Naquele tempo era possível ouvir-se, com
atenção, mantendo no recinto um profundo silêncio, durante a execução,
os concertos musicais, não só porque os aveirenses de então – aqueles
que todos nós conhecíamos e sabíamos a que famílias pertenciam – eram,
na verdade, amantes da boa música, como, também, porque, quantos em
Aveiro viviam, por motivo dos seus empregos ou negócios, se adaptavam ao
meio e procuravam conviver com os naturais e seguir os seus costumes.
Eram dos que bebiam água da «bica do meio» da Fonte dos Arcos... e
acabavam por adquirir os mesmos defeitos e as mesmas virtudes dos
naturais deste pedaço de terra que tem características próprias.
Também ainda não se tinha deitado abaixo o
gradeamento que deu mais vida ao Jardim, nem alargada a viela que
existia, para se transformar num dos lanços da Avenida Araújo e Silva,
nem, por aquela, passavam – porque, nem sequer existiam – os camiões e
as motorizadas que tanta barulheira fazem: então, de fora do Jardim,
nada quebrava o silêncio, que os que estavam dentro tanto desejavam…
Agora, com aquela barulheira de todos os
transportes mecanizados que, por lá transitam, era impossível dar
atenção ao que se passasse no coreto, se lá houvesse ainda música.
Naquele tempo, todos os domingos, a Banda do
Regimento de Infantaria dava um concerto, ao qual assistia uma grande
parte da população, não só da que vivia na cidade, como também da dos
arredores.
Os mestres que, no meu tempo, dirigiram
aquela Banda, foram os capitães Alves, Cunha e Biscaia.
E tinham uma preocupação enorme na escolha
do programa e, sobretudo, no facto de ela tocar afinadinha; e isso não é
de admirar, pois se tratava de profissionais.
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Mas cada um tinha o seu gosto: o primeiro
dava-nos música variada, incluindo, pelo menos, uma peça de música
clássica; o segundo, tinha preferência por música sempre do mesmo
género, dando-nos a impressão de que o repertório de cada concerto era
sempre o mesmo, o que levou, um dia, o meu saudoso amigo José Prat a
afirmar que, se fosse possível ligar, por tubos, a um fole, todos os
instrumentos, estes, por si, se encarregariam de dar o concerto, logo
que, até eles, chegasse o vento do fole; o terceiro veio modificar esta
monotonia; e raro era o domingo em que, além de música ligeira e alegre,
não nos deliciava com uma marcha, ou um passo dobrado, da sua autoria. E
até dedicou marchas a clubes e associações, tornando-se figura muito
popular, apesar do pouco tempo que por cá esteve. Deixou Aveiro com
muita pena e teve de o fazer porque foram extintas as bandas
regimentais.
As nossas músicas civis – a «Velha» e a
«Patela» –, de vez em quando, também subiam ao coreto do Jardim para
executarem o seu concerto, e faziam-no cônscias da responsabilidade que
lhes cabia, ao tocar música em tal sítio que, normalmente, era ocupado
por profissionais e perante uma assistência habituada a ouvir tocar boa
música, e afinadinha.
A Banda da Guarda Republicana – a melhor do
País – sempre que vinha actuar ao Norte, no regresso a Lisboa exibia-se
no Jardim, não só pelo empenho que autoridades e público faziam perante
as entidades superiores, como, também, pelo gosto que o maestro Fão – o
seu regente – tinha em tocar em Aveiro.
Este dizia, em alto e bom som, que, para
ouvir boa música, só Lisboa ou Aveiro.
Como havia despesas com a deslocação da
Banda e esta, pelos seus orçamentos, não podia pagar, dispunham-se, à
volta do coreto, lugares pagos, que estavam, sempre, ocupados com os
adeptos da música.
E... alguns vinham de longe, do nosso
Distrito; como, de Aveiro, ia muita gente a Oliveira de Azeméis, quando
a Guarda era contratada para dar concertos por ocasião da La Salette.
Contarei, a seguir, um caso que deu brado.
De regresso a Lisboa, vinda do Porto, onde
tomara parte numa festa de grande categoria, a Banda da Guarda Nacional
Republicana parou em Aveiro para nos deliciar com um concerto musical.
O maestro Fão, em conversa com o seu colega,
o capitão Alves, queixava-se, bastante aborrecido, da falta de atenção
e, até, de consideração daquela
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gente do Porto, quanto à música, pois que tendo tocado nesse concerto Cavalgada das Valquírias, de Wagner, (peça de difícil execução,
principalmente para os clarinetes) aquela gente continuou no picadeiro e
na conversa, não ligando nada à música, o que motivou o aborrecimento de
que ainda estava possuído.
