O meu amigo Daniel
Constant, além de ser conhecido como aguarelista de muito
mérito, que dedica a sua paixão artística aos aspectos da Ria de Aveiro,
e às flores, é-o, também, como jornalista, visto que manteve, durante
muitos anos, às sextas-feiras, no "Primeiro de Janeiro", uma secção
sobre TURISMO, a qual era lida com muito interesse. |
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Biplano na Barra.
Fotografia de Lívio Salgueiro, em Agosto de 1922. Clique na imagem. |
Publica, agora, nas páginas dominicais
daquele jornal, uma outra secção que denominou MEMÓRIAS DE UM
JORNALISTA, tanto mais que quem, como ele, viveu uma vida bastante
diversificada e muito viajou, tem, naturalmente, muito que contar.
Ora, num destes domingos, evocou a chegada e
estadia dos franceses a S. Jacinto (onde o Daniel Constant passou muito
do tempo da sua meninice e, até, do da sua juventude), em 1916, para
montarem e manterem a base aeronaval destinada a vigiar a costa
portuguesa, que era muito visitada pelos submarinos alemães, que nela
actuavam com resultados positivos.
Estávamos no período da «Grande Guerra», que
durou de 1914 a 1918, e na qual Portugal tomou parte contra a Alemanha,
que, em 1916, nos declarou guerra pelo facto de lhe termos apreendido os
navios mercantes que, no princípio do combate, se haviam abrigado nos
nossos portos; esta apreensão foi feita a pedido da Inglaterra que
baseou essa solicitação no tratado de aliança existente entre os dois
países.
Não vou aqui fazer História, pois só factos
referentes a Aveiro me propus contar.
A preferência dos franceses por S. Jacinto,
depois de terem percorrido toda a costa portuguesa, deve-se ao facto do
estuário da nossa Ria, naquele
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local, lhes oferecer uma pista grande e segura para a «amarissage»
dos seus hidroaviões e, ainda, porque os «hangares» onde estes deveriam
ser guardados, ficariam escondidos do mar devido à grande língua de
areia existente entre ele e a Ria.
E o Constant evoca o nome de alguns dos
oficiais franceses – tudo gente de categoria social – e a vida que
faziam naquela povoação, da qual só podiam sair em lancha para o Forte
da Barra, onde, para maior facilidade de atracação das lanchas, eles
construíram uma ponte de madeira que o público denominou de «ponte dos
franceses».
É que a actual estrada que liga S. Jacinto à
terra ainda estava muito longe de ser construída…
Outrossim, ele evoca o sargento Napoleón,
que lhe fazia miniaturas dos hidroaviões, para brincar.
Pois eu atrevo-me a evocar toda aquela
rapaziada de boina com «pompom» vermelho que, quando vinha à cidade,
gostava de conviver e de se divertir e que, por cá, criou muitas
amizades; e lembro-me, sobretudo, do cabo Jacques, figura muito conhecida
de todos os aveirenses de então –, vermelhusco, de perinha, que todos,
ou quase todos os dias, vinha à cidade fazer compras, aproveitando essa
vinda na visita a «capelinhas da sua devoção» nas quais, com uns
copitos, ia matando as saudades que tinha da família que havia deixado
em França; e lembro-me de o ver «espalhar-se» da bicicleta – transporte
que ele, normalmente, usava na cidade e ao dar a volta quando da Ponte
das Almas se dirigia para os Arcos, talvez com um «grãozito» na asa…
Mas... o que o artigo do Constant me obrigou
a recordar, e eu quero contar, foi a festa de homenagem que Aveiro
dedicou aos franceses, que em S. Jacinto viviam, e à França, no dia da
sua Festa Nacional, em 14 de Julho de 1918.
Aproveitando a sugestão do jornal "O de
Aveiro" pela pena do seu ilustre director, Homem Cristo, a Sociedade
Recreio Artístico resolveu tomar a iniciativa das festas a realizar em
14 de Julho: presidia à direcção Albino Pinto
de Miranda.
Para tal efeito, promoveu uma reunião na sua
sede e na qual tomaram parte os presidentes da Câmara Municipal, Clube
Mário Duarte, Centro Evolucionista, Centro Democrático, os das duas
corporações de Bombeiros, Associação dos Empregados do Comércio e
Montepio Aveirense.
