De um "CADERNO DE MEMÓRIAS"
de JOSÉ PEREIRA TAVARES
1. O
Professor, o Educador, o Reitor
1901 - Aluno do Liceu de
Aveiro
Predominava em geral o método do
magister dixit que eu intimamente não aprovava, pois me parecia
menos ensino do que a deturpação dele. (...).
Nesta atmosfera liceal, em que as
relações entre mestres e alunos se cifravam às estabelecidas nas
aulas, respeitavam-se, em geral, os superiores; mas, então como hoje,
nós bem sabíamos quais eram os professores e quais os simples
marcadores de notas...
1916
- Viseu, início da carreira docente
A Escola Primária, o Liceu, mesmo em
parte o Curso Superior de Letras apontavam-me processos de ensino
condenáveis, a que se podia juntar o cortejo de incúria, desleixo,
cabulice, deslealdade e velhacaria... Iria eu imitar esses mestres e
pseudo-educadores? Não! Muito ao invés desses falsos pedagogos,
procuraria conduzir-me imitando os raros, os raríssimos capazes de me
servirem de modelo. Dois, especialmente, avultavam a meus olhos –
Manuel de Oliveira Ramos e o Dr. José Maria Rodrigues. Seguir-lhes-ia
o exemplo salutaríssimo!
Novembro, Liceu de Aveiro
Esbarrei com uma grande dificuldade:
queria ensinar Literatura, fugir do rançoso processo, tão seguido, de
exigir dos alunos simplesmente o conhecimento da lista dos autores,
das suas obras e dos dados biográficos; mas a biblioteca do Liceu,
bastante rica, ao que parecia, em obras de carácter teológico, não
possuía o mínimo indispensável para o ensino moderno daquela
disciplina. (...)
Por proposta minha, adquiriram-se
bastantes volumes de primeira necessidade, e os alunos de Literatura
tiveram à sua disposição, igualmente, a minha biblioteca particular. E
assim se começou, no Liceu de A veiro, a ministrar o ensino daquela
disciplina pelo único processo recomendável...
1920 - Dinamização do
Grupo Cénico do Liceu
Logo desde 1917, nas minhas aulas não
me cansava de aconselhar os alunos mais adiantados a ocuparem as suas
horas de ócio em coisas úteis, por exemplo na organização de récitas
académicas.
Em fins de 1919, alunos da 63 e 73
classes procuraram-me para me dizer estarem dispostos a pôr em
execução o meu conselho. Coma aquiescência do Reitor, tomei a direcção
do Grupo Cénico com funções de ensaiador! Pus então em prática uma
ideia que há muito nascera no meu espírito – a organização de récitas
em que se exemplificasse o nosso teatro clássico.
1926 - Janeiro – Nomeado
Reitor Interino
(...) Em Novembro de 1925 reuniu-se
extraordinariamente o Conselho Escolar; que resolveu representar ao
Governo no sentido de o chefe do estabelecimento ser substituído
interinamente, a fim de [o reitor, Álvaro de Eça] tratar da saúde; e o
Prof. Álvaro Sampaio propôs que fosse indicada a minha pessoa para
tomar conta do cargo. Apesar, porém, dos termos em que a resolução do
Conselho foi redigi da, só em 2 de Janeiro fui nomeado! Soube-se,
depois, que elementos não estranhos ao Liceu haviam pretendido pôr
pedra sobre o assunto, ou conseguir que a nomeação não recaísse sobre
mim. Escusado é dizer que não dei, acerca do assunto, o mínimo passo
(...).
Lançamento da revista "Labor"
Foi durante a minha reitoria interina
que eu e Álvaro Sampaio lançámos a revista de ensino e extensão
cultural – "Labor" – que viria a ter grande expansão e a exercer
notabilíssima influência no ensino. Bastará citar a reorganização da
combalida Associação de Professores Liceais e a realização dos
Congressos do Ensino Secundário, para provar que não éramos simples
visionários quando, mais uma vez, acamaradámos (...) para honrar o
Ensino Secundário e a nossa classe.
(1)
Julho – Nomeado reitor
efectivo.(2)
1927 - José Estêvão,
patrono do Liceu de Aveiro
O Liceu era, desde 1918, designado sob
o nome de Vasco da Gama, sem que o Conselho Escolar fosse para
isso ouvido. Por outro lado, a opinião pública aveirense várias vezes
se manifestara a favor do nome de José Estêvão para patrono do seu
primeiro estabelecimento de educação.
