Agora, que voltou a agitar-se a questão do
horário de abertura e encerramento dos estabelecimentos comerciais,
parece-me não ser despropositado vir contar o que se passava em 1914,
ano em que, depois de ter feito o exame do 2.º grau, me empreguei nos
Grandes Armazéns do Chiado, que, nesse tempo, tinham o seu
estabelecimento debaixo dos arcos e iam até à Rua José Estêvão.
Nessa altura, para o comércio, não havia
horário de trabalho.
Quem tivesse necessidade de se dirigir à
estação do caminho de ferro para embarcar no comboio correio que, de
Lisboa, seguia para o Porto, e que passava em Aveiro pelas 5 horas da
manhã, encontrava, já, os talhos abertos e em plena laboração, como se
verificava pelas luzes que vinham desses estabelecimentos, e, também,
pelo barulho, que se ouvia, dos cutelos a baterem sobre os cepos; e, na
estação, encontrava as canastras com carne, para despacho, prova de que,
muito antes das 5, o pessoal já estivera a trabalhar.
Pelas seis, abriam as padarias, algumas
mercearias, as tabernas e, até, as farmácias, sendo certo que, às oito,
todo o comércio funcionava em pleno, e sendo verdade, também, que a
maioria dos estabelecimentos às 21 e 22 horas se encontravam abertos,
mesmo que não tivessem clientes, pois até serviam de local de paleio
para os proprietários e seus amigos.
O horário normal era de 12 horas; se, porém,
acontecia que as senhoras Pessoas ou as senhoras Mesquitas, depois do
seu jantar, se lembravam de entrar em qualquer dos estabelecimentos de
fazendas, ou de modas, o encerramento dessas lojas far-se-ia muito mais
tarde do que o normal, porque aquelas senhoras – e outras que tais – se
instalavam, comodamente, em cadeiras que, por delicadeza, lhes tínhamos
de fornecer, e, mandando pôr abaixo dos lotes fazendas para escolher, e
tirar amostrinhas para levarem, e, com muita conversa à mistura,
impediam o encerramento, obrigando os caixeiros a estar presos durante
horas, sem que, daí, viesse qualquer lucro para o patrão, pois raramente
elas comprovam alguma coisa.
Não havia horário de trabalho estabelecido
por Lei: cada um fazia o que lhe dava na tineta.
Entretanto, no que se refere ao descanso
semanal, já em 1911 – se a memória não me atraiçoa – fora decretado que
todos os trabalhadores (operários e empregados) tinham o direito de
descansar, por semana, 24 horas seguidas, competindo às Câmaras
Municipais a escolha e regulamentação desse descanso, dentro do
respectivo Concelho.
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Do facto de serem as Câmaras Municipais a
determinarem o dia do descanso semanal, resultou uma balbúrdia tremenda
em todo o país.
Basta dizer que os caixeiros-viajantes de
então se viam seriamente embaraçados para estabelecerem os seus roteiros
de viagem, pois a diversidade dos dias de descanso semanal nas diversas
localidades (e que iam de Domingo até Sábado) obrigava-os a dirigirem-se
a localidades afastadas, quando no percurso havia outras que eles deviam
servir e o não podiam fazer por o comércio estar fechado nos dias em que
lá passavam; como tinham de voltar a essas localidades, perdiam muito
tempo.
Poderá parecer aos leitores da actual
geração que eu exagero nas dificuldades acima indicadas; porém, se
souberem que, então, não havia os meios de transporte que hoje há
(automóveis, camionetas, motorizadas, etc.) e que os viajantes se
deslocavam da sede dos estabelecimentos que representavam em comboio,
até determinadas localidades, onde assentavam arraiais por muitos dias,
e que, daqui, irradiavam para aquelas onde tinham clientes a servir e,
bem assim, que essas deslocações se tinham de fazer a pé, de bicicleta a
pedais ou em carro de cavalos (se tinham de levar as malas com as
amostras), já não devem ter dificuldade em aceitar a minha afirmativa.
Aveiro era uma das localidades onde os
viajantes faziam quartel-general.
Imagine a gente nova o que seria a
deslocação daqui para Ílhavo, Vagos e, até, Mira e aos arredores destes
concelhos, com os meios de que eles podiam dispor.
Mas... vamos ao que nos diz respeito.
A Câmara Municipal de então, composta na sua
maioria por comerciantes, escolheu, para descanso semanal para o
comércio, o meio dia de Domingo (da parte da tarde) e o meio dia de
Segunda-feira (da parte da manhã), com a alegação de que no Domingo se
fazia o grande negócio da cidade, pois, nesse dia, aqui se deslocavam as
gentes dos arredores e das Gafanhas, que vinham vender os seus produtos
agrícolas ao mercado, transportando-os em carros e carroças de bois, e
em barcos; e, só depois de apurado o valor dessas vendas, iam, então,
fazer as suas compras aos diversos estabelecimentos da cidade.
