Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Chegada dos franceses em 1916

O meu amigo Daniel Constant, além de ser conhecido como aguarelista de muito mérito, que dedica a sua paixão artística aos aspectos da Ria de Aveiro, e às flores, é-o, também, como jornalista, visto que manteve, durante muitos anos, às sextas-feiras, no "Primeiro de Janeiro", uma secção sobre TURISMO, a qual era lida com muito interesse.

Biplano na Barra. Fotografia de Lívio Salgueiro, em Agosto de 1922. Clique na imagem.

Publica, agora, nas páginas dominicais daquele jornal, uma outra secção que denominou MEMÓRIAS DE UM JORNALISTA, tanto mais que quem, como ele, viveu uma vida bastante diversificada e muito viajou, tem, naturalmente, muito que contar.

Ora, num destes domingos, evocou a chegada e estadia dos franceses a S. Jacinto (onde o Daniel Constant passou muito do tempo da sua meninice e, até, do da sua juventude), em 1916, para montarem e manterem a base aeronaval destinada a vigiar a costa portuguesa, que era muito visitada pelos submarinos alemães, que nela actuavam com resultados positivos.

Estávamos no período da «Grande Guerra», que durou de 1914 a 1918, e na qual Portugal tomou parte contra a Alemanha, que, em 1916, nos declarou guerra pelo facto de lhe termos apreendido os navios mercantes que, no princípio do combate, se haviam abrigado nos nossos portos; esta apreensão foi feita a pedido da Inglaterra que baseou essa solicitação no tratado de aliança existente entre os dois países.

Não vou aqui fazer História, pois só factos referentes a Aveiro me propus contar.

A preferência dos franceses por S. Jacinto, depois de terem percorrido toda a costa portuguesa, deve-se ao facto do estuário da nossa Ria, naquele / 117 / local, lhes oferecer uma pista grande e segura para a «amarissage» dos seus hidroaviões e, ainda, porque os «hangares» onde estes deveriam ser guardados, ficariam escondidos do mar devido à grande língua de areia existente entre ele e a Ria.

E o Constant evoca o nome de alguns dos oficiais franceses – tudo gente de categoria social – e a vida que faziam naquela povoação, da qual só podiam sair em lancha para o Forte da Barra, onde, para maior facilidade de atracação das lanchas, eles construíram uma ponte de madeira que o público denominou de «ponte dos franceses».

É que a actual estrada que liga S. Jacinto à terra ainda estava muito longe de ser construída…

Outrossim, ele evoca o sargento Napoleón, que lhe fazia miniaturas dos hidroaviões, para brincar.

Pois eu atrevo-me a evocar toda aquela rapaziada de boina com «pompom» vermelho que, quando vinha à cidade, gostava de conviver e de se divertir e que, por cá, criou muitas amizades; e lembro-me, sobretudo, do cabo Jacques, figura muito conhecida de todos os aveirenses de então –, vermelhusco, de perinha, que todos, ou quase todos os dias, vinha à cidade fazer compras, aproveitando essa vinda na visita a «capelinhas da sua devoção» nas quais, com uns copitos, ia matando as saudades que tinha da família que havia deixado em França; e lembro-me de o ver «espalhar-se» da bicicleta – transporte que ele, normalmente, usava na cidade e ao dar a volta quando da Ponte das Almas se dirigia para os Arcos, talvez com um «grãozito» na asa…

Mas... o que o artigo do Constant me obrigou a recordar, e eu quero contar, foi a festa de homenagem que Aveiro dedicou aos franceses, que em S. Jacinto viviam, e à França, no dia da sua Festa Nacional, em 14 de Julho de 1918.

Aproveitando a sugestão do jornal "O de Aveiro" pela pena do seu ilustre director, Homem Cristo, a Sociedade Recreio Artístico resolveu tomar a iniciativa das festas a realizar em 14 de Julho: presidia à direcção Albino Pinto de Miranda.

Para tal efeito, promoveu uma reunião na sua sede e na qual tomaram parte os presidentes da Câmara Municipal, Clube Mário Duarte, Centro Evolucionista, Centro Democrático, os das duas corporações de Bombeiros, Associação dos Empregados do Comércio e Montepio Aveirense.

