Como disse numa outra «Achega», a rapaziada
do meu tempo, após ter feito o exame do 2.º grau (4.ª classe), ou ia
frequentar o Liceu e, aí, continuar os seus estudos (se os pais podiam
fazer as despesas necessárias), ou ia aprender um ofício, procurando, no
entretanto, um que fosse mais «limpinho», como era, por exemplo, o ser
marçano, especialmente, de um estabelecimento de fazendas ou modas, (que
os de mercearia eram... mais sujos e, até, mais violentos, como já tive
oportunidade de relatar).
É certo que, além do Liceu, havia a Escola
Industrial «Fernando Caldeira», situada onde, hoje, está a Capitania do
Porto; mas, nesta, ensinava-se desenho, pintura e modelação, custando,
nessa altura, a propina anual 4$00 (quatro escudos), mas fornecendo a
Escola, gratuitamente, o material necessário para o desenho (papel,
lápis e borrachas).
Também, essa Escola, manteve, durante muito
tempo, suponho que a cargo da Junta Geral do Distrito, um curso de
ensino primário, dirigido por João Maria
Pereira Campos Júnior, funcionário da referida Junta Geral;
e, nesse curso, aprenderam a ler, escrever e contar (fim principal da
sua criação) e alguns conseguiram mesmo fazer exame do 2.º grau,
muitos rapazes e homens que, durante o dia, andavam nos seus trabalhos e
que, em garotos, não tiveram possibilidade de frequentar a escola
primária, ou porque os seus pais os não puderam dispensar da labuta das
suas ocupações, ou porque à escola fugiram por garotice, falta de
capacidade intelectual, ou até mesmo com medo da «tapona» que alguns
professores, então, usavam como método de ensino nos alunos mais «rudes»
ou nos menos atentos.
Estes cursos eram nocturnos.
Eu, com 12 anos, e sendo marçano nos Grandes
Armazéns do Chiado, que tinha estabelecimento debaixo dos Arcos e com
saída para a Rua de José Estêvão, apesar de não ter vocação nenhuma para
o desenho, nem jeito para tal, tive de me matricular na referida Escola,
pois estava determinado, superiormente, que todos os alunos do
Asilo-Escola, após o exame da 4.ª classe, teriam de frequentar os cursos
de desenho, fosse qual fosse a profissão que viessem a exercer pela vida
adiante; e certo é que, a muitos, tal curso foi proveitoso, pois os
ajudou a ser bons profissionais.
Fui lá encontrar como professor de desenho
e director – qualidade em que se manteve até ser reformado – Francisco
Augusto da Silva Rocha, que à Escola de «Fernando Caldeira» se dedicava
com todo o carinho e lhe queria como se fosse coisa sua; e, como
professor de desenho e de modelação, o alemão
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Richter que, segundo se dizia nessa altura, fora contratado para ensinar
modelação, mas que disto pouco ou nada sabia…
Este professor teve sempre dificuldade em
se expressar em português, apesar de por cá ter estado muitos anos; e,
quando se zangava com os alunos, berrava uma «algaraviada» que nem o
diabo entendia e que, em vez de impor respeito ou medo, provocava o
riso.
Na altura do primeiro conflito mundial
(1914-1918) e quando a Alemanha declarou guerra a Portugal (1916), o
professor Richter, como aliás todos os alemães residentes em Portugal,
teve de regressar à sua terra com a família, tanto mais que um dos
filhos – o João Teodoro –, com 15 anos, estava na idade de ser
mobilizado para a vida militar.
Contava-se que, na altura do começo daquela
guerra e na previsão de ter de retirar-se para a Alemanha, o professor
Richter pretendeu fazer exame do 2.º grau, pois pensava ser, lá,
professor de português; e, quando se lhe dizia que ele não seria capaz
de fazer tal exame, tanto mais que escrevia muito mal a nossa língua e a
falava muito pior – e que, portanto, não podia ensinar o que não sabia –
alegava que, ele, ao menos, ainda aqui tinha vivido muitos anos e que,
por isso, ainda entendia as pessoas e se fazia compreender, ao passo que
o Marques Mano, professor de alemão no nosso Liceu, nunca tinha estado
na Alemanha. Assim, concluía que era de maior razão ele ensinar
português na Alemanha, que o Marques Mano ensinar alemão em Portugal.