Dando satisfação a este desejo, e
também porque era a minha própria opinião, apresentei ao Conselho
Escolar (...) uma moção, que foi aprovada por unanimidade.
"(...) considerando que a cidade de
Aveiro deve inúmeros serviços ao seu dilecto filho José Estêvão Coelho
de Magalhães, entre eles a construção do edifício principal do Liceu,
da sua exclusiva iniciativa (...)"(3)
Junho – 1º
Congresso da Associação de Professores dos Liceus
A Associação de Professores dos
Liceus, reorganizada por iniciativa da revista "Labor", resolvera
realizar o seu 1º Congresso no Liceu de Aveiro nos dias 10, 11 e 12 de
Junho de 1927. O Ministro da Instrução, apesar de convidado, não
assistiu à sessão inaugural. (...)
Outubro –
"Público testemunho de louvor"
" (...) ao Reitor e Professores do
Liceu de José Estêvão, em Aveiro."
(4)
1928 -
Reconduzido como Reitor
O Governo da Ditadura começava a sua
tarefa de centralização. No dia 18 de Abril de 1928, foi publicado o
Decreto n.º 15392 pelo qual "os reitores dos liceus são nomeados, por
livre escolha do Governo, de entre os professores efectivos do ensino
secundário oficial"...
Em vista disso, em 23 desse mês pedi
demissão, que não foi aceite. Pouco depois, eram demitidos todos os
reitores; mas entre os reconduzidos, estava eu...
1931 - Maio – 5°
Congresso do Ensino Secundário (Coimbra)
Nesse ano, em Coimbra, de 19 a 23 de
Maio, realizou-se o 5° Congresso do Ensino Secundário – o último! –,
cuja organização esteve a cargo do Liceu da Infanta D. Maria.
Devido à situação precária em que a
Federação passou a viver e, um pouco mais tarde, à circunstância de
ela haver sido atingida pela lei que proibiu a vida associativa dos
funcionários públicos, não se chegou a publicar em livro o relato das
sessões dessa última reunião da classe. A "Labor" referiu-se-lhe nos
seus números de Maio e Junho de 1931.
(5)
«A censura, a desconfiança...»
Desejava-se uma reforma que eliminasse
as deficiências e anomalias da última legislação e que compendiasse,
em regulamento, todos os diplomas dispersos. Mas, sobretudo, sentia-se
a tendência do Governo para centralizar, cada vez mais, todos os
serviços e para tomar dia a dia mais difícil a nobre missão do
educador.
A censura, a desconfiança, a imposição
de doutrinas políticas e ideológicas, estavam em desarmonia com a
missão do mestre, que é formar homens.
Começava-se-Ihe a exigir que formasse
hipócritas, e dele mesmo se exigia que o fosse, e sob pena de cair sob
a alçada das novas leis.
A Ditadura, tão bem recebida, ia-se
tornando odiosa para quem, como eu, se considerava homem livre.
1935 - Demissão
do Prof. Agostinho da Silva
Nesse ano, foi demitido do cargo de
professor liceal o Prof. Agostinho da Silva, por se negar a assinar a
declaração, exigida a todos os funcionários, de que não pertencia a
qualquer associação secreta! Assim se viu despojado o Liceu de um
professor de real valor, estimadíssimo por colegas e alunos...
1936 - A Reforma
do Ensino de Carneiro Pacheco
São de 14 de Outubro de 1936 os
Decretos-Leis nºs 27084 e 27085 do Ministro Carneiro
Pacheco (Reforma do Ensino Liceal e respectivos programas, a mais
nefasta obra, em matéria de Ensino Secundário, que se publicou durante
a vigência do regímen ditatorial).
A despeito dos gerais clamores, não
era lícito aos professores esboçar sequer quaisquer reparos, sob pena
de castigo.
O Ministro julgava intangível a sua
obra. Só um homem teve o desassombro de publicar um protesto (...):
foi o Dr. Serras e Silva – "Educação Nacional – formação intelectual
moral e física", Coimbra, 1983.
(...) Daria um bom volume a crítica
pormenorizada a este aborto ministerial!
