Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Escola Industrial Fernando Caldeira

Como disse numa outra «Achega», a rapaziada do meu tempo, após ter feito o exame do 2.º grau (4.ª classe), ou ia frequentar o Liceu e, aí, continuar os seus estudos (se os pais podiam fazer as despesas necessárias), ou ia aprender um ofício, procurando, no entretanto, um que fosse mais «limpinho», como era, por exemplo, o ser marçano, especialmente, de um estabelecimento de fazendas ou modas, (que os de mercearia eram... mais sujos e, até, mais violentos, como já tive oportunidade de relatar).

É certo que, além do Liceu, havia a Escola Industrial «Fernando Caldeira», situada onde, hoje, está a Capitania do Porto; mas, nesta, ensinava-se desenho, pintura e modelação, custando, nessa altura, a propina anual 4$00 (quatro escudos), mas fornecendo a Escola, gratuitamente, o material necessário para o desenho (papel, lápis e borrachas).

Também, essa Escola, manteve, durante muito tempo, suponho que a cargo da Junta Geral do Distrito, um curso de ensino primário, dirigido por João Maria Pereira Campos Júnior, funcionário da referida Junta Geral; e, nesse curso, aprenderam a ler, escrever e contar (fim principal da sua criação) e alguns conseguiram mesmo fazer exame do 2.º grau, muitos rapazes e homens que, durante o dia, andavam nos seus trabalhos e que, em garotos, não tiveram possibilidade de frequentar a escola primária, ou porque os seus pais os não puderam dispensar da labuta das suas ocupações, ou porque à escola fugiram por garotice, falta de capacidade intelectual, ou até mesmo com medo da «tapona» que alguns professores, então, usavam como método de ensino nos alunos mais «rudes» ou nos menos atentos.

Estes cursos eram nocturnos.

Eu, com 12 anos, e sendo marçano nos Grandes Armazéns do Chiado, que tinha estabelecimento debaixo dos Arcos e com saída para a Rua de José Estêvão, apesar de não ter vocação nenhuma para o desenho, nem jeito para tal, tive de me matricular na referida Escola, pois estava determinado, superiormente, que todos os alunos do Asilo-Escola, após o exame da 4.ª classe, teriam de frequentar os cursos de desenho, fosse qual fosse a profissão que viessem a exercer pela vida adiante; e certo é que, a muitos, tal curso foi proveitoso, pois os ajudou a ser bons profissionais.

Fui lá encontrar como professor de desenho e director – qualidade em que se manteve até ser reformado – Francisco Augusto da Silva Rocha, que à Escola de «Fernando Caldeira» se dedicava com todo o carinho e lhe queria como se fosse coisa sua; e, como professor de desenho e de modelação, o alemão / 103 / Richter que, segundo se dizia nessa altura, fora contratado para ensinar modelação, mas que disto pouco ou nada sabia…

Este professor teve sempre dificuldade em se expressar em português, apesar de por cá ter estado muitos anos; e, quando se zangava com os alunos, berrava uma «algaraviada» que nem o diabo entendia e que, em vez de impor respeito ou medo, provocava o riso.

Na altura do primeiro conflito mundial (1914-1918) e quando a Alemanha declarou guerra a Portugal (1916), o professor Richter, como aliás todos os alemães residentes em Portugal, teve de regressar à sua terra com a família, tanto mais que um dos filhos – o João Teodoro –, com 15 anos, estava na idade de ser mobilizado para a vida militar.

Contava-se que, na altura do começo daquela guerra e na previsão de ter de retirar-se para a Alemanha, o professor Richter pretendeu fazer exame do 2.º grau, pois pensava ser, lá, professor de português; e, quando se lhe dizia que ele não seria capaz de fazer tal exame, tanto mais que escrevia muito mal a nossa língua e a falava muito pior – e que, portanto, não podia ensinar o que não sabia – alegava que, ele, ao menos, ainda aqui tinha vivido muitos anos e que, por isso, ainda entendia as pessoas e se fazia compreender, ao passo que o Marques Mano, professor de alemão no nosso Liceu, nunca tinha estado na Alemanha. Assim, concluía que era de maior razão ele ensinar português na Alemanha, que o Marques Mano ensinar alemão em Portugal.

O restante pessoal da Escola «Fernando Caldeira» eram os contínuos Santos (o encarregado de fazer as chamadas) e Martinho (que tinha a seu cargo manter a disciplina) e, ainda João Mota, na secretaria; este, durante o dia, era escriturário do Cartório Notarial do Dr. André dos Reis, e, foi mais tarde, funcionário do Banco Regional de Aveiro.

Em 1915, foi criado, na escola «Fernando Caldeira», o Curso Elementar do Comércio a que se refere o decreto de 24 de Dezembro de 1901, composto pelas seguintes disciplinas: «Matemática; Língua Pátria; Língua Francesa; Geografia; Ciências; e Escrituração Comercial». / 104 /

Aquela escola passou, então, a denominar-se «Escola Industrial e Comercial Fernando Caldeira». Foram nomeados, para nela leccionarem aquelas disciplinas, professores do Liceu de Aveiro; porém, para a de Escrituração Comercial, veio de Coimbra o Dr. Barjona de Freitas que também foi professor do nosso Liceu quando, neste, foi criado o Curso Complementar (7.º ano), pois, até aí, só havia frequência até ao 5.º ano; e, para a de Ciências, foi contratado Duarte Melo, engenheiro de Via e Obras da C.P. e cuja repartição se situava num anexo à estação desta cidade.

