A Caixa Económica de Aveiro foi organizada
no sentido de capitalizar as poupanças das classes menos favorecidas –
como hoje soi dizer-se –, principalmente as das criadas de servir,
profissão agora classificada de «empregadas domésticas».
É certo que, entre as de então e as de
agora, há uma grande diferença, visto que, nessa altura, havia muitas
que, tendo entrado raparigas novas para as casas para onde foram servir,
lá se fizeram mulheres e criaram os filhos e os netos dos patrões,
passando a ser tratadas como familiares, e dessas casas saíram, ou para
se casarem, ou para irem para o cemitério; que me conste, tal não
acontece agora.
Ainda conheço uma – a Armanda – com quem
lidei quando fui empregado da firma Domingos Leite & C.ª Lda. – já lá
vão cerca de 60 anos – na mesma casa.
Foi, especialmente, para aquela classe, que
se estabeleceu a importância do depósito a receber, mensalmente, por
aquela Caixa Económica: 1500 réis (quinze tostões), que era o ordenado
mensal das criadas de servir.
Certo é, também, que a maioria delas
contava, como extra, com o «rendimento do cesto», ou seja, com a
importância que elas conseguiam obter, na praça, da diferença entre o
preço corrente e aquele por que elas tinham conseguido, na realidade,
comprar os géneros, por terem sabido regatear com as vendedeiras.
Elas nem consideravam esse procedimento como
desonesto, tal como acontece com aqueles funcionários de chefia de
algumas empresas que fazem a aquisição dos materiais de que as mesmas
têm necessidade, somente às firmas que lhes dão comissões, sem
procurarem, muitas vezes, averiguar se poderiam fazê-lo em melhores
condições para as empresas para quem trabalham.
Em casa «davam as contas direitas», mas em
função dos preços médios das vendas, pois que a diferença guardavam-na
elas, visto que foi devido à sua habilidade que conseguiram comprar mais
barato.
E isto era prática tão corrente que, quando
alguma era falada para uma nova casa, tratava, antes de aceitar, de
indagar da colega que iria substituir,
/ 59 /
não só dos costumes da casa, da maneira de ser dos patrões e das
exigências quanto ao trabalho, como, também, e especialmente, do
ordenado que ela estava a ganhar e do «rendimento do cesto».
Só depois destas informações, ela aparecia
para se «ajustar».
Estas informações também podiam ser
fornecidas pela Maria Augusta Tenaz, no seu lugar de venda de frutas,
claras de ovos cozidas e outros artigos, ao lado dos Arcos, mas já na
Rua de José Estêvão, por debaixo da casa do Firmino Huet, local que
desapareceu, não só com a obra do alargamento da actual Rua de Viana do
Castelo, como, ainda, com a dos Arcos e a construção do Arcada Hotel,
obra que fez desaparecer a célebre fonte da qual se dizia que as pessoas
vindas de fora, se bebessem ali água da bica do meio, não mais saíam de
Aveiro, pois se, solteiros, por cá se casavam, fonte que foi transposta
para o largo defronte ao edifício municipal onde estão instaladas a
Biblioteca, Secção de Finanças, etc., e cujo tanque foi colocado em
baixo, na Rua do Clube dos Galitos, que, anteriormente, e logo após a
proclamação da República, em 1910, se chamou de «Cinco de Outubro».
A Maria Augusta Tenaz conhecia todas as
criadas de servir e sabia, permanentemente, das necessidades que delas
havia nas diversas casas da cidade, como se de agência de colocações se
tratasse; e sabia da vida íntima das criadas de servir, como se fossem
pessoas de família, e a quem elas contavam a sua vida particular e a
quem pediam conselho para saber como se comportarem, mesmo, até, na sua
vida sentimental.
E deste último conhecimento se aproveitavam
também, alguns rapazes que, a troco de umas coroas, conseguiam fazer
falar a Tia Tenaz e, dela, obter as informações que desejavam quanto às
raparigas que lhes interessavam.
E a Tenaz, por seu turno, «inculcava»
criadas de servir nas casas que delas estavam carecidas, pois a ela se
dirigiam as pessoas interessadas, averiguando as possibilidades de
arranjar uma que lhes servisse, ainda que ela, na altura, estivesse
empregada.
E, como não só conhecia as empregadas que,
normalmente, as tinham ao serviço, estava habilitada não só a arranjar
uma boa colocação, como, também, uma boa criada, a troco de boa
gratificação.
Mas... divaguei – e não falei da Caixa
Económica de Aveiro e do seu papel na economia citadina, o que faremos a
seguir. Voltemos, pois, à Caixa Económica de Aveiro.
Não eram só as criadas de servir que tinham
as suas cadernetas de depósito naquela Caixa e que, mensalmente, as
movimentavam (se o podiam fazer); pessoas com outros mesteres
procuravam, também, fazer o seu aforro, a fim de o utilizarem quando
necessário, principalmente numa doença ou em qualquer outro contratempo
que, no futuro, lhes surgisse.
