Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Casa Forte do Banco de Portugal

Há pouco tempo, um familiar, para prestar a informação que foi encarregado de obter pelo Gerente da firma em que trabalha, perguntou-me a quem pertence o edifício da Rua de José Estêvão, onde está instalado o Externato João Afonso de Aveiro.

Fornecida que foi a informação, possivelmente, por uma associação de ideias, à minha memória afluiu a lembrança das repartições e organismos que eu lá conheci instalados.

Além da Caixa Económica de Aveiro, que era a proprietária do referido edifício e ocupava o rés-do-chão do lado esquerdo, também lá estava, do lado direito, a Conservatória do Registo Predial; e, o primeiro andar, era todo ocupado pela agência do Banco de Portugal, que tinha a sua casa-forte no rés-do-chão, ao fundo, e para onde havia acesso por uma escada interior, privativa daquele Banco.

Era nesta casa-forte que estava colocado o cofre onde se guardavam os papéis de importância e o papel-moeda, isto é, as notas de cem mil réis, as únicas que eu me lembro de circularem, então, e que era muito dinheiro, para o tempo, pelo que poucas pessoas delas faziam uso.

Nessa casa-forte guardava o Banco não só o dinheiro das transacções efectuadas pelo mesmo, como, também, o que lhe era remetido pelas tesourarias do Distrito, como caixa que era, e é, do Estado.

Havia, pois, na casa-forte, permanentemente, muito dinheiro, para aquela época.

E, à minha memória, veio, também, uma história que me foi contada há muitos, muitos anos: – Um dia, quando, de manhã, os agentes do Banco foram abrir a porta para iniciar o trabalho, a fechadura, por qualquer circunstância, / 56 / encravou, e não houve possibilidade de a abrir. De calcular é, pois, a atrapalhação que tal facto gerou, visto haver necessidade de dinheiro para se iniciarem as transacções e este se encontrar, todo, na casa-forte.

Foi um sarilho de mil diabos!

Um trolha – o Cagica – que, normalmente, fazia serviço naquele edifício, apercebeu-se da enrascada em que aquela gente estava metida e ofereceu-se para arranjar maneira de se poder entrar na casa-forte dentro de meia-hora, o máximo.

Aceite que foi a oferta, o Cagica, de picareta em punho, e dentro do tempo previsto, arrombou um pedaço de parede da casa-forte, que ele sabia ser feita de adobos, e assim permitiu que o pessoal do Banco de Portugal lá entrasse e resolvesse a situação difícil em que se encontrava.

Que grande segurança que oferecia a casa-forte onde se guardava tanto dinheiro!...

Aliás, isso não é de estranhar (a falta de segurança) se soubermos que, quando havia necessidade de fazer transferências para a filial do Banco de Portugal, no Porto, o dinheiro era ensacado em sacos de lona e, em carro de cavalos, no qual seguia um funcionário daquele Banco, era transportado à estação do Caminho de Ferro e colocado num compartimento reservado de um qualquer vagão de passageiros do comboio rápido, compartimento que era fechado e no qual viajava, a acompanhar o dinheiro, um empregado superior daquele Banco, sem qualquer outra guarda.

No Porto lá estava outro carro de cavalos para levar a «mercadoria» aos cofres da referida filial.

E, que eu saiba, nunca houve empecilho que evitasse que o dinheiro saído de Aveiro desse entrada no local aonde se destinava.

Como os tempos mudaram!...

Os sacos continham não só notas, como, também, moedas correntes: de prata (de dez e cinco tostões); de níquel (de dois tostões e tostão); e de cobre (de vinte, dez e cinco réis).

E, a propósito de moedas, ainda me lembro de aparecerem, no mercado, muitas libras de ouro que, para serem trocadas por moeda corrente, tinham de pagar ágio, isto é, em vez de serem pagas por 4500 réis, o eram, no melhor dos casos, por 4480 réis, isto é, pagavam um vintém de ágio; este, porém, subia conforme a necessidade da troca, chegando a ser de cinco tostões, ou seja, por uma libra de ouro pagavam-se 4000 réis da nossa moeda, de então.

Volto a dizer: – Como os tempos mudaram!...

Mas... vamos continuar com o que aquela associação de ideias, me trouxe à memória. / 57 /

Já depois de escrito o que, antes, se diz quanto às transferências de dinheiro, tive oportunidade de conversar com um amigo da velha guarda, a quem muito prezo, que me contou o seguinte episódio que se passou com ele e que, não se referindo a Aveiro, não resisto a contá-lo, por me parecer interessante.

– Em Novembro de 1928, recebeu a Agência do Banco de Portugal, em Leiria, onde ele, então, estava empregado, ordem para transferir para Lisboa a quantia de 18 000 contos, importância que devia seguir num comboio que, na estação de Leiria, passava por volta das seis horas da manhã.

(Dezoito mil contos ainda hoje, é muito dinheiro; mas, naquele tempo...)

O dinheiro a transferir, todo em notas, foi colocado em sacos de linhagem e, no dia aprazado para a transferência, compareceu naquela Agência, pelas 5 horas, um cocheiro com o respectivo carro de mulas, e foi esse cocheiro quem, da casa-forte, transportou para o carro os sacos com o dinheiro, operação a que assistiram, somente, aquele meu amigo e um dos agentes daquele Banco.

Foram estes, também, os únicos que acompanharam todo aquele dinheiro até ao seu destino, quer no percurso do carro de mulas até à Estação do Caminho de Ferro (esta fica a cerca de 4 quilómetros da cidade por estrada, naquele tempo, e àquela hora, sem movimento) quer, também, no comboio, até à estação de Alcântara-Terra (para onde os sacos foram despachados) e, daqui, para a sede do Banco de Portugal.

Os sacos foram descarregados para a gare da estação de Leiria pelo cocheiro, e daqui para o compartimento que no comboio vinha reservado para o efeito, pelos carregadores da estação, como qualquer outra mercadoria.

Em Lisboa, as operações foram feitas em sentido inverso: do comboio para a gare, pelo pessoal da C.P.; daqui para o carro de cavalos que o levou ao seu destino, pelo cocheiro desse carro, e, sempre, e somente, sob a vigilância daqueles dois funcionários.

Quando os sacos estavam na estação de Leiria, houve um rapazito que, conhecendo os empregados do Banco, desconfiou da espécie de mercadoria que aquele monte de sacos continha, e foi apalpá-los, exclamando alto e bom som:

– Ih! Dinheiro!... tanto dinheiro!... Na vida, o que nos reserva o destino? Sabe-se lá?!...

Este meu amigo que, há 50 anos, não teve qualquer problema ao fazer a transferência de 18000 contos, e nas condições atrás descritas, assistiu, sob a ameaça de armas de fogo, ao assalto ao Banco de que era agente e viu retirar, das caixas em serviço, todo o dinheiro que lá estava e, da casa-forte, uma enorme quantidade de notas novas, cujas séries ainda não estavam em circulação. / 58 / E, viu mais: viu que o chefe do grupo que fez o assalto, depois do 25 de Abril, foi solto e colocado como funcionário de categoria em certo Ministério Governamental…

Como tudo está mudado!...

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