1940 - A nova
nomeação como Reitor
(...) (O Dr. Euclides de Araújo)
indicou-me para seu sucessor e obteve da Direcção Geral de Ensino
Secundário, no começo do ano lectivo de 1939-40, autorização para
organizar a distribuição do serviço docente como se eu, com efeito,
fosse reitor. Isto, apesar de eu repetidas vezes lhe haver afirmado
não acreditar que o Ministro (Carneiro Pacheco) me nomeasse, visto a
conhecida antipatia que ele tinha pelo Liceu de Aveiro, ao qual
chamava, por escárnio, "Liceu dos Catedráticos".
Abrem as aulas, e aí começo eu a dar
as 6 horas de serviço que como reitor me competiriam. A certa altura,
um emissário do Ministro procura-me para me informar de que eu seria
nomeado reitor com uma destas condições: ou sair da direcção da
"Labor", ou a revista declarar que apoiava incondicionalmente a
política pedagógica do Governo.
É claro que não fui nomeado, pois a
minha resposta foi a de que nem abandonaria a direcção da "Labor", nem
a revista faria qualquer declaração.
E o Prof. Euclides de Araújo só
conseguiu ver-se substituído no começo de 1940-41, em que o novo
Ministro da Educação – Dr. Mário de Figueiredo, me convidou
telefonicamente a reassumir as funções de reitor (1-10-1940). Fui
nomeado em 21 desse mês (...)
1942 - Sobre
Mussolini
" – O Sr. Reitor, há tempos, perguntou
as minhas impressões sobre o Duce. Nada lhe disse então, porque
o não conhecia... Agora, que o conheço, vou ser-lhe franco. O chamado
Duce é o homem mais odiado de Itália. No dia em que ele cair,
só verá punhos cerrados à sua volta.
– Mas então... aquelas manifestações
de que o cercam?!
– Tudo fictício. Os manifestantes,
empregados públicos, limitam-se a cumprir ordens. É como aqui em
Portugal! (6)
1951 – Reaparecimento da revista "Labor".
Em Março desse ano de 1951, saiu um
número da "Labor", que assim entrava na sua 23 fase. Deve-se a
iniciativa ao Professor José Augusto Teixeira, que no começo do ano
lectivo instara comigo para que a revista reaparecesse. Depois da
necessária autorização do Ministro da Educação (Dr. Fernando Pires de
Lima), iniciou-se a publicação do órgão da classe, que ficou sob a
responsabilidade de nós ambos. Da administração encarregou-se o
Professor António Marques da Rocha, Vice-Reitor do Liceu.
(7)
Outubro – 1°
Centenário do Liceu de Aveiro
Em 5 e 6 de Outubro, celebrou-se com
grande luzimento o 1º Centenário da fundação do Liceu de A veiro.
Como a "Labor" desse mês se ocupou
largamente do assunto, precedendo-o da "Breve Notícia da História do
Liceu", e como de tudo se tirou separata – "Livro Comemorativo do 1º
Centenário do Liceu de Aveiro"
(...), aqui deixo simplesmente esta singela anotação.
1952 - Maio –
Entrega Oficial do Edifício do Liceu
No entretanto, ultimava-se a
construção do novo edifício, que me foi oficialmente entregue em
sessão pública a que assistiram os Ministros das Obras Públicas (Eng.
Frederico Ulrich) e da Educação Nacional (Dr. Fernando Pires de Lima)
em 25 de Maio de 1952. O relato encontra-se em "O Arquivo do Distrito
de Aveiro", de 1955 (vol. XXI, pág.327).
Lendo-se as alocuções proferidas por
mim e pelo Ministro da Educação, estranhar-se-á que este último não
houvesse dirigido uma só palavra ao Reitor que com todo o respeito o
saudara. Essa atitude, porém, está de acordo com o desinteresse,
manifestado pelo mesmo, em receber pessoalmente, no fim da sessão, os
cumprimentos do Corpo Docente, anunciados por mim antes do seu início
(...)
1957 - Janeiro –
Último Conselho Escolar da Reitoria de José Pereira Tavares
(...) Saio oficialmente, mas
continuarei sempre ligado, pelo coração, ao Liceu de que fui aluno
durante cinco anos e professor durante mais de quarenta.