Alegavam, também os defensores desta teoria,
que, se o comércio estivesse encerrado ao Domingo, a maioria dos
estabelecimentos teria de fechar as suas portas, pois que essa gente não
viria a Aveiro nos dias de semana, visto que tinham as suas terras e os
seus gados para tratar.
Era esta, também, a argumentação das
edilidades de grande número de
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concelhos do País, que escolheram, por isso, dias de semana para
descanso nos seus concelhos, conforme as suas conveniências.
Com o andar dos tempos, o comércio começou a
espalhar-se por todos os lugares e, por conseguinte, os povos desses
lugares passaram a ter a possibilidade de se abastecerem, durante a
semana, dos artigos de que tinham necessidade, pelo que o comércio das
sedes dos concelhos deixou de ter a importância que tinha.
É, então, que algumas associações comerciais
e todas as dos caixeiros e empregados de escritório se movimentam (quer
com campanhas na Imprensa, quer por exposições enviadas aos poderes
constituídos), no sentido de ser decretado o descanso dominical em todo
o País; e, ao longo do tempo, e aos poucos, alguns concelhos vão obtendo
essa regalia, havendo outros, porém, como o de Aveiro, que o não
conseguiam, pois, aqui, os comerciantes não abdicavam da sua posição.
Como disse anteriormente, a Câmara Municipal
de Aveiro determinou, para o descanso semanal dos estabelecimentos
comerciais, o encerramento às 12 horas de Domingo e a reabertura às 12
horas de Segunda-feira. Porém, raro era o estabelecimento que, ao
Domingo, fechasse as suas portas antes das 15 horas, sendo certo que, na
Segunda-feira, ao bater das 12 horas na torre da Câmara, todos estavam
já abertos, ou, pelo menos, a abrir.
Contra esta anomalia protestavam a
Associação dos Empregados do Comércio e a sua sucessora, a FÉNIX DE
AVEIRO; centenas de vezes os seus dirigentes (os que ainda são vivos
podem contar-se pelos dedos das mãos) subiram as escadas do Governo
Civil a pedir (ainda não estava na moda o exigir) a interferência dos
diversos titulares no sentido de ser alterado o Regulamento, então em
vigor, e as do Comando da Polícia, pedindo que fosse exercida a
fiscalização desse mesmo Regulamento, multando os transgressores. Apesar
das promessas que nos faziam – e isto durante muitos anos – mantinha-se
tudo na mesma.
Aproveitando o facto de, a determinada
altura, se ter estabelecido um acordo entre as várias correntes
políticas no sentido de se organizar um bloco político que se denominou
de «regionalismo» e se destinava a promover e defender os interesses
de Aveiro, principalmente a construção do seu porto e respectivo «hinterland»,
um grupo de comerciantes, já então muito evoluídos (Albino Miranda,
Pompeu da Costa Pereira, António Osório e Alfredo Osório)
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resolveu apoiar os caixeiros na sua pretensão de que fosse determinado o
descanso dominical; e porque a Associação Comercial, onde pontificavam,
e eles, pessoalmente, tinham influência no bloco regionalista,
pressionaram o Presidente da Câmara, o Dr. Lourenço Peixinho, a alterar
o Regulamento Semanal então em vigor, ficando estabelecido o
encerramento aos Domingos durante todo o dia.
Parecia ter ficado arrumado este assunto,
tanto mais que a maioria dos comerciantes aceitou, de boa vontade, o
novo regime que, há muito, desejava.
Porém, um outro grupo de comerciantes,
retrógados e teimosos (Guimarães, Meireles, Abrantes e Carneirinha),
convencidos de que os seus interesses estavam a ser prejudicados, visto
que o comércio no concelho de Ílhavo continuava aberto aos Domingos,
resolveu não acatar o Edital publicado pela Câmara e manter abertos os
seus estabelecimentos, pelo que a Associação dos Caixeiros os levou ao
Tribunal, onde foram condenados, condenação da qual recorreram.
E os caixeiros, para os pressionar a
cumprirem o encerramento, fizeram-lhes várias partidas arreliadoras.
Uma delas, foi a de colocarem no passeio, à
porta do Abrantes, uma mistura de ingredientes em que entrava o ácido
fénico, com cheiro muito desagradável e que afugentava toda a gente do
estabelecimento, sendo certo que, quanto mais água aquele comerciante
deitava no passeio, mais o cheio refinava; e este era de maneira tal que
se sentia desde a fonte da Vera-Cruz (que já não existe) até à Praça da
República.
