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Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Horário de trabalho no comércio

Agora, que voltou a agitar-se a questão do horário de abertura e encerramento dos estabelecimentos comerciais, parece-me não ser despropositado vir contar o que se passava em 1914, ano em que, depois de ter feito o exame do 2.º grau, me empreguei nos Grandes Armazéns do Chiado, que, nesse tempo, tinham o seu estabelecimento debaixo dos arcos e iam até à Rua José Estêvão.

Nessa altura, para o comércio, não havia horário de trabalho.

Quem tivesse necessidade de se dirigir à estação do caminho de ferro para embarcar no comboio correio que, de Lisboa, seguia para o Porto, e que passava em Aveiro pelas 5 horas da manhã, encontrava, já, os talhos abertos e em plena laboração, como se verificava pelas luzes que vinham desses estabelecimentos, e, também, pelo barulho, que se ouvia, dos cutelos a baterem sobre os cepos; e, na estação, encontrava as canastras com carne, para despacho, prova de que, muito antes das 5, o pessoal já estivera a trabalhar.

Pelas seis, abriam as padarias, algumas mercearias, as tabernas e, até, as farmácias, sendo certo que, às oito, todo o comércio funcionava em pleno, e sendo verdade, também, que a maioria dos estabelecimentos às 21 e 22 horas se encontravam abertos, mesmo que não tivessem clientes, pois até serviam de local de paleio para os proprietários e seus amigos.

O horário normal era de 12 horas; se, porém, acontecia que as senhoras Pessoas ou as senhoras Mesquitas, depois do seu jantar, se lembravam de entrar em qualquer dos estabelecimentos de fazendas, ou de modas, o encerramento dessas lojas far-se-ia muito mais tarde do que o normal, porque aquelas senhoras – e outras que tais – se instalavam, comodamente, em cadeiras que, por delicadeza, lhes tínhamos de fornecer, e, mandando pôr abaixo dos lotes fazendas para escolher, e tirar amostrinhas para levarem, e, com muita conversa à mistura, impediam o encerramento, obrigando os caixeiros a estar presos durante horas, sem que, daí, viesse qualquer lucro para o patrão, pois raramente elas comprovam alguma coisa.

Não havia horário de trabalho estabelecido por Lei: cada um fazia o que lhe dava na tineta.

Entretanto, no que se refere ao descanso semanal, já em 1911 – se a memória não me atraiçoa – fora decretado que todos os trabalhadores (operários e empregados) tinham o direito de descansar, por semana, 24 horas seguidas, competindo às Câmaras Municipais a escolha e regulamentação desse descanso, dentro do respectivo Concelho. / 12 /

Do facto de serem as Câmaras Municipais a determinarem o dia do descanso semanal, resultou uma balbúrdia tremenda em todo o país.

Basta dizer que os caixeiros-viajantes de então se viam seriamente embaraçados para estabelecerem os seus roteiros de viagem, pois a diversidade dos dias de descanso semanal nas diversas localidades (e que iam de Domingo até Sábado) obrigava-os a dirigirem-se a localidades afastadas, quando no percurso havia outras que eles deviam servir e o não podiam fazer por o comércio estar fechado nos dias em que lá passavam; como tinham de voltar a essas localidades, perdiam muito tempo.

Poderá parecer aos leitores da actual geração que eu exagero nas dificuldades acima indicadas; porém, se souberem que, então, não havia os meios de transporte que hoje há (automóveis, camionetas, motorizadas, etc.) e que os viajantes se deslocavam da sede dos estabelecimentos que representavam em comboio, até determinadas localidades, onde assentavam arraiais por muitos dias, e que, daqui, irradiavam para aquelas onde tinham clientes a servir e, bem assim, que essas deslocações se tinham de fazer a pé, de bicicleta a pedais ou em carro de cavalos (se tinham de levar as malas com as amostras), já não devem ter dificuldade em aceitar a minha afirmativa.

Aveiro era uma das localidades onde os viajantes faziam quartel-general.

Imagine a gente nova o que seria a deslocação daqui para Ílhavo, Vagos e, até, Mira e aos arredores destes concelhos, com os meios de que eles podiam dispor.

Mas... vamos ao que nos diz respeito.

A Câmara Municipal de então, composta na sua maioria por comerciantes, escolheu, para descanso semanal para o comércio, o meio dia de Domingo (da parte da tarde) e o meio dia de Segunda-feira (da parte da manhã), com a alegação de que no Domingo se fazia o grande negócio da cidade, pois, nesse dia, aqui se deslocavam as gentes dos arredores e das Gafanhas, que vinham vender os seus produtos agrícolas ao mercado, transportando-os em carros e carroças de bois, e em barcos; e, só depois de apurado o valor dessas vendas, iam, então, fazer as suas compras aos diversos estabelecimentos da cidade.