Desde que o conheço, nunca elementos
estranhos ao ensino, políticos ou outros, se imiscuíram no seu
funcionamento, motivo por que sempre resultaram inanes os ataques que
por vezes lhe dirigiram indivíduos sem escrúpulos. Faço votos porque
esta orientação, que já vem, pelo menos, das reitorias de Francisco
Regala e Álvaro de Moura, a quem muito bem conheci e a cuja memória
rendo homenagem, seja observada pelos reitores que me sucederem.
Só assim poderá o Liceu de A veiro
conservar através dos tempos o prestígio de que actualmente goza, e
cumprir com a necessária dignidade a sua missão educativa.
2.
NOTAS POLÍTICAS
1901-1907 –
Aveiro
Em Aveiro começaram a derruir e
completamente foram desabando as minhas debilíssimas crenças
religiosas. Para isso, mais do que a convivência com pessoas que não
praticavam a religião, contribuíram as leituras e a observação da
profunda discordância, em muitos crentes, mesmo padres, entre a teoria
e a prática da moral, – tão grande, por vezes, que a par do fanatismo
intolerante via eu existir ou a imoralidade ou a mais desbragada
tartufice.
Não posso precisar a altura em que me
comecei a interessar pela política e a ler jornais; mas já era
republicano, bem consciente e convicto, quando João Franco por aqui
passou, creio que em 1905, em viagem de propaganda política (...)
Por essa altura já eu era anticlerical
e ateu, com os facciosismos e intolerâncias dos vinte anos...
Em 1906, sendo Tesoureiro da Comissão
dos Alunos do Liceu que tomou a peito festejar, um pouco mais
ruidOSaI1lente que de costume, o 1º de Dezembro, tive ensejo de me
abeirar, pela primeira vez, de um dos ídolos da propaganda
republicana, Alexandre Braga, de passagem para o Porto, visitou Aveiro
(...).Terminada a tradicional marcha luminosa desse 1º de Dezembro,
fui com outros estudantes republicanos – Alberto Souto Ratola à
frente, por ser o mais velho, culto e desembaraçado --, cumprimentar o
grande orador (...). Esse homem, terror de tronos e altares, era para
nós uma espécie de deus!
1907-1910 –
Porto
O ambiente político do Porto, entre a
Academia, era idêntico ao que em Coimbra se manifestara, no ano
anterior, contra a ditadura de João Franco, produzindo a célebre greve
que, como fogo, se propagou à quase totalidade dos liceus (...).
Passei a frequentar os centros republicanos, onde principalmente
participavam Pádua Correia e os estudantes, muito conhecidos, Jaime
Cortesão, da Escola Médica, e Leonardo Coimbra, da Politécnica, e não
faltei a nenhum dos comícios de propaganda, que se realizavam num
descampado contíguo ao Campo 24 de Agosto.
Entre Março e Junho de 1908 fui
director de uma folha académica – O Ideal –, a cuja redacção
pertenciam os estudantes José de Vasconcelos, Djalme de Azevedo e
Júlio Moreira (...). O artigo de abertura que não sei quem redigiu,
dizia:
«Nós.
Quem somos? Uma legião de novos, animados de esperanças libertadoras,
apóstolos incendidos do princípio liberal, que odeiam a chusma cínica
dos libertatífobos, tiranos incorrigíveis que oprimem rancorosamente o
povo que trabalha, que sofre, que é generoso, que é bom. – Uma legião
de novos, plenos de vida, em toda a efervescência da mocidade,
avigorados pelo divino Verbo da Democracia, que abominam o despotismo
hipócrita disfarçado com a máscara do progresso e com os trajes da
liberdade.
Que pretendemos? Concorrer com a
mesquinha parcela do nosso esforço para a defesa dos interesses da
Pátria, para o depuramento da sociedade, para a implantação da
liberdade omnímoda, para a proclamação da República, moral luminosa da
verdade, enfim.»
1910 – Lisboa
Essa generosa revolução, cheia de
patrióticas aspirações, que mais tarde milhares de camaleões e
arranjistas haviam de desvirtuar e desacreditar (...)
(...) Chamei generoso ao movimento.
Sem dúvida. Foi sobre a generosidade que os responsáveis fundaram a
sua acção. A revolução não tirou desforço algum aos inimigos da
véspera. Como escreveu João Chagas, "a revolução triunfante esqueceu
num dia todo o seu passado de sangue, de lágrimas e dores. Esqueceu
tudo.