O restante pessoal da Escola «Fernando
Caldeira» eram os contínuos Santos (o encarregado de fazer as chamadas)
e Martinho (que tinha a seu cargo manter a disciplina) e, ainda João
Mota, na secretaria; este, durante o dia, era escriturário do Cartório
Notarial do Dr. André dos Reis, e, foi mais tarde, funcionário do Banco
Regional de Aveiro.
Em 1915, foi criado, na escola «Fernando
Caldeira», o Curso Elementar do Comércio a que se refere o decreto de 24
de Dezembro de 1901, composto pelas seguintes disciplinas: «Matemática;
Língua Pátria; Língua Francesa; Geografia; Ciências; e Escrituração
Comercial».
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Aquela escola passou, então, a denominar-se
«Escola Industrial e Comercial Fernando Caldeira». Foram nomeados, para
nela leccionarem aquelas disciplinas, professores do Liceu de Aveiro;
porém, para a de Escrituração Comercial, veio de Coimbra o
Dr. Barjona
de Freitas que também foi professor do nosso Liceu quando, neste, foi
criado o Curso Complementar (7.º ano), pois, até aí, só havia frequência
até ao 5.º ano; e, para a de Ciências, foi contratado Duarte Melo,
engenheiro de Via e Obras da C.P. e cuja repartição se situava num anexo
à estação desta cidade.
Salvo erro de memória, no primeiro ano,
estudávamos Matemática, Língua Pátria e Escrituração Comercial, fazendo
exame de Matemática; no segundo, Língua Pátria, Língua Francesa e
Escrituração Comercial, fazendo exame das duas primeiras; e no terceiro,
Ciências e Escrituração Comercial, fazendo exame destas.
Na disciplina de Escrituração Comercial
estavam incluídas noções de cálculo, código, direito, etc., dadas sem
aprofundamento das matérias, mas com conhecimentos gerais e bastantes
que nos permitiam estudar os problemas que, na prática, nos surgissem.
E as disciplinas estavam, assim,
escalonadas, porque este curso foi projectado para pessoas que, durante
o dia, tinham as suas ocupações profissionais e a quem os patrões não
dispensavam as facilidades que, hoje, são dispensadas aos
trabalhadores-estudantes.
De todos os professores que, no meu tempo,
leccionaram naquela Escola, apenas está vivo, que eu saiba, o
Dr. José Pereira Tavares; e, dos
alunos que comigo terminaram o curso, estamos unicamente, e por
enquanto, três.
Com a anexação do Curso Comercial, o
edifício onde a Escola funcionava começou a não ter as instalações
necessárias e indispensáveis, pelo que Silva Rocha conseguiu arrendar a
Casa do Despacho da Santa Casa da Misericórdia e, nas dependências da
mesma, fazer as obras de adaptação que ele imaginava e o edifício
permitia, a fim de a Escola funcionar o melhor possível, pois não havia,
nessa altura, outro edifício disponível e no qual a Escola pudesse ser
instalada.
E por lá foi ficando, até à construção
daquele que, hoje, ela ocupa, e que, para ela, foi especialmente
construído.
Em 1925, houve alteração nas disciplinas que
compunham o Curso Comercial e este passou a ter a duração de quatro
anos, com aulas diurnas e nocturnas, e passou a ser, também, o
escoamento dos rapazes e raparigas (poucas) que, fazendo o seu exame do
2.º grau e desejando obter mais habilitações literárias que lhes
permitissem ser, na vida, mais do que simples operários, não tinham
possibilidades de frequentar estudos superiores.
