Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Festa da Barra

No primeiro Contrato Colectivo negociado entre o Sindicato Nacional dos Empregados de Escritório e Caixeiros do Distrito de Aveiro e o Grémio do Comércio de Aveiro figurava, como feriado obrigatório, o dia da FESTA DA BARRA.

Aos que, mais tarde, tiveram de negociar outro Contrato, desconhecedores que eram da importância que, para os aveirenses, tinha, então, essa festa, causou-lhe admiração e espanto a inclusão daquele dia como feriado obrigatório, no primeiro contrato.

Devo esclarecer que ele foi obtido em troca do Sindicato aceder a que os estabelecimentos estivessem abertos nos domingos da «Feira de Março» e que os seus caixeiros se mantivessem ao serviço nesses domingos.

Mas... não foi grande o sacrifício que o Grémio fez nessa concessão, pois raro era o estabelecimento que não encerrava as suas portas naquele dia, pelo menos da parte da tarde, para que os empregados e os próprios patrões fossem à Barra comer o seu farnel, tradição que vinha de há muitos anos.

E insistiu-se na inclusão do encerramento naquele dia, porque alguns antigos caixeiros que, nesta qualidade, exigiam aquela regalia, quando arvorados em patrões, eram os mais renitentes em a conceder.

Num artigo datado de 28-IV-1927, assinado por VEGANTALISE, lê-se o seguinte: «Se alguém que não conheça Aveiro vier visitar esta cidade por volta / 24 / das 16 horas da última segunda-feira de Setembro, imagina, por certo, que uma onda avassaladora de desgraça ou de morte a invadiu, tal o silêncio que nela reina, tal a falta de movimento que nela se nota. Se, porém, o forasteiro tiver chegado de manhã, há-de, com certeza, admirar o movimento anormal que se observa, quer pela ria, quer pela estrada que a ladeia, estranhando, certamente, o êxodo que se nota para aquele lado. Pela estrada, a pé, gente de todas as categorias e idades, portadores de malas e cestos; bicicletas e carros de cavalos de todos os tipos; e automóveis e camionetas (poucos eram) de várias marcas. E, pela ria, barcos e bateiras de todos os modelos que nela existem e que bastantes são».

E, a seguir: «Se o primeiro dos visitantes se demorasse até à noite, verificaria que, felizmente, a falta que notou na cidade, não foi devida a qualquer desgraça, pois assistiria à chegada desses habitantes, não só nos meios de transporte que foram usados na ida, como, também, e sobretudo, de ranchos de alegres forasteiros, cantando e dançando; e, se tivesse a curiosidade de perguntar, ficaria a saber que os fenómenos observados eram devidos à FESTA DA BARRA».

Assim era, de facto.

Num dia em que, por força do cargo que exercia, fui impedido de ir à Barra – com grande desgosto meu – para acompanhar a reparação de uma máquina, finda que foi esta, por volta das 16 horas, dei uma volta pela cidade, passando pela Beira-Mar e indo até às Cinco Bicas, pelo lado do Jardim, e vindo pela Rua Direita até aos Arcos, encontrei, somente, quatro pessoas que, talvez como eu, não puderam ir à Barra por casos de força maior.

Normalmente, os pais permitiam que os filhos – saindo mais cedo do que eles – fossem em grupo com os amigos, combinando, de antemão, o local em que, na Barra, se haviam de encontrar, após a procissão da Nossa Senhora dos Navegantes (a qual, saindo da sua capelinha no Forte, ia pelo paredão até à «meia-laranja», se o mar o permitisse) a fim de toda a família comer o farnel.

E a rapaziada, dias antes, combinava, entre si, qual o meio de transporte que cada qual ia usar, para organizarem os grupos; tudo dependia do dinheiro que os pais lhes prometeram dar para o efeito. Com um vintém (20 réis ou 2 centavos) já podiam ir no barco até à Ponte da Cambeia, pois era aqui que os barcos estacionavam; mas, se tinham mais algum, poderiam ir num char-à-banc (carro de cavalos que levava uns poucos de passageiros); os cavalos que puxavam estes carros iam enfeitados com guizos que, ao trote dos mesmos, produziam alegres sons.

Mesmo aqueles a quem os pais não podiam, ou não queriam dar dinheiro, iam a pé, e muitos eram esses.

Num ano, um ou dois dias antes da festa, e para formação de grupos, juntaram-se / 25 / uns amigos para que cada um dissesse qual o meio de transporte que tencionava usar na sua ida à Barra: um deles estava calado; e, quando interrogado, respondeu muito ancho: «eu cá, vou de arco».

Ora, o arco era uma roda feita de ferro, com uma forqueta de arame e que o condutor empurrava na sua frente e que, para o equilibrar, tinha de correr.

E não faltavam à Barra os operários de todas as indústrias.

No areal da Barra – então limpo e sem pedregulhos – não havia festa nenhuma; afora os farnéis que cada família levava, só as brincadeiras e o à-vontade que entre todos os forasteiros se estabelecia e reinava, nada havia que ver.

No entretanto, toda a gente procurava não faltar, ainda mesmo que o tempo ameaçasse chuva.

E acontecia – não poucas vezes – chegarmos a casa molhados até aos ossos, ou porque a chuva nos apanhava ainda na Barra, ou no Forte (aqui é que havia festa), ou na estrada, ou mesmo no barco ou no carro de cavalos.

Mesmo molhadas, parecendo pintos, as gentes de Aveiro e seus arredores davam por bem empregadas as horas que, no areal da Barra, passaram a puxar as pernas a amigos e a conhecidos e a merendarem do seu farnel e do farnel dos amigos que, para tal efeito, os convidavam.

E era a festa que aos namorados mais apetecia, pois que não tendo a mocidade de então a liberdade que hoje tem – nem coisa que com isso se parecesse –, neste dia, quer na ida para a Barra, quer no regresso, os pais das raparigas permitiam que nos ranchos em que elas se incorporavam (e havia de ser gente da sua confiança) os namorados as acompanhassem, e se divertissem.

E até ao areal podia haver brincadeiras, mas em grupo; porém, sempre vigiadas pelas pessoas mais velhas da família.

Eis como era, noutro tempo, a FESTA DA BARRA.

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