Presidiu a esta reunião o Dr. Lourenço Peixinho e secretariaram-no António Calheiros e Lívio Salgueiro, representando, respectivamente, a Câmara Municipal, o Clube Mário Duarte e o Centro Evolucionista: e, nela, foi constituída uma comissão, para tratar das referidas festas, composta por aqueles cidadãos e mais os seguintes: Manuel Lopes da Silva Guimarães, Francisco Elias de Carvalho Simão e Albino Pinto de Miranda. / 118 /

Também se organizou uma comissão especial para tratar do almoço a oferecer aos oficiais franceses, presidida pelo Vice-Almirante Vicente Coutinho de Almeida d'Eça e composta de pessoas gradas da cidade.

“O de Aveiro”, no seu número de 8 de Julho, publicou a letra da Marselhesa e – como ele dizia –, à cautela, a da Portuguesa; e, no número seguinte, em fundo, um artigo explicando o que se passou em 14 de Julho de 1789.

Vejamos o programa das festas:

No dia 13, à noite, entraram na cidade grupos organizados nas aldeias vizinhas: S. Bernardo, Quinta do Gato, Aradas, Quintãs e Esgueira, que se dirigiram para o Rossio; este estava iluminado com balões à veneziana, pendurados nas árvores, e tinha palanques para todos os grupos poderem exibir as suas danças e as suas cantigas, que foram aplaudidas pelos milhares de pessoas que enchiam aquele recinto.

A este espectáculo, que durou até cerca das 3 horas da manhã, assistiram, de uma tribuna donde se viam todos os palanques, os oficiais franceses, e terminou com a Marselhesa e a Portuguesa entoadas por toda a gente: um delírio!

No domingo, 14, a alvorada começou com repiques de sinos e foguetes: e 3 bandas de música percorreram as ruas da cidade.

Às dez horas, pôs-se em marcha, do canal Central para S. Jacinto, o passeio fluvial (número da responsabilidade da Sociedade Recreio Artístico) e no qual se incorporaram inúmeros barcos, devidamente embandeirados, sendo impossível descrever a alegria e o entusiasmo que reinou entre as numerosíssimas pessoas que nele tomaram parte: só visto!

As escolas da cidade, e as dos arredores, integraram-se nas cerimónias realizadas em S. Jacinto, para o que toda a miudagem aprendeu a cantar a Marselhesa.

Quando o professor António Rodrigues Pepino, em nome das Escolas, e o Director do Asilo, Padre Lourenço Salgueiro, saudaram a França na pessoa do comandante Larrouy, e as crianças cantaram a Marselhesa, acompanhadas pela fanfarra do Asilo, nos olhos daquele comandante, e nos dos oficiais sob as suas ordens, bailavam lágrimas de gratidão por tão espontânea manifestação, lágrimas que eles não tentaram esconder.

No regresso, à tardinha, continuou a reinar a alegria e o entusiasmo, ouvindo-se sempre as estrofes da Marselhesa e as da Portuguesa.

À noite – e organizada pelo Clube dos Galitos – realizou-se uma «marche aux flambeaux» que percorreu as principais ruas da cidade, a qual deslumbrou os oficiais franceses que a viram passar das janelas daquele Clube.

Um deles fez uma alocução em Francês – o oficial não sabia falar português – que o público aplaudiu (apesar de não saber do seu conteúdo) por calcular que esse oficial agradecia a manifestação, tanto mais que ele terminou com um viva a Portugal.
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Foi outro número extraordinário, pela quantidade de gente que se incorporou, e pela vibração e entusiasmo que, dela, dimanava.

Muitos marinheiros franceses confraternizavam com a população local.

O almoço, no Teatro Aveirense, devidamente ornamentado, decorreu com solenidade e a ele assistiram 80 pessoas. O primeiro brinde foi feito, em francês, pelo Vice-Almirante Almeida d'Eça, a que respondeu o Comandante Larrouy, num improviso.

Falaram, ainda, o Dr. Joaquim de Melo Freitas (como representante do Governador Civil), o Comandante Militar de Aveiro, o Comandante Tavares da Silva (oficial de Marinha junto dos oficiais franceses) e o Dr. Luís de Brito Guimarães, professor do nosso Liceu.

Foi uma grande festa!...

Homem Cristo, que não era de muitos entusiasmos, delirou com a maneira como tudo decorreu.

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