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Desta Escola saíram não só bons artistas
como, também, bons profissionais de escritório que, na prática, deram
boa conta de si; e, ainda, muitos funcionários públicos e bancários que,
através da sua vida profissional, demonstraram a utilidade dos
conhecimentos obtidos na Escola que haviam frequentado e que nos
concursos abertos para aqueles lugares, principalmente para os de
finanças, obtinham classificações superiores às daqueles que tinham sido
alunos do Liceu; e saíam com uma cultura geral mais vasta, pois, então,
foram contratados para professores pessoas como o Dr.
Alberto Souto, Dr.
José Vieira Gamelas, Dr.
Narciso de Azevedo, e outros que,
além de ensinarem a matéria dos programas das disciplinas de que estavam
encarregados, também transmitiam aos alunos os seus muitos conhecimentos
práticos de ordem geral.
O Curso Industrial também sofreu grande
remodelação, principalmente a partir da altura em que foi criado o
ensino de entalhador, dirigido por mestre Martins que, associado a
outro, formou a firma Martins & Candeias, especialistas daqueles
trabalhos.
Em certa altura, os governantes implicaram
com os patronos dos nossos estabelecimentos de ensino. O Liceu José
Estêvão chegou a chamar-se de VASCO DA GAMA, e também esteve muito tempo
sem patrono nenhum; e, à Escola, também levaram o seu Fernando Caldeira,
um poeta de Águeda, que não fez mal a ninguém para o destronarem.
Para terminar, vou contar um facto que vinca
bem o amor e interesse que Silva Rocha
tinha pela Escola de que foi Director durante muitos anos – tantos, que
os mais idosos habitantes da cidade não se lembram de ter conhecido
outro, até à sua reforma.
Na altura em que eu frequentava o 3.º ano –
e que tínhamos de fazer exame de Escrituração Comercial – e a mais de
meio do ano, ao Dr. Barjona de Freitas
deu a mania de armar em antiquário; e abandonou as suas funções docentes
para ir procurar, por vilas e aldeias, objectos velhos.
Para o substituir, mandaram um «rapazito»
acabado de sair da Escola Raúl Dória, sem qualquer prática, quer de
ensino, quer da profissão.
Silva Rocha, que conhecia os finalistas, e
tinha, com interesse, acompanhado este curso, dispensou, de acordo com o
professor, a sua leccionação, tomando, para si, o encargo de os levar a
exame.
Já então ele era Director da Caixa Económica
de Aveiro, e, para o ser, tinha estudado alguma coisa de comércio. Como
estava em causa, somente, a montagem e seguimento da escrita de uma casa
comercial, ele serviu-se, para guia, de um compêndio antigo, e, por lá,
dava os lançamentos a fazer, e, por lá, os verificava.
Mais tarde, e já quase no fim do ano, viemos
a descobrir, por mero acaso, um exemplar daquele livro.
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Influiu na sua tomada de atitude o facto de
sermos da mesma idade do professor que nos estava destinado (ou, até,
mais velhos).
Ao reler as minhas duas últimas «Achegas»,
afIuíram-me à memória outras modificações que se fizeram nos cursos
professados na Escola a que as mesmas fazem referência.
Assim, alguns anos depois de ter sido criado
o Curso Comercial com a duração de quatro anos, este voltou a ter,
somente, a de três, para, mais tarde, passar a ter a de cinco.
Também – suponho que na altura em que foi
criado o Curso de Entalhador – na Escola iniciou-se o Curso de Lavores,
sendo a sua primeira professora D. Otília
Loureiro, senhora de primorosa educação, moradora na Rua da
Liberdade, e que, com sua irmã, se dedicava à execução de toda a espécie
de bordados.
