Falando, ainda, sobre o gosto musical das
populações de Aveiro (cidade e arredores) vou escrever mais qualquer
coisa.
As Bandas (refiro-me às civis), para além
dos conjuntos que exibiam nas ruas e nos coretos, tinham, também, as
suas capelas (conjuntos de vozes e de instrumentos de corda e de
palheta) para actuarem nas festividades religiosas (especialmente nas
missas solenes) e para as quais as Bandas eram contratadas para
acompanharem as procissões ou tocarem na noitada que, então, era feita
na véspera da festa, e, não, como agora, – aliás há já muito tempo – só
depois de realizadas as solenidades religiosas.
E, então, a liturgia era exigente, pelo que
o mestre da capela tinha de estar ao par do que estava prescrito para
tal fim e saber ler o latim inscrito nas partituras musicais, a fim de o
ensinar aos cantores.
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Recordo-me de que, numa das excursões
realizadas de Aveiro a Coimbra, e em que a Banda do Asilo-Escola tomou
parte, acompanhei, com outros, o Mestre Lé ao Seminário, onde ele foi
falar com o Cónego, que tratava dos assuntos musicais, para, com ele,
acertar na maneira de interpretar determinada música de uma missa, a
qual Mestre Lé gostava que a sua capela executasse, mas porque havia
repetição de palavras – parece-me que era este o problema – os mestres
de cerimónia não consentiam que ela fosse cantada.
Não me recordo, agora, como o assunto foi
resolvido; mas lembro-me, perfeitamente, do à-vontade como decorreu a
conversa, o que mostra os conhecimentos que Mestre Lé – autodidacta –
tinha do caso.
Daquelas capelas faziam parte, não só os
músicos das Bandas, como também outros distintos amadores, que faziam
música por simples prazer espiritual, e não por interesse material, pois
que nada cobravam pela sua colaboração nestas e noutras manifestações
musicais.
Agora, é muito mais fácil arranjar um coro
para acompanhar as missas, pois as vozes até podem ser acompanhadas à
viola. Eu nunca vi isso, mas, dizem-me que, na verdade, tal coisa
acontece.
Como tudo está mudado!...
A festa de Nossa Senhora da Apresentação – a
padroeira da freguesia da Vera-Cruz – era celebrada com toda a pompa e
solenidade, com a igreja de S. Gonçalo ornamentada a capricho; para ela,
eram convidados os mais afamados oradores sagrados do país, para
pregarem os sermões, alguns dos quais deixavam extasiados os que
assistiam a tais cerimónias.
Os mordomos da confraria que fazia aquela
festa – gente da Beira-Mar – eram, na sua maioria, amadores de boa
música e «nordestes» da «Patela», pelo que era esta a contratada para
nela actuar, mas exigiam que Mestre Lé apresentasse uma capela a
condizer com a pompa da restante solenidade.
Porque as melhores vozes para as cerimónias
religiosas pertenciam à capela da Música Velha, dirigida pelo Padre
António da Encarnação (que, também, era professor de música do Liceu,
Mestre Lé recorria aos elementos dos grupos cénicos, que por si eram
ensaiados, e de quem, portanto, conhecia as possibilidades. E os músicos
que lhe faltavam eram supridos pelos da Banda do Asilo-Escola (seus
alunos, portanto), e sendo os solistas profissionais contratados,
normalmente, no Porto.
Para a actuação na festa da Apresentação era
organizada, por isso, uma autêntica orquestra que, à noite, se exibia
para o público, com a casa cheia, compensando, deste modo, a despesa
feita com a sua organização.
Ora, um ano, o solista de clarinete, que
tocava a abertura da ZAMPA
(1), começou a sentir-se indisposto na igreja e,
só com dificuldade, se aguentou até ao final da cerimónia religiosa./
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No Teatro Aveirense ainda iniciou a sua
actuação; porém, Mestre Lé alertara o Amaral (aluno do Asilo-Escola)
para «desenrascar» a situação se, porventura, o solista não fosse capaz
de ir até ao final.
Exactamente quando estava a tocar a solo, o
mestre de clarinete reconheceu a impossibilidade de continuar; e, com um
ligeiro toque, avisou o Amaral de que ia parar, pelo que este, que
estava com atenção e a acompanhar a execução do solista, entrou no solo
na devida altura, de forma tal que o público não se apercebeu da mudança
do executante.
Aquele solista, honestamente, logo que o
Amaral começou a tocar, retirou da boca o clarinete, para, assim,
mostrar que tinha sido substituído – e bem – por o rapazito que estava a
seu lado e que devia rondar pelos 14 anos.
Na segunda parte do concerto, já foi o
Amaral que substituiu o profissional.
Também, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios,
a orquestra da revista «Ao Cantar do Galo» estava a ser dirigida por
Alexandre dos Prazeres Rodrigues, que a regeu em todos os espectáculos
dados anteriormente. A certa altura, aquele não se sentiu bem de saúde e
foi substituído por João Lé. Isto foi notado; e um cidadão que, no
intervalo, estava num grupo junto do Dr. Alberto Souto, perguntou como
isto podia ser.
O Dr. Alberto Souto, com o seu à-vontade
respondeu: – Para nós, o caso não tem qualquer importância; ainda temos,
na orquestra, mais elementos que a podiam dirigir.
Tal afirmativa causou no grupo – onde eu
estava – grande admiração.
Na realidade, tínhamos, pelo menos, o
Gravato, da Vista Alegre, actualmente, mestre da «Banda Amizade».
E fico-me por aqui porque, de música, já
falei bastante, sendo certo que ainda podia dizer mais coisas.
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(1) -
Composição da autoria de Johann Strauss Senior. (R.T.) |