Alegavam, também os defensores desta teoria, que, se o comércio estivesse encerrado ao Domingo, a maioria dos estabelecimentos teria de fechar as suas portas, pois que essa gente não viria a Aveiro nos dias de semana, visto que tinham as suas terras e os seus gados para tratar.

Era esta, também, a argumentação das edilidades de grande número de / 13 / concelhos do País, que escolheram, por isso, dias de semana para descanso nos seus concelhos, conforme as suas conveniências.

Com o andar dos tempos, o comércio começou a espalhar-se por todos os lugares e, por conseguinte, os povos desses lugares passaram a ter a possibilidade de se abastecerem, durante a semana, dos artigos de que tinham necessidade, pelo que o comércio das sedes dos concelhos deixou de ter a importância que tinha.

É, então, que algumas associações comerciais e todas as dos caixeiros e empregados de escritório se movimentam (quer com campanhas na Imprensa, quer por exposições enviadas aos poderes constituídos), no sentido de ser decretado o descanso dominical em todo o País; e, ao longo do tempo, e aos poucos, alguns concelhos vão obtendo essa regalia, havendo outros, porém, como o de Aveiro, que o não conseguiam, pois, aqui, os comerciantes não abdicavam da sua posição.

Como disse anteriormente, a Câmara Municipal de Aveiro determinou, para o descanso semanal dos estabelecimentos comerciais, o encerramento às 12 horas de Domingo e a reabertura às 12 horas de Segunda-feira. Porém, raro era o estabelecimento que, ao Domingo, fechasse as suas portas antes das 15 horas, sendo certo que, na Segunda-feira, ao bater das 12 horas na torre da Câmara, todos estavam já abertos, ou, pelo menos, a abrir.

Contra esta anomalia protestavam a Associação dos Empregados do Comércio e a sua sucessora, a FÉNIX DE AVEIRO; centenas de vezes os seus dirigentes (os que ainda são vivos podem contar-se pelos dedos das mãos) subiram as escadas do Governo Civil a pedir (ainda não estava na moda o exigir) a interferência dos diversos titulares no sentido de ser alterado o Regulamento, então em vigor, e as do Comando da Polícia, pedindo que fosse exercida a fiscalização desse mesmo Regulamento, multando os transgressores. Apesar das promessas que nos faziam – e isto durante muitos anos – mantinha-se tudo na mesma.

Aproveitando o facto de, a determinada altura, se ter estabelecido um acordo entre as várias correntes políticas no sentido de se organizar um bloco político que se denominou de «regionalismo» e se destinava a promover e defender os interesses de Aveiro, principalmente a construção do seu porto e respectivo «hinterland», um grupo de comerciantes, já então muito evoluídos (Albino Miranda, Pompeu da Costa Pereira, António Osório e Alfredo Osório) / 14 / resolveu apoiar os caixeiros na sua pretensão de que fosse determinado o descanso dominical; e porque a Associação Comercial, onde pontificavam, e eles, pessoalmente, tinham influência no bloco regionalista, pressionaram o Presidente da Câmara, o Dr. Lourenço Peixinho, a alterar o Regulamento Semanal então em vigor, ficando estabelecido o encerramento aos Domingos durante todo o dia.

Parecia ter ficado arrumado este assunto, tanto mais que a maioria dos comerciantes aceitou, de boa vontade, o novo regime que, há muito, desejava.

Porém, um outro grupo de comerciantes, retrógados e teimosos (Guimarães, Meireles, Abrantes e Carneirinha), convencidos de que os seus interesses estavam a ser prejudicados, visto que o comércio no concelho de Ílhavo continuava aberto aos Domingos, resolveu não acatar o Edital publicado pela Câmara e manter abertos os seus estabelecimentos, pelo que a Associação dos Caixeiros os levou ao Tribunal, onde foram condenados, condenação da qual recorreram.

E os caixeiros, para os pressionar a cumprirem o encerramento, fizeram-lhes várias partidas arreliadoras.

Uma delas, foi a de colocarem no passeio, à porta do Abrantes, uma mistura de ingredientes em que entrava o ácido fénico, com cheiro muito desagradável e que afugentava toda a gente do estabelecimento, sendo certo que, quanto mais água aquele comerciante deitava no passeio, mais o cheio refinava; e este era de maneira tal que se sentia desde a fonte da Vera-Cruz (que já não existe) até à Praça da República.