Salvo erro de memória, no primeiro ano, estudávamos Matemática, Língua Pátria e Escrituração Comercial, fazendo exame de Matemática; no segundo, Língua Pátria, Língua Francesa e Escrituração Comercial, fazendo exame das duas primeiras; e no terceiro, Ciências e Escrituração Comercial, fazendo exame destas.

Na disciplina de Escrituração Comercial estavam incluídas noções de cálculo, código, direito, etc., dadas sem aprofundamento das matérias, mas com conhecimentos gerais e bastantes que nos permitiam estudar os problemas que, na prática, nos surgissem.

E as disciplinas estavam, assim, escalonadas, porque este curso foi projectado para pessoas que, durante o dia, tinham as suas ocupações profissionais e a quem os patrões não dispensavam as facilidades que, hoje, são dispensadas aos trabalhadores-estudantes.

De todos os professores que, no meu tempo, leccionaram naquela Escola, apenas está vivo, que eu saiba, o Dr. José Pereira Tavares; e, dos alunos que comigo terminaram o curso, estamos unicamente, e por enquanto, três.

Com a anexação do Curso Comercial, o edifício onde a Escola funcionava começou a não ter as instalações necessárias e indispensáveis, pelo que Silva Rocha conseguiu arrendar a Casa do Despacho da Santa Casa da Misericórdia e, nas dependências da mesma, fazer as obras de adaptação que ele imaginava e o edifício permitia, a fim de a Escola funcionar o melhor possível, pois não havia, nessa altura, outro edifício disponível e no qual a Escola pudesse ser instalada.

E por lá foi ficando, até à construção daquele que, hoje, ela ocupa, e que, para ela, foi especialmente construído.

Em 1925, houve alteração nas disciplinas que compunham o Curso Comercial e este passou a ter a duração de quatro anos, com aulas diurnas e nocturnas, e passou a ser, também, o escoamento dos rapazes e raparigas (poucas) que, fazendo o seu exame do 2.º grau e desejando obter mais habilitações literárias que lhes permitissem ser, na vida, mais do que simples operários, não tinham possibilidades de frequentar estudos superiores. / 105 /

Desta Escola saíram não só bons artistas como, também, bons profissionais de escritório que, na prática, deram boa conta de si; e, ainda, muitos funcionários públicos e bancários que, através da sua vida profissional, demonstraram a utilidade dos conhecimentos obtidos na Escola que haviam frequentado e que nos concursos abertos para aqueles lugares, principalmente para os de finanças, obtinham classificações superiores às daqueles que tinham sido alunos do Liceu; e saíam com uma cultura geral mais vasta, pois, então, foram contratados para professores pessoas como o Dr. Alberto Souto, Dr. José Vieira Gamelas, Dr. Narciso de Azevedo, e outros que, além de ensinarem a matéria dos programas das disciplinas de que estavam encarregados, também transmitiam aos alunos os seus muitos conhecimentos práticos de ordem geral.

O Curso Industrial também sofreu grande remodelação, principalmente a partir da altura em que foi criado o ensino de entalhador, dirigido por mestre Martins que, associado a outro, formou a firma Martins & Candeias, especialistas daqueles trabalhos.

Em certa altura, os governantes implicaram com os patronos dos nossos estabelecimentos de ensino. O Liceu José Estêvão chegou a chamar-se de VASCO DA GAMA, e também esteve muito tempo sem patrono nenhum; e, à Escola, também levaram o seu Fernando Caldeira, um poeta de Águeda, que não fez mal a ninguém para o destronarem.

Para terminar, vou contar um facto que vinca bem o amor e interesse que Silva Rocha tinha pela Escola de que foi Director durante muitos anos – tantos, que os mais idosos habitantes da cidade não se lembram de ter conhecido outro, até à sua reforma.

Na altura em que eu frequentava o 3.º ano – e que tínhamos de fazer exame de Escrituração Comercial – e a mais de meio do ano, ao Dr. Barjona de Freitas deu a mania de armar em antiquário; e abandonou as suas funções docentes para ir procurar, por vilas e aldeias, objectos velhos.

Para o substituir, mandaram um «rapazito» acabado de sair da Escola Raúl Dória, sem qualquer prática, quer de ensino, quer da profissão.

Silva Rocha, que conhecia os finalistas, e tinha, com interesse, acompanhado este curso, dispensou, de acordo com o professor, a sua leccionação, tomando, para si, o encargo de os levar a exame.

Já então ele era Director da Caixa Económica de Aveiro, e, para o ser, tinha estudado alguma coisa de comércio. Como estava em causa, somente, a montagem e seguimento da escrita de uma casa comercial, ele serviu-se, para guia, de um compêndio antigo, e, por lá, dava os lançamentos a fazer, e, por lá, os verificava.

