Terras da Nossa Terra - Ano 21, Abril de 1985

A transição e os primeiros anos / 13 / do século XX reflectem um total controlo da cidade pela burguesia colonial, marítima, industrial e comercial, e bem assim sectores de profissões livres, cuItural e economicamente influentes. Nascem belos exemplares de «vilas» de feição neoclassizante, a par com outras de inspiração «arte-nova», lado a lado com os palacetes das tradicionais famílias nobres, um pouco por todo o espaço urbano, dilatando este para fora dos núcleos antigos. Para o facto muito veio a contribuir a abertura da grande avenida, que se abriu da «ponte-praça» à estação e que viria a revolucionar totalmente a via citadina, a ponto de constituir, já no segundo quartel de Novecentos, o centro urbano por excelência, fruto da visão esclarecida do médico e político Dr. Lourenço Peixinho.

Mas a primeira república possibilitaria ainda o arranque de outras grandes construções, ajustadas ao rápido crescimento da urbe como aconteceu, em extremos opostos, com o hospital da Santa Casa da Misericórdia, a oeste o Parque Municipal, aproveitado da antiga cerca do Convento de Santo António, e a estação do caminho de ferro, o quartel, o mercado, etc. Com elas se esbateu por completo o bairrismo local dos três focos principais da cidade: os CEBOLEIROS, identificados com a paróquia da Glória, os CAGARÉUS do outro lado do canal, genericamente habitando a Vera-Cruz (paróquia da Sagrada Apresentação) e os BICUDOS, da antiga vila de Esgueira.

Ao atingir o primeiro quartel deste século, a população rondava, os números atingidos no final de Quinhentos. Começava então a desenhar-se a dispersão por lugares limítrofes, invadindo o espaço de Esgueira, ligada por estradas de grande movimento, obrigando a pensar seriamente no planeamento urbano. Aldeias vizinhas tornam-se «dormitórios» da cidade, casos de Aradas, Cacia, Oliveirinha, Gafanhas e, mais que outra qualquer, a vila de Ílhavo.

Deste afluxo resultou um espartilhar de estruturas antigas, traduzido de forma evidente pela abertura, em meados da nossa centúria, de novas escolas secundárias (Liceu e Escola Industrial e Comercial), o Seminário de Santa Joana Princesa e o Conservatório Regional.

Da mesma forma se verificou período de esplendor nas tradicionais indústrias cerâmicas, com as grandes fábricas de Jerónimo Pereira Campos, Aleluia, S. Roque; a pesca do bacalhau e construções navais, o tradicional sal de Aveiro e a pesca artesanal, que obrigam a rever o espaço do porto marítimo; a intensa agricultura e comércio, num crescimento de olhos no futuro, sem esquecer as raízes económicas que tinham outrora tornado grande a «vila notável», seduzem cada vez mais a fixação, que nos meados do século XX se aproximava dos 30.000 a 35.000 habitantes, transbordando pelas aldeias vizinhas (o censo de 1960 dava 9.422 habitantes à freguesia da Glória; 7.787 à de Vera-Cruz; 6.858 à de Esgueira e 5.660 à de Aradas) que dentro do espaço urbano fazem parte da sua vida, tendo em conta a escassa distância que as separa da cidade, caso, da vila de Ílhavo, a 3 quilómetros de Aveiro que, em 1960 contava cerca de 13.000 habitantes.

Mas Aveiro não pode ser entendido apenas na arquitectura, nas «artes maiores», nos documentos do passado. Este, como ainda o seu presente e em perfeita identidade histórica de muitos séculos, continua por excelência patente no segredo de saber lutar com o mar e a terra tornando áreas pantanosas em marinhas «artisticamente» concebidas, domesticando a laguna e as marés, produzindo, em cada tabuleiro – palmo de terra –, o precioso minério que lhe deu fama mundial e para aqui fez convergir interesses sociais bem diferenciados na Europa medieval ou mesmo contemporânea.

Também foi arte, saber encontrar os tipos de barcos mais ajustados a cada actividade de sobrevivência anfíbia, tanto nas águas ribeirinhas como da laguna, da costa marítima como do alto mar, até aos mais escondidos confins do império colonial. Pode ser encantador contemplar um barco moliceiro bem decorado e arquitectado, sabendo que em toda a Ria de Aveiro há presentemente pouco mais de uma dúzia desses sobreviventes, acabada que foi a geração dos seus construtores. Mas, em meados do nosso século, eram ainda muitas as dezenas dessas autênticas obras de arte que sulcavam os canais da cidade e da laguna. Outros povos, outras sensibilidades os contam já entre as peças de arte contemporânea e certamente mais moliceiros (e outros tipos de embarcações regionais) seguirão o mesmo caminho, com prejuízo para a cultura da Região, perante uma certa indiferença dos poderes, face à extinção que se avizinha.

História e arte são os barros da região aveirense que se podem documentar na primeira metade do século XV, com pergaminhos de Olarias que ganharam prestígio nacional, nomeadamente a partir de Quinhentos. A tradição rejuvenesceu e as artes cerâmicas contam-se entre as primeiras de âmbito urbano, desde as técnicas artesanais às mais sofisticadas indústrias, nas porcelanas, nos revestimentos, na barrística, no doméstico e decorativo, etc…

É no fundo, uma trilogia intrínseca às condições naturais da região em que, anonimamente, muitos contribuíram, em terra pobre de «materiais pobres» para a grandeza histórica e artística desta cidade da beira-mar.

In: AMARO NEVES, «História e Arte de Aveiro».

 

Página anterior - Previous Índice geral - Index Página seguinte - Next 13