Os caixeiros – os directores e alguns dos mais dedicados à Associação – tiveram de se armar em fiscais e vigiar os estabelecimentos existentes no mercado que, à sorrelfa, pretendiam vender artigos que não deviam, fazendo assim concorrência aos que estavam encerrados, sendo certo que, no mercado, aos Domingos, só se deviam vender produtos agrícolas; e estendiam a sua fiscalização a várias tabernas, quer da cidade, quer dos arredores, autorizadas a estar abertas na secção de vinhos, mas que, transgredindo o conteúdo do Edital, também iam vendendo o que estava proibido vender.

E os comerciantes condenados voltaram a perder a questão e recorreram para o Supremo Tribunal.

Aqui, ganharam, porque o seu advogado teve conhecimento – e, nesse sentido alegou – de que o Chefe da Secretaria da Câmara, na Acta da sessão que aprovou o Regulamento do Descanso Dominical, não transcreveu, na íntegra, o Regulamento aprovado, e se limitou a citar essa aprovação dizendo que ele era de harmonia com o Edital já afixado.

A Associação dos Caixeiros foi condenada a pagar as custas; e, porque não tinha vintém para o fazer, foi mandada penhorar.

Várias vezes o oficial de diligências foi à sua sede para fazer a penhora; porém, quando lá chegava, encontrava a sala vazia, pois os poucos trastes de / 15 / que a Associação era possuidora haviam, na noite anterior, mudado de poiso, para regressarem ao seu lugar, logo que o mau tempo passasse.

Uma vez, porém, não funcionou o dispositivo de segurança, e os trastes foram comprados em leilão pelo Cravo, da Gafanha, a quem os adquirimos, novamente, por cerca de duzentos escudos (se a memória me não falha), obtidos à custa de cotizações, não só dos caixeiros como de outras pessoas amigas.

E, para não termos mais problemas, dissolvemos a Associação dos Caixeiros e fundámos a Fénix de Aveiro – Associação de classe, em nome da qual já comprámos os trastes acima referidos.

Só mudámos o nome, pois tudo continuou a funcionar na mesma: o mesmo local, os mesmos móveis e papelada, a mesma gente e o mesmo ideal.

Com a sentença do Supremo, foi anulado o Regulamento do Descanso Dominical e, como este havia anulado o anterior, ficou o concelho de Aveiro sem lei para regular o descanso semanal.

Cada um fazia, quanto a este, como lhe dava na real gana.

A Fénix, depois dos seus estatutos aprovados, começa a insistir com a Câmara para que resolvesse este estado de coisas; porém, neste meio tempo, o bloco do regionalismo havia-se fraccionado e os comerciantes que nos apoiavam eram do lado contrário ao Presidente da Câmara, pelo que este não tomava qualquer resolução, para amolar a paciência aos seus contrários.

Depois de muitos ofícios da Fénix para a Câmara – e a que esta não se dignava responder – tomou a Fénix a resolução de avisar a Câmara de que iria pôr o Ministro do Interior ao corrente do que se passava e da falta de consideração e respeito por um Organismo legalmente organizado. Reagiu, então, o Presidente da Câmara, propondo, pessoalmente, ao Presidente da Fénix um acordo: a Fénix, por ofício, declarava aceitar o descanso semanal como, primeiramente, estava estabelecido, isto é, o encerramento de meio dia de Domingo e o outro meio dia de Segunda, e ele, Presidente da Câmara, comprometia-se a elaborar o respectivo regulamento, fazê-lo aprovar pela Câmara, e exigir que fosse cumprido. Assim, dizia ele, vocês ficam com um dia de descanso que, agora, não têm.

O Presidente da Fénix respondeu-lhe que, por si, recusava tal acordo, visto que, ele e os seus colegas de direcção se bateram pelo descanso dominical, como o Presidente da Câmara bem sabia; porém, não teria dúvida de expor a todos os associados a proposta que lhe foi feita.

Fez-se uma reunião, convocada especialmente para este fim, tendo a Assembleia recusado, por unanimidade, tal proposta de acordo.

Assim, continuava tudo como dantes.

E como acabou este impasse?

Um dos governos organizados, após a Revolução de 28 de Maio, pôs termo à barafunda que havia em todo o País: com um simples decreto, até mesmo com muito poucos artigos, determinou o descanso, com encerramento, aos Domingos, de todos os estabelecimentos comerciais e industriais e de feiras e mercados. / 16 /

E, nem por isso, houve negociantes a fecharem as suas casas por falta de negócio, pelo menos, de que eu tenha tido conhecimento.

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