todos os mares, reduzindo, dia após dia, a frota marítima não só dos países aliados, como,também a dos países neutrais.

A declaração de guerra por parte da Alemanha veio ao encontro dos desejos dos políticos portugueses de então, pois estes entendiam que Portugal tinha necessidade de entrar de forma efectiva na guerra para defender o nosso património colonial da cobiça das grandes nações (principalmente da Alemanha e da Inglaterra) que, de há muito tempo, se preparavam para se apossarem desse património e o dividirem entre si (facto que ainda se não tinha realizado por falta de entendimento quanto à fatia a distribuir por cada qual); entendiam os nossos políticos – dizia eu – haver necessidade de Portugal entrar de forma efectiva na guerra, ao lado dos países aliados, para, na Conferência da Paz, poder fazer prevalecer o direito que nos assistia não só a mantermos às terras que havíamos descoberto, conquistado e civilizado através dos séculos, e à custa de muitas vidas, muitos esforços e de muito dinheiro, como, também, para que nos fossem devolvidas aquelas que, há relativamente pouco tempo, nos haviam sido arrepanhadas, como aconteceu com Naulila, em Angola. (1)

Quando começou a constar que o nosso governo iria fazer a apreensão dos navios recolhidos nos nossos portos, os maquinistas desses navios, que se encontravam a bordo dos mesmos, por ordens recebidas ou por combinação entre si, resolveram fazer «sabotagem» em todos eles, retirando peças essenciais para evitar que as máquinas pudessem trabalhar, peças que esconderam e, até, inutilizaram.

Desta forma, e, pelo menos de imediato, os navios não poderiam navegar.

Para administrar e explorar os navios apreendidos, foi organizada uma empresa pública estatal denominada TRANSPORTES MARÍTIMOS DO ESTADO e a esses navios foram dados nomes portugueses.

Daqueles que a engenharia portuguesa conseguiu pôr a navegar, nunca me esqueceu o nome de dois: o DESERTAS, por ter encalhado ao sul da Costa Nova, e o PORTO, no qual o Dr. António José de Almeida, então Presidente da República, fez uma viagem oficial ao Brasil, aonde chegou com um atraso de muitos dias daquele que havia sido previsto, depois de uma viagem bastante trabalhosa e durante o qual o PORTO teve muitas avarias, chegando a temer-se que ele não conseguisse chegar ao seu destino.

E as consequências deste atraso foram tais que o Dr. António José de Almeida, ao desembarcar, foi prevenido que se preparavam manifestações contra a sua pessoa, mesmo no Congresso onde teria de falar; porém, o seu tacto político e, sobretudo, o seu poder de oratória eram tais que conseguiram suplantar as más vontades nascidas pela demora da chegada, e exploradas pelos inimigos da República homiziados no Brasil. / 122 /

Ficaram célebres os seus discursos no Congresso Brasileiro e na Academia de Medicina…

O que foi a administração dos TRANSPORTES MARÍTIMOS DO ESTADO, a pouca vergonha que nela reinou, o descrédito a que chegou e os prejuízos que deu ao País, tudo isso foram assuntos tratados na imprensa da época e no Parlamento, tendo ficado já demonstrado que o Estado é um péssimo patrão e os seus delegados uns maus gestores pois, pessoalmente, nada têm a perder com os erros praticados e os prejuízos que deram as empresas por eles administradas.

Haverá algumas excepções, mas essas confirmam a regra.

Ora o DESERTAS, como já se disse acima, numa das suas viagens, encalhou na areia ao sul da Costa Nova, mas ficou em posição tal que se calculou haver possibilidade de o pôr a navegar, puxando-o do mar; porém, apesar dos esforços feitos neste sentido, não se conseguiu arrancá-lo das areias que o envolviam.

E, porque todos os navios, nessa altura, faziam muita falta, visto que os submarinos alemães continuavam a pôr no fundo todos os navios mercantes e até de passageiros que encontravam na sua rota, houve um engenheiro português que pensou salvar o DESERTAS, abrindo um canal desde o lugar em que ele se encontrava, junto ao mar, até à ria e, depois, fazê-lo sair pela Barra.

Era projecto muito ambicioso para a época, atendendo ao maquinismo de que, então, se podia dispor, e era caro, porque, além do canal acima referido, havia que aprofundar a ria, e remover a ponte das «portas de água» antes do navio chegar ao canal que lhe daria saída para o mar.

A operação terminou com êxito, demorando, porém, muito mais tempo do que o previsto e custando muito mais dinheiro do que o orçamentado, dizendo-se nessa altura que dois ou três indivíduos privilegiados como fornecedores dos materiais necessários para tal operação se «ajeitaram», e bem.

Por volta de Setembro de 1918, o DESERTAS, já então prestes a navegar, foi bombardeado por um ou mais submarinos alemães que, desde o cabo Espichel, vinham fazendo estragos e metendo no fundo vários navios, à vista da terra, sem que os tenham perseguido, e sem que tenham avisado o Centro de Aviação Marítima, ou mesmo, a Artilharia do Norte.

Os aviadores franceses, só depois do bombardeamento é que saíram dos «hangares» com os seus hidroaviões, mas operaram com tal firmeza e serenidade na perseguição dos submarinos que conseguiram afundar um deles, o que verificaram pelas manchas de óleo que vieram à superfície do mar, no local em que as bombas dos hidroaviões atingiram o submarino.

Tudo isto se lê nos jornais daquele tempo, havendo um que nos diz que tripulavam / 123 / o hidro que afundou o submarino os guarda-marinhas Lucas e Schuvob, este último ostentando o emblema de ter tomado parte na batalha de Verdun.

Dizia-se, na altura, que certo comerciante, conhecido por germanófilo e estabelecido em Aveiro, fora visto, de noite, na «meia laranja» a fazer sinais luminosos para o mar, dias antes do ataque dos submarinos.

Verdade ou mentira, o certo é que a maioria da população aveirense o considerava espião, havendo, contra ele, tão má vontade que, tempos após o final da guerra, ele se retirou de Aveiro onde se sentia deslocado.

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(1) – Foi aqui que ocorreu o combate de Naulila, uma batalha travada em 18 de Dezembro de 1914, entre forças portuguesas e alemãs.

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