Presidiu a esta reunião o
Dr. Lourenço Peixinho e
secretariaram-no António Calheiros e
Lívio Salgueiro, representando,
respectivamente, a Câmara Municipal, o Clube Mário Duarte e o Centro
Evolucionista: e, nela, foi constituída uma comissão, para tratar das
referidas festas, composta por aqueles cidadãos e mais os seguintes:
Manuel Lopes da Silva Guimarães,
Francisco Elias de Carvalho Simão e
Albino Pinto de Miranda.
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Também se organizou uma comissão especial
para tratar do almoço a oferecer aos oficiais franceses, presidida pelo
Vice-Almirante Vicente Coutinho de Almeida
d'Eça e composta de pessoas gradas da cidade.
“O de Aveiro”, no seu número de 8 de Julho,
publicou a letra da Marselhesa e – como ele dizia –, à cautela, a da
Portuguesa; e, no número seguinte, em fundo, um artigo explicando o que
se passou em 14 de Julho de 1789.
Vejamos o programa das festas:
No dia 13, à noite, entraram na cidade
grupos organizados nas aldeias vizinhas: S. Bernardo, Quinta do Gato,
Aradas, Quintãs e Esgueira, que se dirigiram para o Rossio; este estava
iluminado com balões à veneziana, pendurados nas árvores, e tinha
palanques para todos os grupos poderem exibir as suas danças e as suas
cantigas, que foram aplaudidas pelos milhares de pessoas que enchiam
aquele recinto.
A este espectáculo, que durou até cerca das
3 horas da manhã, assistiram, de uma tribuna donde se viam todos os
palanques, os oficiais franceses, e terminou com a Marselhesa e a
Portuguesa entoadas por toda a gente: um delírio!
No domingo, 14, a alvorada começou com
repiques de sinos e foguetes: e 3 bandas de música percorreram as ruas
da cidade.
Às dez horas, pôs-se em marcha, do canal
Central para S. Jacinto, o passeio fluvial (número da responsabilidade
da Sociedade Recreio Artístico) e no qual se incorporaram inúmeros
barcos, devidamente embandeirados, sendo impossível descrever a alegria
e o entusiasmo que reinou entre as numerosíssimas pessoas que nele
tomaram parte: só visto!
As escolas da cidade, e as dos arredores,
integraram-se nas cerimónias realizadas em S. Jacinto, para o que toda a
miudagem aprendeu a cantar a Marselhesa.
Quando o professor
António Rodrigues Pepino, em nome das Escolas, e o Director
do Asilo, Padre Lourenço Salgueiro,
saudaram a França na pessoa do comandante Larrouy, e as crianças
cantaram a Marselhesa, acompanhadas pela fanfarra do Asilo, nos olhos
daquele comandante, e nos dos oficiais sob as suas ordens, bailavam
lágrimas de gratidão por tão espontânea manifestação, lágrimas que eles
não tentaram esconder.
No regresso, à tardinha, continuou a reinar
a alegria e o entusiasmo, ouvindo-se sempre as estrofes da Marselhesa e
as da Portuguesa.
À noite – e organizada pelo Clube dos
Galitos – realizou-se uma «marche aux flambeaux» que percorreu as
principais ruas da cidade, a qual deslumbrou os oficiais franceses que a
viram passar das janelas daquele Clube.
Um deles fez uma alocução em Francês – o oficial não sabia falar
português – que o público aplaudiu (apesar de não saber do seu conteúdo)
por calcular que esse oficial agradecia a manifestação, tanto mais que
ele terminou com um viva a Portugal.
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Foi outro número extraordinário, pela
quantidade de gente que se incorporou, e pela vibração e entusiasmo que,
dela, dimanava.
Muitos marinheiros franceses
confraternizavam com a população local.
O almoço, no Teatro Aveirense, devidamente
ornamentado, decorreu com solenidade e a ele assistiram 80 pessoas. O
primeiro brinde foi feito, em francês, pelo Vice-Almirante Almeida d'Eça,
a que respondeu o Comandante Larrouy, num improviso.
Falaram, ainda, o
Dr. Joaquim de Melo Freitas (como representante do Governador
Civil), o Comandante Militar de Aveiro, o Comandante
Tavares da Silva (oficial de Marinha
junto dos oficiais franceses) e o Dr. Luís de Brito Guimarães,
professor do nosso Liceu.
Foi uma grande festa!...
Homem Cristo, que não era de muitos
entusiasmos, delirou com a maneira como tudo decorreu. |