1917 – Aveiro
A minha política há muito estava
definida: republicano. Nenhumas ambições tinha, porém: não esperava
nada da. República, a que pelas minhas habilitações não tivesse
direito; e, tratando da minha colocação no Liceu de A veiro, não
invoquei, para o conseguir, o meu republicanismo, nem o Ministro
Barbosa de Magalhães sobre tal me interrogou (...)
1926
O movimento revolucionário de 28 de
Maio de 1926, que estabeleceu entre nós uma ditadura militar, veio
modificar o regímen escolar dos Liceus e imprimir à educação da
mocidade orientação bastante diversa. À parte número reduzido de
indivíduos, todos os republicanos, embora desconhecessem os fins que
os revolucionários tinham em vista, se conformaram com os factos. A
chefia do Governo Civil de Aveiro foi entregue ao velho republicano
Ten-Cor. médico Dr. Manuel Rodrigues da Cruz, geralmente estimado
nesta cidade. Fui cumprimentá-lo ao Governo Civil, e lembro-me de que
pronunciei esta frase: – Quer-se uma ditadura inteligente de cinco ou
seis anos.
(cinco ou seis anos! Uma
eternidade!... (...)
1928 – 1°
Centenário de 16 de Maio de 1828
Nesse ano de 1928, a 16 de Maio,
completava-se o 1º Centenário da revolução liberal de Aveiro contra a
tirania de D. Miguel. Os liberais de Aveiro trataram de tomar posições
para a comemoração do acontecimento. Da reunião feita no Teatro
Aveirense, na noite de 15 de Janeiro, saía a Comissão dos festejos, a
que presidiria o jornalista Homem Cristo. As reuniões faziam-se na
sala das sessões da Câmara Municipal. Numa delas foi resolvido que se
fizessem sessões públicas de propaganda. Na primeira, realizada na
noite de 10 de Março, no Teatro Aveirense, completamente à cunha,
falei eu sobre "A Revolução de 1828 – sua Integração na História
Pátria" (...)
(...) A ditadura ensaiava ainda os
primeiros passos: não sabia mesmo que rumo havia de tomar (...) De
outra maneira, não só me seria impossível fazer as afirmações que fiz
na conferência, na qual li, integralmente, a tradução dos Direitos do
Homem – verdadeira heresia nos tempos que vamos atravessando! – mas
também não seria permitido fazer-se qualquer comemoração, demais amais
com a colaboração das autoridades locais! Quem presidiu à minha
conferência foi o Governador Civil, e o Governador Civil incorporou-se
no imponentíssimo cortejo cívico do dia 16 de Maio.
– Artigo publicado no jornal "O
Debate", de 13 de Maio, sob o título “Glória aos Mártires da
Liberdade”.
"Frequentávamos o Liceu de Aveiro
quando o vírus republicano nos entrou nas veias. Lendo e ponderando as
discussões de progressistas e regeneradores, tratadas nos jornais de
ambos os matizes; assistindo a essas ferozes e estéreis pugnas, que
haviam de produzir, mais do que os camartelos jacobinos, a ruína da
monarquia; estudando e meditando a História, vimos que a nossa atitude
de português, verdadeiramente amante da sua Pátria e das tradições
nacionais, outra não devia ser senão a de liberal. Nesse tempo de
paixões políticas, fomos também ardente defensor das ideias liberais;
líamos os jornais e livros mais avançados, frequentávamos os centros
republicanos, assistíamos a comícios dos mais agitados e irreverentes;
e, muito embora nos dissessem alguns homens experimentados que depois,
terminando o curso, na vida prática, as conveniências nos arrastariam,
como a eles, para a esquerda, centro ou direita dos partidos
monárquicos, era profunda a nossa convicção de que, por mais variadas
que fossem as vicissitudes por que o destino nos houvesse de fazer
passar, nunca poderíamos ser senão o que éramos então: republicano.
