Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Transformação do passeio público

Em 1913 (ou 1914?), a primeira Câmara Municipal eleita após a proclamação da República, e à qual presidia o comerciante Bernardo Torres, com livraria nos Arcos, resolveu transformar o Passeio Público, dando-lhe um aspecto mais airoso. / 81 /

Era vereador do pelouro dos jardins, e foi encarregado de acompanhar essa transformação outro comerciante, Ricardo Mendes da Costa, com oficina e loja de ferragens na Rua da Corredoura (actualmente, Rua do Batalhão de Caçadores, 10) que, enfrentando, corajosamente, a campanha que nos jornais e, na opinião pública, por partidarismo ou sentimentalismo, se fez contra tal obra, deu todo o seu entusiasmo – e por que não dizer teimosia? – ao início e conclusão da obra a que a Câmara tinha resolvido pôr ombros.

E apesar daquela campanha ser assanhada, a Câmara e os dois cidadãos acima mencionados não desistiram de cumprir a resolução tomada, tanto mais que estavam convencidos de que se tratava de uma obra de interesse presente e futuro para Aveiro, que eles tinham em mente transformar na medida dos baixíssimos rendimentos de que, então, a Câmara de Aveiro, podia dispor.

Nesse sentido iniciaram a abertura da actual Avenida Araújo e Silva, na parte que vai do antigo quartel ao posto da Polícia de Trânsito, Avenida que só foi concluída na Câmara presidida pelo Dr. Álvaro Sampaio, que foi quem mudou, em nossos dias, a fisionomia de Aveiro, dando-lhe ares de cidade, que até então não tinha.

E começou a sua obra arrumando o que estava «fora dos eixos»: mandou numerar os prédios; mandou acabar obras começadas por outrem; mandou fazer passeios, etc., etc., e, só depois, foi para obras de maior vulto.

Mas... não é disso que eu quero agora tratar.

A campanha contra a Câmara baseavam-na, os que a iniciaram, no facto de, na altura, se procurar implantar, na mocidade das Escolas, o respeito e o carinho pelas árvores, para o que, além das prelecções feitas pelos professores, se organizava, em todo o País, anualmente, a FESTA DA ÁRVORE, e que, com a obra de remodelação, se poderia destroçar todo o arvoredo existente, o que parecia – segundo proclamavam – um contra-senso.

Nesta FESTA DA ÁRVORE, a mocidade escolar, acompanhada pelos professores e com a presença das autoridades civis e militares, cantando as canções que se aprendiam na disciplina de Canto Coral – então, nas escolas primárias, os alunos aprendiam a cantar, não só o Hino Nacional, como, também, outros hinos; o da Maria da Fonte, o da Bandeira e o das Escolas, etc. e, também, canções de fins educativos e patrióticos – iam plantar, em locais previamente escolhidos e preparados (covas já abertas e estrumadas), as árvores destinadas ao efeito.

No final, a miudagem escolar terminava o dia no Rossio à volta de uma merenda que lhe era oferecida, o que motivava grande alegria e satisfação, não só entre eles, como, também, entre os professores (que se encarregavam de dirigir tal operação) como, até, entre os familiares que assistiam a tanta alegria.

Cada escola ensaiava os seus alunos; estes, por sua vez, reuniam-se sob a regência de José Casimiro da Silva, director das escolas da Glória, que os / 81 / preparava para o ensaio geral, dirigido pelo mestre de canto coral e da música do Asilo-Escola, António dos Santos Lé, um grande músico de quem hei-de voltar a falar, pois, pelo seu trabalho musical, muito contribuiu para o bom nome de Aveiro e para a sua educação artística.

É um dos nomes que os aveirenses, que se prezam de o ser, não devem deixar cair no olvido.

Também a José Casimiro da Silva que, além de professor primário distintíssimo, foi, por mérito próprio, director da Escola Normal e da Escola Primária Superior, há que lhe render preito de gratidão pelo muito que ele fez a bem da instrução popular, e pela orientação pedagógica, firme e disciplinada, que imprimiu aos estudos das Escolas que dirigiu e na formação moral dos seus alunos, em que era rigoroso.

