Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

A Caixa Económica, as Criadas de Servir e...

A Caixa Económica de Aveiro foi organizada no sentido de capitalizar as poupanças das classes menos favorecidas – como hoje soi dizer-se –, principalmente as das criadas de servir, profissão agora classificada de «empregadas domésticas».

É certo que, entre as de então e as de agora, há uma grande diferença, visto que, nessa altura, havia muitas que, tendo entrado raparigas novas para as casas para onde foram servir, lá se fizeram mulheres e criaram os filhos e os netos dos patrões, passando a ser tratadas como familiares, e dessas casas saíram, ou para se casarem, ou para irem para o cemitério; que me conste, tal não acontece agora.

Ainda conheço uma – a Armanda – com quem lidei quando fui empregado da firma Domingos Leite & C.ª Lda. – já lá vão cerca de 60 anos – na mesma casa.

Foi, especialmente, para aquela classe, que se estabeleceu a importância do depósito a receber, mensalmente, por aquela Caixa Económica: 1500 réis (quinze tostões), que era o ordenado mensal das criadas de servir.

Certo é, também, que a maioria delas contava, como extra, com o «rendimento do cesto», ou seja, com a importância que elas conseguiam obter, na praça, da diferença entre o preço corrente e aquele por que elas tinham conseguido, na realidade, comprar os géneros, por terem sabido regatear com as vendedeiras.

Elas nem consideravam esse procedimento como desonesto, tal como acontece com aqueles funcionários de chefia de algumas empresas que fazem a aquisição dos materiais de que as mesmas têm necessidade, somente às firmas que lhes dão comissões, sem procurarem, muitas vezes, averiguar se poderiam fazê-lo em melhores condições para as empresas para quem trabalham.

Em casa «davam as contas direitas», mas em função dos preços médios das vendas, pois que a diferença guardavam-na elas, visto que foi devido à sua habilidade que conseguiram comprar mais barato.

E isto era prática tão corrente que, quando alguma era falada para uma nova casa, tratava, antes de aceitar, de indagar da colega que iria substituir, / 59 / não só dos costumes da casa, da maneira de ser dos patrões e das exigências quanto ao trabalho, como, também, e especialmente, do ordenado que ela estava a ganhar e do «rendimento do cesto».

Só depois destas informações, ela aparecia para se «ajustar».

Estas informações também podiam ser fornecidas pela Maria Augusta Tenaz, no seu lugar de venda de frutas, claras de ovos cozidas e outros artigos, ao lado dos Arcos, mas já na Rua de José Estêvão, por debaixo da casa do Firmino Huet, local que desapareceu, não só com a obra do alargamento da actual Rua de Viana do Castelo, como, ainda, com a dos Arcos e a construção do Arcada Hotel, obra que fez desaparecer a célebre fonte da qual se dizia que as pessoas vindas de fora, se bebessem ali água da bica do meio, não mais saíam de Aveiro, pois se, solteiros, por cá se casavam, fonte que foi transposta para o largo defronte ao edifício municipal onde estão instaladas a Biblioteca, Secção de Finanças, etc., e cujo tanque foi colocado em baixo, na Rua do Clube dos Galitos, que, anteriormente, e logo após a proclamação da República, em 1910, se chamou de «Cinco de Outubro».

A Maria Augusta Tenaz conhecia todas as criadas de servir e sabia, permanentemente, das necessidades que delas havia nas diversas casas da cidade, como se de agência de colocações se tratasse; e sabia da vida íntima das criadas de servir, como se fossem pessoas de família, e a quem elas contavam a sua vida particular e a quem pediam conselho para saber como se comportarem, mesmo, até, na sua vida sentimental.

E deste último conhecimento se aproveitavam também, alguns rapazes que, a troco de umas coroas, conseguiam fazer falar a Tia Tenaz e, dela, obter as informações que desejavam quanto às raparigas que lhes interessavam.

E a Tenaz, por seu turno, «inculcava» criadas de servir nas casas que delas estavam carecidas, pois a ela se dirigiam as pessoas interessadas, averiguando as possibilidades de arranjar uma que lhes servisse, ainda que ela, na altura, estivesse empregada.

E, como não só conhecia as empregadas que, normalmente, as tinham ao serviço, estava habilitada não só a arranjar uma boa colocação, como, também, uma boa criada, a troco de boa gratificação.

Mas... divaguei – e não falei da Caixa Económica de Aveiro e do seu papel na economia citadina, o que faremos a seguir. Voltemos, pois, à Caixa Económica de Aveiro.

Não eram só as criadas de servir que tinham as suas cadernetas de depósito naquela Caixa e que, mensalmente, as movimentavam (se o podiam fazer); pessoas com outros mesteres procuravam, também, fazer o seu aforro, a fim de o utilizarem quando necessário, principalmente numa doença ou em qualquer outro contratempo que, no futuro, lhes surgisse.