Mais tarde, e já quase no fim do ano, viemos a descobrir, por mero acaso, um exemplar daquele livro. / 106 /

Influiu na sua tomada de atitude o facto de sermos da mesma idade do professor que nos estava destinado (ou, até, mais velhos).

Ao reler as minhas duas últimas «Achegas», afIuíram-me à memória outras modificações que se fizeram nos cursos professados na Escola a que as mesmas fazem referência.

Assim, alguns anos depois de ter sido criado o Curso Comercial com a duração de quatro anos, este voltou a ter, somente, a de três, para, mais tarde, passar a ter a de cinco.

Também – suponho que na altura em que foi criado o Curso de Entalhador – na Escola iniciou-se o Curso de Lavores, sendo a sua primeira professora D. Otília Loureiro, senhora de primorosa educação, moradora na Rua da Liberdade, e que, com sua irmã, se dedicava à execução de toda a espécie de bordados.

Recordo-me de que, na altura em que devia ser feita a escolha da professora, além daquela senhora, apareceram outras candidatas com as suas «empenhocas»; e, então, as pessoas que se interessavam pela nomeação da D. Otília, (que, aliás, logrou o consenso da grande maioria daqueles que tinham «peso» na escolha), apresentaram ao Director Geral que a Aveiro veio propositadamente para resolver o assunto, não só as razões que eles entendiam ser de justiça para a nomeação da D. Otília, como, ainda, além de muitos e diversos trabalhos de grande perfeição, as bandeiras do Asilo-Escola e da Sociedade Recreio Artístico, bordadas pela D. Otília e sua irmã, a matiz, com o avesso tão perfeito como o direito – autênticas obras-primas de bordado à mão –, feitas, uma e outra, sob desenho de Jeremias Lebre, Sub-Director do Asilo Escola, o qual, nas horas vagas, se dedicava a fazer ampliações (principalmente, retratos) a «crayon» em papel «cavalinho» pois, então, não havia máquinas fotográficas para ampliar, e também, não havia máquinas de costura com as quais se fizessem bordados e outros pontos, como, hoje, as há, quer para um, quer para outro daqueles trabalhos.

Em 1948, foi, na Escola, implantado um novo curso, aquele a que se referia o Decreto n.º 37.029, de 25 de Agosto daquele ano, denominado de FORMAÇÃO FEMININA, e com as seguintes disciplinas: Português; Francês; Matemática; Economia Doméstica; Desenho; Dactilografia; Oficina e Aptidão Profissional.

Este curso, e mais a frequência das disciplinas de Físico-Química, História e Geografia (que faziam parte de outros cursos da mesma Escola) tinha, para / 107 / todos os efeitos legais, a equivalência do 5.º ano liceal, e as alunas diplomadas com ele podiam matricular-se nos exames de admissão às Escolas do Magistério Primário; e, neste, quase todas obtinham boas classificações, devido à preparação escolar obtida naquele curso de Formação Feminina.

Um amigo, muito mais velho do que eu, acaba de me informar que a Escola Industrial, antes de ter estado no edifício da Capitania, esteve noutro, numa rua que desapareceu com a abertura da Avenida do Dr. Lourenço Peixinho, junto ao «court» de ténis do Clube Mário Duarte (ou do Ginásio Clube de Aveiro?), perto do Hotel da Clarinda, ou, e mais propriamente, perto das cavalariças daquele Hotel, rua que era a continuação da do «Americano»; esta pertenceu à que, hoje, tem o nome do notável aveirense, Comandante Rocha e Cunha, sendo verdade que esta tem, agora, traçado diferente, e não tem os buracos que as vacas que puxavam os carros do transporte do sal para a estação do Caminho de Ferro, a fim de ser expedido por vagões, para toda a parte do país, tinham de vencer com um esforço tremendo (muitas vezes à custa de varadas ou do aguilhão...), visto que era preciso andar depressa para se fazerem muitos fretes, pois, no fim da semana, havia que receber dinheiro que desse para o sustento delas, dos seus proprietários e dos familiares destes.

E, já que falei em sal, aproveito para dizer que, durante muitos anos, Aveiro foi grande exportador de sal para a Espanha.

E, agora, é o que se sabe… Em vez de se exportar, importa-se.

Ainda, em Julho de 1913, a Associação Comercial de Aveiro fez uma exposição ao ministro de Portugal em Madrid, pedindo a sua interferência na manutenção do fornecimento de sal para Espanha.

Nessa altura, já a exportação tinha diminuído, mas ainda era de 10.000 toneladas por ano.

E o barco de sal para exportação tinha o valor de Esc. 60$00 (sessenta escudos).

Bons, – sei lá?! – maus tempos... mas diferentes dos actuais e que justificavam a montagem, na nossa região, da UNITECA e da VITASAL (fábrica de higienização de sal) no Cais de S. Roque.

Que diabo de salto eu dei: da Escola Industrial passei para a exportação do sal!... Desculpem-me tal salto.

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