Vem aqui a talhe de foice dizer que, plantadas numa dessas Festas da Árvore, existem ainda, pelo menos, três exemplares no Jardim de D. Afonso V que, outrora, foi terreno anexo à Escola Primária Superior, que funcionou no antigo Convento de Jesus, hoje Museu de Aveiro.

Este edifício também serviu de Escola Normal, de Escola Primária, de Tribunal (enquanto o da Câmara esteve em obras) e, até, de prisão dos indivíduos acusados de conspirarem contra a República.

Desculpem, porque me desviei do tema que, a mim mesmo, impus tratar. Ficará para outro artigo.

Todos os anos, pela época carnavalesca, uns pândegos – que os havia, nesse tempo, com muito chiste – faziam vários grupos para comentar e criticar os acontecimentos que, durante o ano, deram que falar na cidade.

Ora, no Carnaval de 1914 (ou 15) um desses grupos tomou a seu cargo fazer a crítica à modificação do Jardim.

Pintaram um painel, que eles transportavam pelas principais ruas, e que, ao centro, tinha os seguintes versos, que o grupo devidamente fardamentado, cantava, com música muito orelhuda, para poder ser acompanhada por todos:

O ti António da Pera
Zana-Trana
Está a chorar p'lo seu jardim
Zana-Trana
Nem uma flor lhe deixaram
Zana- Trana   
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Nem um raminho de alecrim
Zana-Trana

E, também, nos cantos superiores, podia ler-se:

Oh! Escolas semeai...
Oh! Escolas semeai…

Estes últimos versos, que eram da canção denominada SEMENTEIRA, que se cantava na plantação das árvores, foram aproveitados pelos pândegos para os pôr em contraste com a derrota havida no Passeio Público.

Somente que esta SEMENTEIRA não se referia à terra, mas sim à instrução e educação como, aliás, se vê pelo refrão completo:

Oh! Escolas semeai...
Oh! Escolas semeai...
O Amor, a Vida, a Luz,
A límpida Verdade!
Oh! Escolas semeai…

O painel tinha outros dizeres e várias pinturas de que a minha memória retém, somente, – já lá vão tantos anos! – o quiosque do Valeriano (os do grupo, na sua discrição chamavam o Triosque) e que ficava situado entre as duas pontes – a das Almas e a dos Arcos – que então faziam a ligação entre as duas freguesias, pontes que foram substituídas pela ponte-praça actual.

E também lá devia estar pintado o quiosque da Epifânia – mas não tenho a certeza –, que ficava encostado à cortina do cais e onde ela vendia fruta.

A rapaziada organizadora desta brincadeira, durante os três dias do Carnaval, divertiu-se e divertiu o público; um dos do grupo, de ponteiro em punho, ia explicando o que representavam as várias pinturas do painel e fazendo os comentários que entendia necessários, no que era acompanhado pelos restantes.

Como eu tenho pena de não me recordar do palavreado que provocava a risota entre a enorme assistência que se juntava para os ouvir!...

As obras de remodelação do Jardim concluíram-se em fins de 1914, ou princípios de 1915.

O jornal “O Democrata”, no seu número de 2-IV-1915, dá a notícia da sua abertura ao público e diz que a sua transformação serviu de tema aos mais extravagantes artigos de certa imprensa, onde se escreveram os maiores disparates e as mais destrambelhadas tolices. E continua: – «Fez-se uma obra aceiada (sic), uma obra limpa e – por que não ser franco? – uma obra útil. / 84 /

Porque a verdade é esta: o que aí estava com o nome de jardim, não o era; e para alameda faltava-lhe muito do que noutros tempos se via no aprazível local, ou seja, as árvores que os temporais se encarregaram de deitar abaixo e que alteraram, por completo, a estética do único passeio sombreado que, até há pouco, Aveiro possuía.

Precisamos de esperar pelo desenvolvimento do novo arvoredo.»

Com o andar dos tempos, toda a gente reconheceu que a intenção da Câmara, ao transformar o Jardim, foi atingida: construir, como se dizia então, um jardim à inglesa, em que nele entrasse o sol e houvesse locais de sombras.

Mas... continuaremos a falar do Jardim.

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