No primeiro Contrato Colectivo negociado
entre o Sindicato Nacional dos Empregados de Escritório e Caixeiros do
Distrito de Aveiro e o Grémio do Comércio de Aveiro figurava, como
feriado obrigatório, o dia da FESTA DA BARRA.
Aos que, mais tarde, tiveram de negociar
outro Contrato, desconhecedores que eram da importância que, para os
aveirenses, tinha, então, essa festa, causou-lhe admiração e espanto a
inclusão daquele dia como feriado obrigatório, no primeiro contrato.
Devo esclarecer que ele foi obtido em troca
do Sindicato aceder a que os estabelecimentos estivessem abertos nos
domingos da «Feira de Março» e que os seus caixeiros se mantivessem ao
serviço nesses domingos.
Mas... não foi grande o sacrifício que o
Grémio fez nessa concessão, pois raro era o estabelecimento que não
encerrava as suas portas naquele dia, pelo menos da parte da tarde, para
que os empregados e os próprios patrões fossem à Barra comer o seu
farnel, tradição que vinha de há muitos anos.
E insistiu-se na inclusão do encerramento
naquele dia, porque alguns antigos caixeiros que, nesta qualidade,
exigiam aquela regalia, quando arvorados em patrões, eram os mais
renitentes em a conceder.
Num artigo datado de 28-IV-1927, assinado
por VEGANTALISE, lê-se o seguinte: «Se alguém que não conheça Aveiro
vier visitar esta cidade por volta
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das 16 horas da última segunda-feira de Setembro, imagina, por certo,
que uma onda avassaladora de desgraça ou de morte a invadiu, tal o
silêncio que nela reina, tal a falta de movimento que nela se nota. Se,
porém, o forasteiro tiver chegado de manhã, há-de, com certeza, admirar
o movimento anormal que se observa, quer pela ria, quer pela estrada que
a ladeia, estranhando, certamente, o êxodo que se nota para aquele lado.
Pela estrada, a pé, gente de todas as categorias e idades, portadores de
malas e cestos; bicicletas e carros de cavalos de todos os tipos; e
automóveis e camionetas (poucos eram) de várias marcas. E, pela ria,
barcos e bateiras de todos os modelos que nela existem e que bastantes
são».
E, a seguir: «Se o primeiro dos visitantes
se demorasse até à noite, verificaria que, felizmente, a falta que notou
na cidade, não foi devida a qualquer desgraça, pois assistiria à chegada
desses habitantes, não só nos meios de transporte que foram usados na
ida, como, também, e sobretudo, de ranchos de alegres forasteiros,
cantando e dançando; e, se tivesse a curiosidade de perguntar, ficaria a
saber que os fenómenos observados eram devidos à FESTA DA BARRA».
Assim era, de facto.
Num dia em que, por força do cargo que
exercia, fui impedido de ir à Barra – com grande desgosto meu – para
acompanhar a reparação de uma máquina, finda que foi esta, por volta das
16 horas, dei uma volta pela cidade, passando pela Beira-Mar e indo até
às Cinco Bicas, pelo lado do Jardim, e vindo pela Rua Direita até aos
Arcos, encontrei, somente, quatro pessoas que, talvez como eu, não
puderam ir à Barra por casos de força maior.
Normalmente, os pais permitiam que os filhos
– saindo mais cedo do que eles – fossem em grupo com os amigos,
combinando, de antemão, o local em que, na Barra, se haviam de
encontrar, após a procissão da Nossa Senhora dos Navegantes (a qual,
saindo da sua capelinha no Forte, ia pelo paredão até à «meia-laranja»,
se o mar o permitisse) a fim de toda a família comer o farnel.
E a rapaziada, dias antes, combinava, entre
si, qual o meio de transporte que cada qual ia usar, para organizarem os
grupos; tudo dependia do dinheiro que os pais lhes prometeram dar para o
efeito. Com um vintém (20 réis ou 2 centavos) já podiam ir no barco até
à Ponte da Cambeia, pois era aqui que os barcos estacionavam; mas, se
tinham mais algum, poderiam ir num char-à-banc (carro de cavalos
que levava uns poucos de passageiros); os cavalos que puxavam estes
carros iam enfeitados com guizos que, ao trote dos mesmos, produziam
alegres sons.
Mesmo aqueles a quem os pais não podiam, ou
não queriam dar dinheiro, iam a pé, e muitos eram esses.
Num ano, um ou dois dias antes da festa, e
para formação de grupos, juntaram-se
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uns amigos para que cada um dissesse qual o meio de transporte que
tencionava usar na sua ida à Barra: um deles estava calado; e, quando
interrogado, respondeu muito ancho: «eu cá, vou de arco».
Ora, o arco era uma roda feita de ferro, com
uma forqueta de arame e que o condutor empurrava na sua frente e que,
para o equilibrar, tinha de correr.
E não faltavam à Barra os operários de todas
as indústrias.
No areal da Barra – então limpo e sem
pedregulhos – não havia festa nenhuma; afora os farnéis que cada família
levava, só as brincadeiras e o à-vontade que entre todos os forasteiros
se estabelecia e reinava, nada havia que ver.
No entretanto, toda a gente procurava não
faltar, ainda mesmo que o tempo ameaçasse chuva.
E acontecia – não poucas vezes – chegarmos a
casa molhados até aos ossos, ou porque a chuva nos apanhava ainda na
Barra, ou no Forte (aqui é que havia festa), ou na estrada, ou mesmo no
barco ou no carro de cavalos.
Mesmo molhadas, parecendo pintos, as gentes
de Aveiro e seus arredores davam por bem empregadas as horas que, no
areal da Barra, passaram a puxar as pernas a amigos e a conhecidos e a
merendarem do seu farnel e do farnel dos amigos que, para tal efeito, os
convidavam.
E era a festa que aos namorados mais
apetecia, pois que não tendo a mocidade de então a liberdade que hoje
tem – nem coisa que com isso se parecesse –, neste dia, quer na ida para
a Barra, quer no regresso, os pais das raparigas permitiam que nos
ranchos em que elas se incorporavam (e havia de ser gente da sua
confiança) os namorados as acompanhassem, e se divertissem.
E até ao areal podia haver brincadeiras,
mas em grupo; porém, sempre vigiadas pelas pessoas mais velhas da
família.
Eis como era, noutro tempo, a FESTA DA
BARRA. |