Ao
falar da base aeronaval estabelecida pela França em S. Jacinto aquando
da primeira grande guerra (1914-1918), surgiu à minha memória o que se
passou com o navio DESERTAS, que encalhou entre a Costa Nova e a
Vagueira.
Como já disse anteriormente, Portugal
entrou naquela guerra por isso lhe ter sido imposto pela Alemanha que,
para tal, lhe fez a respectiva declaração, em 1916, baseando-se no facto
de lhe termos apreendido os navios mercantes que aquele país havia
recolhido nos nossos portos no início dessa guerra, pois sendo nós um
país neutral, a Alemanha julgava tê-los aqui em segurança.
Essa apreensão foi feita a pedido, ou por
imposição, da Inglaterra, com quem tínhamos e mantemos o tratado de
aliança mais antigo do mundo; e foi feita com o argumento de que desses
navios tínhamos também
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para o nosso comércio externo, prejudicado com os afundamentos que os
submarinos alemães faziam constantemente por todos os mares, reduzindo,
dia após dia, a frota marítima não só dos países aliados, como,também
a dos países neutrais.
A declaração de guerra por parte da Alemanha
veio ao encontro dos desejos dos políticos portugueses de então, pois
estes entendiam que Portugal tinha necessidade de entrar de forma
efectiva na guerra para defender o nosso património colonial da cobiça
das grandes nações (principalmente da Alemanha e da Inglaterra) que, de
há muito tempo, se preparavam para se apossarem desse património e o
dividirem entre si (facto que ainda se não tinha realizado por falta de
entendimento quanto à fatia a distribuir por cada qual); entendiam os
nossos políticos – dizia eu – haver necessidade de Portugal entrar de
forma efectiva na guerra, ao lado dos países aliados, para, na
Conferência da Paz, poder fazer prevalecer o direito que nos assistia
não só a mantermos às terras que havíamos descoberto, conquistado e
civilizado através dos séculos, e à custa de muitas vidas, muitos
esforços e de muito dinheiro, como, também, para que nos fossem
devolvidas aquelas que, há relativamente pouco tempo, nos haviam sido
arrepanhadas, como aconteceu com Naulila, em Angola.
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Quando começou a constar que o nosso governo
iria fazer a apreensão dos navios recolhidos nos nossos portos, os
maquinistas desses navios, que se encontravam a bordo dos mesmos, por
ordens recebidas ou por combinação entre si, resolveram fazer
«sabotagem» em todos eles, retirando peças essenciais para evitar que as
máquinas pudessem trabalhar, peças que esconderam e, até, inutilizaram.
Desta forma, e, pelo menos de imediato, os
navios não poderiam navegar.
Para administrar e explorar os navios
apreendidos, foi organizada uma empresa pública estatal denominada
TRANSPORTES MARÍTIMOS DO ESTADO e a esses navios foram dados nomes
portugueses.
Daqueles que a engenharia portuguesa
conseguiu pôr a navegar, nunca me esqueceu o nome de dois: o DESERTAS,
por ter encalhado ao sul da Costa Nova, e o PORTO, no qual o Dr. António
José de Almeida, então Presidente da República, fez uma viagem oficial
ao Brasil, aonde chegou com um atraso de muitos dias daquele que havia
sido previsto, depois de uma viagem bastante trabalhosa e durante o qual
o PORTO teve muitas avarias, chegando a temer-se que ele não conseguisse
chegar ao seu destino.
E as consequências deste atraso foram tais
que o Dr. António José de Almeida,
ao desembarcar, foi prevenido que se preparavam manifestações contra a
sua pessoa, mesmo no Congresso onde teria de falar; porém, o seu tacto
político e, sobretudo, o seu poder de oratória eram tais que conseguiram
suplantar as más vontades nascidas pela demora da chegada, e exploradas
pelos inimigos da República homiziados no Brasil.
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Ficaram célebres os seus discursos no
Congresso Brasileiro e na Academia de Medicina…
O que foi a administração dos TRANSPORTES
MARÍTIMOS DO ESTADO, a pouca vergonha que nela reinou, o descrédito a
que chegou e os prejuízos que deu ao País, tudo isso foram assuntos
tratados na imprensa da época e no Parlamento, tendo ficado já
demonstrado que o Estado é um péssimo patrão e os seus delegados uns
maus gestores pois, pessoalmente, nada têm a perder com os erros
praticados e os prejuízos que deram as empresas por eles administradas.
Haverá algumas excepções, mas essas
confirmam a regra.
Ora o DESERTAS, como já se disse acima, numa
das suas viagens, encalhou na areia ao sul da Costa Nova, mas ficou em
posição tal que se calculou haver possibilidade de o pôr a navegar,
puxando-o do mar; porém, apesar dos esforços feitos neste sentido, não
se conseguiu arrancá-lo das areias que o envolviam.
E, porque todos os navios, nessa altura,
faziam muita falta, visto que os submarinos alemães continuavam a pôr no
fundo todos os navios mercantes e até de passageiros que encontravam na
sua rota, houve um engenheiro português que pensou salvar o DESERTAS,
abrindo um canal desde o lugar em que ele se encontrava, junto ao mar,
até à ria e, depois, fazê-lo sair pela Barra.
Era projecto muito ambicioso para a época,
atendendo ao maquinismo de que, então, se podia dispor, e era caro,
porque, além do canal acima referido, havia que aprofundar a ria, e
remover a ponte das «portas de água» antes do navio chegar ao canal que
lhe daria saída para o mar.
A operação terminou com êxito, demorando,
porém, muito mais tempo do que o previsto e custando muito mais dinheiro
do que o orçamentado, dizendo-se nessa altura que dois ou três
indivíduos privilegiados como fornecedores dos materiais necessários
para tal operação se «ajeitaram», e bem.
Por volta de Setembro de 1918, o DESERTAS,
já então prestes a navegar, foi bombardeado por um ou mais submarinos
alemães que, desde o cabo Espichel, vinham fazendo estragos e metendo no
fundo vários navios, à vista da terra, sem que os tenham perseguido, e
sem que tenham avisado o Centro de Aviação Marítima, ou mesmo, a Artilharia do Norte.
Os aviadores franceses, só depois do
bombardeamento é que saíram dos «hangares» com os seus hidroaviões, mas
operaram com tal firmeza e serenidade na perseguição dos submarinos que
conseguiram afundar um deles, o que verificaram pelas manchas de óleo
que vieram à superfície do mar, no local em que as bombas dos
hidroaviões atingiram o submarino.
Tudo isto se lê nos jornais daquele tempo,
havendo um que nos diz que tripulavam
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o hidro que afundou o submarino os guarda-marinhas Lucas e Schuvob, este
último ostentando o emblema de ter tomado parte na batalha de Verdun.
Dizia-se, na altura, que certo comerciante,
conhecido por germanófilo e estabelecido em Aveiro, fora visto, de
noite, na «meia laranja» a fazer sinais luminosos para o mar, dias antes
do ataque dos submarinos.
Verdade ou mentira, o certo é que a maioria
da população aveirense o considerava espião, havendo, contra ele, tão má
vontade que, tempos após o final da guerra, ele se retirou de Aveiro
onde se sentia deslocado. |