Recordo-me de que, na altura em que devia
ser feita a escolha da professora, além daquela senhora, apareceram
outras candidatas com as suas «empenhocas»; e, então, as pessoas que se
interessavam pela nomeação da D. Otília, (que, aliás, logrou o consenso
da grande maioria daqueles que tinham «peso» na escolha), apresentaram
ao Director Geral que a Aveiro veio propositadamente para resolver o
assunto, não só as razões que eles entendiam ser de justiça para a
nomeação da D. Otília, como, ainda, além de muitos e diversos trabalhos
de grande perfeição, as bandeiras do Asilo-Escola e da Sociedade Recreio
Artístico, bordadas pela D. Otília e sua irmã, a matiz, com o avesso tão
perfeito como o direito – autênticas obras-primas de bordado à mão –,
feitas, uma e outra, sob desenho de Jeremias Lebre, Sub-Director do
Asilo Escola, o qual, nas horas vagas, se dedicava a fazer ampliações
(principalmente, retratos) a «crayon» em papel «cavalinho» pois, então,
não havia máquinas fotográficas para ampliar, e também, não havia
máquinas de costura com as quais se fizessem bordados e outros pontos,
como, hoje, as há, quer para um, quer para outro daqueles trabalhos.
Em 1948, foi, na Escola, implantado um novo
curso, aquele a que se referia o Decreto n.º 37.029, de 25 de Agosto
daquele ano, denominado de FORMAÇÃO FEMININA, e com as seguintes
disciplinas: Português; Francês; Matemática; Economia Doméstica;
Desenho; Dactilografia; Oficina e Aptidão Profissional.
Este curso, e mais a frequência das
disciplinas de Físico-Química, História e Geografia (que faziam parte de
outros cursos da mesma Escola) tinha, para
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todos os efeitos legais, a equivalência do 5.º ano liceal, e as alunas
diplomadas com ele podiam matricular-se nos exames de admissão às
Escolas do Magistério Primário; e, neste, quase todas obtinham boas
classificações, devido à preparação escolar obtida naquele curso de
Formação Feminina.
Um amigo, muito mais velho do que eu, acaba
de me informar que a Escola Industrial, antes de ter estado no edifício
da Capitania, esteve noutro, numa rua que desapareceu com a abertura da
Avenida do Dr. Lourenço Peixinho, junto ao «court» de ténis do Clube
Mário Duarte (ou do Ginásio Clube de Aveiro?), perto do Hotel da
Clarinda, ou, e mais propriamente, perto das cavalariças daquele Hotel,
rua que era a continuação da do «Americano»; esta pertenceu à que, hoje,
tem o nome do notável aveirense, Comandante Rocha e Cunha, sendo verdade
que esta tem, agora, traçado diferente, e não tem os buracos que as
vacas que puxavam os carros do transporte do sal para a estação do
Caminho de Ferro, a fim de ser expedido por vagões, para toda a parte do
país, tinham de vencer com um esforço tremendo (muitas vezes à custa de
varadas ou do aguilhão...), visto que era preciso andar depressa para se
fazerem muitos fretes, pois, no fim da semana, havia que receber
dinheiro que desse para o sustento delas, dos seus proprietários e dos
familiares destes.
E, já que falei em sal, aproveito para dizer
que, durante muitos anos, Aveiro foi grande exportador de sal para a
Espanha.
E, agora, é o que se sabe… Em vez de se
exportar, importa-se.
Ainda, em Julho de 1913, a Associação
Comercial de Aveiro fez uma exposição ao ministro de Portugal em Madrid,
pedindo a sua interferência na manutenção do fornecimento de sal para
Espanha.
Nessa altura, já a exportação tinha
diminuído, mas ainda era de 10.000 toneladas por ano.
E o barco de sal para exportação tinha o
valor de Esc. 60$00 (sessenta escudos).
Bons, – sei lá?! – maus tempos... mas
diferentes dos actuais e que justificavam a montagem, na nossa região,
da UNITECA e da VITASAL (fábrica de higienização de sal) no Cais de S.
Roque.
Que diabo de salto eu dei: da Escola
Industrial passei para a exportação do sal!... Desculpem-me tal salto. |