Os caixeiros – os directores e alguns dos
mais dedicados à Associação – tiveram de se armar em fiscais e vigiar os
estabelecimentos existentes no mercado que, à sorrelfa, pretendiam
vender artigos que não deviam, fazendo assim concorrência aos que
estavam encerrados, sendo certo que, no mercado, aos Domingos, só se
deviam vender produtos agrícolas; e estendiam a sua fiscalização a
várias tabernas, quer da cidade, quer dos arredores, autorizadas a estar
abertas na secção de vinhos, mas que, transgredindo o conteúdo do
Edital, também iam vendendo o que estava proibido vender.
E os comerciantes condenados voltaram a
perder a questão e recorreram para o Supremo Tribunal.
Aqui, ganharam, porque o seu advogado teve
conhecimento – e, nesse sentido alegou – de que o Chefe da Secretaria da
Câmara, na Acta da sessão que aprovou o Regulamento do Descanso
Dominical, não transcreveu, na íntegra, o Regulamento aprovado, e se
limitou a citar essa aprovação dizendo que ele era de harmonia com o
Edital já afixado.
A Associação dos Caixeiros foi condenada a
pagar as custas; e, porque não tinha vintém para o fazer, foi mandada
penhorar.
Várias vezes o oficial de diligências foi à
sua sede para fazer a penhora; porém, quando lá chegava, encontrava a
sala vazia, pois os poucos trastes de
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que a Associação era possuidora haviam, na noite anterior, mudado de
poiso, para regressarem ao seu lugar, logo que o mau tempo passasse.
Uma vez, porém, não funcionou o dispositivo
de segurança, e os trastes foram comprados em leilão pelo Cravo, da
Gafanha, a quem os adquirimos, novamente, por cerca de duzentos escudos
(se a memória me não falha), obtidos à custa de cotizações, não só dos
caixeiros como de outras pessoas amigas.
E, para não termos mais problemas,
dissolvemos a Associação dos Caixeiros e fundámos a Fénix de Aveiro –
Associação de classe, em nome da qual já comprámos os trastes acima
referidos.
Só mudámos o nome, pois tudo continuou a
funcionar na mesma: o mesmo local, os mesmos móveis e papelada, a mesma
gente e o mesmo ideal.
Com a sentença do Supremo, foi anulado o
Regulamento do Descanso Dominical e, como este havia anulado o anterior,
ficou o concelho de Aveiro sem lei para regular o descanso semanal.
Cada um fazia, quanto a este, como lhe dava
na real gana.
A Fénix, depois dos seus estatutos
aprovados, começa a insistir com a Câmara para que resolvesse este
estado de coisas; porém, neste meio tempo, o bloco do regionalismo
havia-se fraccionado e os comerciantes que nos apoiavam eram do lado
contrário ao Presidente da Câmara, pelo que este não tomava qualquer
resolução, para amolar a paciência aos seus contrários.
Depois de muitos ofícios da Fénix para a
Câmara – e a que esta não se dignava responder – tomou a Fénix a
resolução de avisar a Câmara de que iria pôr o Ministro do Interior ao
corrente do que se passava e da falta de consideração e respeito por um
Organismo legalmente organizado. Reagiu, então, o Presidente da Câmara,
propondo, pessoalmente, ao Presidente da Fénix um acordo: a Fénix, por
ofício, declarava aceitar o descanso semanal como, primeiramente, estava
estabelecido, isto é, o encerramento de meio dia de Domingo e o outro
meio dia de Segunda, e ele, Presidente da Câmara, comprometia-se a
elaborar o respectivo regulamento, fazê-lo aprovar pela Câmara, e exigir
que fosse cumprido. Assim, dizia ele, vocês ficam com um dia de descanso
que, agora, não têm.
O Presidente da Fénix respondeu-lhe que, por
si, recusava tal acordo, visto que, ele e os seus colegas de direcção se
bateram pelo descanso dominical, como o Presidente da Câmara bem sabia;
porém, não teria dúvida de expor a todos os associados a proposta que
lhe foi feita.
Fez-se uma reunião, convocada especialmente
para este fim, tendo a Assembleia recusado, por unanimidade, tal
proposta de acordo.
Assim, continuava tudo como dantes.
E como acabou este impasse?
Um dos governos organizados, após a
Revolução de 28 de Maio, pôs termo à barafunda que havia em todo o País:
com um simples decreto, até mesmo com muito poucos artigos, determinou o
descanso, com encerramento, aos Domingos, de todos os estabelecimentos
comerciais e industriais e de feiras e mercados.
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E, nem por isso, houve negociantes a
fecharem as suas casas por falta de negócio, pelo menos, de que eu tenha
tido conhecimento. |