Ainda antes da proclamação da República, assistimos a este
espectáculo, que ao nosso espírito repugnava: alguns dos rapazes que
acotoveláramos em manifestações liberais de vária natureza e que então
aos quatro ventos se declaravam republicanos, iam-se passando,
consoante as conveniências de ordem económica, para qualquer dos
partidos que guardavam o poder. E o nosso idealismo sofria com essas
defecções. Com o correr dos anos, foram-se esfriando os entusiasmos,
foi arrefecendo em nós a fé nos homens que admiráramos e que com o
nosso entusiasmo tínhamos ajudado a elevar às culminâncias do poder e
da glória política; mas uma convicção ficou, e é que, se os homens não
correspondiam à nossa expectativa, os princípios se mantinham na sua
natural e indelével pureza. A nossa posição era a mesma; as desilusões
da experiência é que operavam em nós uma transformação dolorosa:
descríamos dos homens.
Tivemos um amigo que um dia nos
declarava em conversa: "Não me sinto arrastado para qualquer partido
político nem para qualquer seita ou confissão religiosa. Porquê?
Porque tenha horror aos princípios e disciplina de uma e aos dogmas da
outra? Não: do que tenho medo é dos correligionários!" E tinha razão.
Os princípios são bons. Os homens é que quase nunca correspondem,
porque a maior parte das vezes não são os princípios que lhes norteiam
os actos.
Dessas ideias bebidas na mocidade, nos
tempos das ilusões e dos ideais generosos, uma se nos manteve,
absolutamente fiel e inalterável – o amor da liberdade. A mesma causa
que no-la insuflou no espírito no-la mantém. E nunca, mesmo depois do
aparecimento dos primeiros cabelos brancos, nunca sentimos que o nosso
republicanismo colidisse com o culto das tradições pátrias,
obrigando-nos a mudar de posição para defesa delas. Sendo liberal,
somos, por isso mesmo, entusiástico defensor das nossas tradições. Por
isso, não nos é mister sair do lugar onde sempre estivemos e donde
jamais sairemos.
Não reconhecendo antagonismos entre o
liberalismo e o culto das tradições nacionais, liberal e
tradicionalista havemos de morrer.
Mas nós não queremos escrever um
capítulo de memórias, nem uma profissão de fé política. Queremos
afirmar que, não brigando as nossas ideias republicanas com as que os
liberais de 1820 e 1828 defenderam com risco da própria vida,
aplaudimos com todo o ardor as festas que para honra de Aveiro e para
honra do país se vão realizar nesta cidade.
As festas são dos liberais; mas, se
para brilhantismo das comemorações contribuíssem os próprios
reaccionários – mesmo aqueles que não sabem porque o são
–,
não houvessem medo de ser apodados de incoerentes, porque à vitória do
liberalismo, proclamado em 1820 e defendido em 1828, devem eles a
liberdade de impunemente se poderem afirmar reaccionários.
As festas são dos liberais; todos,
porém, podemos exclamar, comovidamente e de cabeça descoberta:
–
«Glória aos Mártires da Liberdade!» ■
_________________________
Notas:
(1) - "Labor" – 1ª série, 1926 – 40
(2) - O primeiro-ministro da Instrução após
o 28 de Maio ordena que se proceda em todos os liceus à eleição dos
reitores. O Conselho Escolar atribui a José Pereira Tavares maioria de
votos. É nomeado pelo Governo em Julho de 1926.
(3) - Decreto governamental de 12/5/27 dá
satisfação a esta intenção.
(4) - Portaria de 19/10/27
(5) - Depois do 1° Congresso, em Aveiro
(1927) tinha-se realizado o 2° em Viseu (1928), o 3° em Braga (1929) e
o 4° em Évora (1930). Só em pleno Marcelismo voltara a realizar-se um
Congresso de Professores do Ensino Liceal (1973).
(6) - Ocorre este diálogo entre José
Pereira Tavares e o Prof. Roberto Cantagalli, italiano que então
leccionava no liceu de Aveiro um curso livre de língua italiana I, por
proposta do Instituto de Cultura I_ do Porto.
(7) - "Labor" 2ª Série – Março de 1951 a
Junho de 1958; Directores: José Tavares e José Augusto Teixeira;
Administrador: António Marques da Rocha;
Outubro 1958 a Junho de 1972;
Directores: José Tavares e Augusto Teixeira; Administrador: José Gomes
Bento;
Outubro 1972 a Junho 1973; Director: José Tavares;
Administrador: José Gomes Bento.
A "Labor" encerra a sua actividade com a publicação dos Índices em
Junho de 1974.