Felizmente – dizia o maestro – que parou em
Aveiro e iria ter a satisfação de tocar para quem sabia apreciar boa
música, o que o compensava do seu aborrecimento.
Ora, na primeira parte desse concerto,
quando um clarinete tocava, a solo, um qualquer número e com toda a
gente a prestar a maior atenção, ouviu-se, na assistência, um risinho
sarcástico que, no meio daquele silêncio, toou mal, e obrigou toda a
gente – o maestro Fão, principalmente – a olhar para o local donde ele
tinha vindo.
O maestro, no intervalo, desceu e, como de
costume, foi encontrar-se com o capitão Alves, a quem perguntou se
conhecia o cidadão que lhe indicou – e que havia fixado ser o do risinho
– e se ele era músico.
O capitão Alves disse-lhe que se tratava de
um pescador, que de música nada sabia, mas que tocava, de ouvido,
violão: era o ZÉ NHÃ.
Mestre Fão mostrou interesse em lhe falar,
pelo que o capitão Alves o chamou, dizendo-lhe que o Maestro o queria
conhecer.
De entrada, perguntou-lhe: – Foi o senhor
que deu aquele risinho que se ouviu quando o solista executava a sua
parte; por que o fez?
O ZÉ NHÃ, sem se desmanchar em frente de tão
grande autoridade musical, respondeu: é que ele deu uma «fífia», pois em
vez de dizer assim (e cantarolou a frase como devia ser), disse assado
(e repetiu o que o clarinete tinha tocado).
Mestre Fão, muito admirado com a resposta –
que correspondia à realidade – voltou a perguntar-lhe: – Mas, você
conhece a peça? Sabe música?
ZÉ NHÃ responde não conhecer a peça, nem
saber música; e, por sua vez, interroga: – De que nos servem os ouvidos?
O maestro Fão não se zangou com este
acontecimento; e, quando, pouco tempo depois, a Banda da Marinha teve de
vir a Aveiro tomar parte numa festa oficial, Banda que era regida pelo
seu irmão, ele preveniu-o: tem cuidado com o reportório e com a execução
pois que, em Aveiro, até os pescadores sabem ouvir música, e têm a
coragem de assinalarem os erros que se fizerem; e contou ao irmão o que,
com ele, se tinha passado.
Em certa altura, em Aveiro, houve 3 bandas
de música: a Banda Amizade (a «Música Velha»), a Banda de José Estêvão
(a «Música Nova» ou a «Patela») e a Banda dos Bombeiros Voluntários
Guilherme Gomes Fernandes (a dos «Guilhermes») todas elas de grande
nível artístico e mantendo, cada qual, a sua escola de aprendizes.
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E cada uma tinha a sua «claque» a que,
agora, se chama «fãs» e que, então, se denominavam de «nordestes», que
não só contribuíam, monetariamente, para a sua manutenção, como, também,
amparavam, moralmente, os seus dirigentes nas dificuldades e problemas
que, de vez em quando, surgiam no seu seio.
E acompanhavam a Banda da sua predilecção em
todas as suas deslocações – ainda as mais distantes – e lá estavam a
aplaudi-la, no final da sua execução.
E chamavam-se de «nordestes», porque havia
um cidadão com este nome, que morava no Alboi e que era todo adepto da
«Música Velha», o qual, numa altura em que esta estava em crise (qual
será a associação que, com a idade desta Banda, não terá passado por
crises?) proclamava, convincente, e em alto e bom som: – Enquanto a
«Música Velha» tiver caixa, bombo e pratos, para mim, é a melhor do
mundo!
P.S. – Corrijo e completo a relação dos
mestres das Bandas Regimentais a que me referi no artigo antecedente
(com o número 36 - pp. 84-85).
O primeiro chefe – que veio com a Banda para
a Aveiro – foi o Tenente Ferreira, de quem eu não me lembro; e, o
último, foi o Tenente Pereira dos Santos.
Foi este, e não o Capitão Biscaia, o autor
das marchas e outras composições musicais dedicadas às associações
locais. A que ele dedicou à Sociedade Recreio Artístico foi baseada no
Hino desta Sociedade.
Peço desculpa pelo erro cometido, o que se
deve a um lapso de memória para o qual um amigo, que foi músico, me
chamou a atenção. |