E o problema da doença era assunto que afligia toda a gente de poucos recursos, e a ponderar muito seriamente, pois, na altura, não havia, como hoje há, a Previdência (que foi instituída nos anos de quarenta) e que, com todos os seus defeitos, tantos e tão grandes benefícios tem prestado a muita gente, mesmo àqueles que contra ela barafustam, porque a querem – e com razão – muito mais eficiente.

Certo é que, nesse tempo, em Aveiro, existia a Associação de Socorros Mútuos das Classes Laboriosas, na qual as pessoas cuidadosas e previdentes se inscreviam e, a troco de uma quota mensal, tinham consultas médicas e medicamentos, Associação que, mercê da forma como era administrada, correspondia, integralmente, ao fim para que foi criada, conseguindo, além de cumprir as suas obrigações para com os seus associados, arranjar reservas, transformadas em títulos públicos, para, deles, obter um rendimento extra.

Na Caixa Económica de Aveiro, até um simples vintém (20 réis) podia ser depositado para servir de incitamento ao aforro.

Pessoas de família da miudagem abriam muitas vezes, a favor das crianças, contas de depósito com pequenas importâncias e entregavam-lhes as respectivas cadernetas para as incitar à poupança; e, por ocasião das festas familiares, padrinhos, avós, tios e, até, os amigos da família, em vez de lhes darem dinheiro para eles gastarem em gulodices, entregavam-no para eles o depositarem.

O dinheiro recebido pela Caixa, em depósito, era emprestado por juro um pouco superior àquele que era pago aos depositantes, por letra ou qualquer outro documento, a quem a ela recorria nas suas aflições, e a quem os administradores reconheciam as qualidades necessárias para lhes não causarem preocupações com a liquidação, ou com a reforma, em devido tempo, das importâncias emprestadas, não cuidando, muitas vezes, de ter em atenção os seus bens materiais, mas, e principalmente, o seu comportamento anterior e a convicção de que a pessoa saberia respeitar a palavra dada, como, então, aliás, era de uso respeitar. / 61 /

E vem, a propósito, lembrar que, em determinados negócios como, por exemplo, o do ajuste do sal – e grandes valores representavam para esse tempo –, depois de acertadas as condições de venda, um aperto de mão e o «alborque» (uns copitos de vinho bebidos entre os assistentes) tornavam esse negócio firme como se fosse uma escritura que se acabasse de lavrar no notário – não constando que algum dos intervenientes o tenha deixado de cumprir, mesmo com prejuízo para si: a palavra dada, acima de tudo.

A Caixa Económica de Aveiro – à qual muita gente chamava a casa das aflições, pela facilidade com que resolvia os problemas que lhe eram postos, emprestava dinheiro, também, por penhor de objectos de ouro, prata e outros metais, para desenrascar de situações que, muitas vezes e inesperadamente, surgiam, não só em casas de modestos recursos, como, também, nas casas ricas e de grande respeitabilidade que, deste modo, e servindo-se de interposta pessoa, modesta mas da sua inteira confiança, em nome de quem os objectos ficavam penhorados, evitavam ter que recorrer a pessoas estranhas e, assim, dar a saber situações e dificuldades ocasionais que lhes não convinha fossem conhecidas de outrem.

Quase todos os dias, vinha de Ílhavo, à Caixa Económica de Aveiro, uma mulher – a ti Ana Pecucha – com objectos para empenhar, quase sempre em seu nome, apesar de se saber que tais objectos a ela não pertenciam; e era essa mulher que regularizava, perante a Caixa, os juros vencidos e o levantamento dos objectos empenhados.

Quantos dramas familiares a ti Ana Pecucha não teria conhecido?! E a quantas pessoas a sua intervenção acudiu e desenrascou?

E essa mulher, que ia e vinha a pé, com valores e com dinheiro que lhe não pertenciam – e toda a gente sabia disso – nunca foi vítima de qualquer tentativa de assalto; e não consta, também, que alguma vez, entre ela e as pessoas a quem prestava aqueles serviços, tivesse havido desaguisado por motivo de contas.

Como tudo, no geral, era tão simples e tão fácil!...

Havia, então, respeito pela palavra dada e o culto da honestidade.

Nas escolas usava-se um compêndio denominado «Educação Cívica», pelo qual os professores primários nos ensinavam, com empenho e interesse, a cumprirmos os nossos deveres como cidadãos: respeito pelos pais e professores, atenção pelos velhos e pelos doentes a quem devíamos ajudar, sempre que eles nos pedissem ajuda.

Culto pela Pátria e pelos seus símbolos – o Hino Nacional e a Bandeira – e a obrigação de nos descobrirmos sempre que, em funções oficiais, eles tivessem lugar. E ninguém deixava de o fazer quando, nos quartéis e ao toque de continência, a Bandeira era içada no mastro de honra, ou, dele, era arreada.

Tornei a divagar, mas voltaremos ao assunto.

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