E o problema da doença era assunto que
afligia toda a gente de poucos recursos, e a ponderar muito seriamente,
pois, na altura, não havia, como hoje há, a Previdência (que foi
instituída nos anos de quarenta) e que, com todos os seus defeitos,
tantos e tão grandes benefícios tem prestado a muita gente, mesmo
àqueles que contra ela barafustam, porque a querem – e com razão – muito
mais eficiente.
Certo é que, nesse tempo, em Aveiro, existia
a Associação de Socorros Mútuos das Classes Laboriosas, na qual as
pessoas cuidadosas e previdentes se inscreviam e, a troco de uma quota
mensal, tinham consultas médicas e medicamentos, Associação que, mercê
da forma como era administrada, correspondia, integralmente, ao fim para
que foi criada, conseguindo, além de cumprir as suas obrigações para com
os seus associados, arranjar reservas, transformadas em títulos
públicos, para, deles, obter um rendimento extra.
Na Caixa Económica de Aveiro, até um simples
vintém (20 réis) podia ser depositado para servir de incitamento ao
aforro.
Pessoas de família da miudagem abriam muitas
vezes, a favor das crianças, contas de depósito com pequenas
importâncias e entregavam-lhes as respectivas cadernetas para as incitar
à poupança; e, por ocasião das festas familiares, padrinhos, avós, tios
e, até, os amigos da família, em vez de lhes darem dinheiro para eles
gastarem em gulodices, entregavam-no para eles o depositarem.
O dinheiro recebido pela Caixa, em depósito,
era emprestado por juro um pouco superior àquele que era pago aos
depositantes, por letra ou qualquer outro documento, a quem a ela
recorria nas suas aflições, e a quem os administradores reconheciam as
qualidades necessárias para lhes não causarem preocupações com a
liquidação, ou com a reforma, em devido tempo, das importâncias
emprestadas, não cuidando, muitas vezes, de ter em atenção os seus bens
materiais, mas, e principalmente, o seu comportamento anterior e a
convicção de que a pessoa saberia respeitar a palavra dada, como, então,
aliás, era de uso respeitar.
/ 61 /
E vem, a propósito, lembrar que, em
determinados negócios como, por exemplo, o do ajuste do sal – e grandes
valores representavam para esse tempo –, depois de acertadas as
condições de venda, um aperto de mão e o «alborque» (uns copitos de
vinho bebidos entre os assistentes) tornavam esse negócio firme como se
fosse uma escritura que se acabasse de lavrar no notário – não constando
que algum dos intervenientes o tenha deixado de cumprir, mesmo com
prejuízo para si: a palavra dada, acima de tudo.
A Caixa Económica de Aveiro – à qual muita
gente chamava a casa das aflições, pela facilidade com que resolvia os
problemas que lhe eram postos, emprestava dinheiro, também, por penhor
de objectos de ouro, prata e outros metais, para desenrascar de
situações que, muitas vezes e inesperadamente, surgiam, não só em casas
de modestos recursos, como, também, nas casas ricas e de grande
respeitabilidade que, deste modo, e servindo-se de interposta pessoa,
modesta mas da sua inteira confiança, em nome de quem os objectos
ficavam penhorados, evitavam ter que recorrer a pessoas estranhas e,
assim, dar a saber situações e dificuldades ocasionais que lhes não
convinha fossem conhecidas de outrem.
Quase todos os dias, vinha de Ílhavo, à
Caixa Económica de Aveiro, uma mulher – a ti Ana Pecucha – com objectos
para empenhar, quase sempre em seu nome, apesar de se saber que tais
objectos a ela não pertenciam; e era essa mulher que regularizava,
perante a Caixa, os juros vencidos e o levantamento dos objectos
empenhados.
Quantos dramas familiares a ti Ana Pecucha
não teria conhecido?! E a quantas pessoas a sua intervenção acudiu e
desenrascou?
E essa mulher, que ia e vinha a pé, com
valores e com dinheiro que lhe não pertenciam – e toda a gente sabia
disso – nunca foi vítima de qualquer tentativa de assalto; e não consta,
também, que alguma vez, entre ela e as pessoas a quem prestava aqueles
serviços, tivesse havido desaguisado por motivo de contas.
Como tudo, no geral, era tão simples e tão
fácil!...
Havia, então, respeito pela palavra dada e o
culto da honestidade.
Nas escolas usava-se um compêndio denominado
«Educação Cívica», pelo qual os professores primários nos ensinavam, com
empenho e interesse, a cumprirmos os nossos deveres como cidadãos:
respeito pelos pais e professores, atenção pelos velhos e pelos doentes
a quem devíamos ajudar, sempre que eles nos pedissem ajuda.
Culto pela Pátria e pelos seus símbolos – o
Hino Nacional e a Bandeira – e a obrigação de nos descobrirmos sempre
que, em funções oficiais, eles tivessem lugar. E ninguém deixava de o
fazer quando, nos quartéis e ao toque de continência, a Bandeira era
içada no mastro de honra, ou, dele, era arreada.
Tornei a divagar, mas voltaremos ao assunto. |