Cabeçalho da página de Sérgio Paulo Silva e hiperligação para a hierarquia superior.

Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

 

Isto da poesia tem que se lhe diga. Que poesia se poderá encontrar nos bolsos camuflados duma equipa de amigos que parou numa área de serviço, alta madrugada, para tomar café, a caminho dos tordos? Ou de um caçador qualquer que tem os olhos cativos na cauda do cão ou na nesga de céu que o bailado da canízia o deixa vislumbrar na espera das narcejas? Muitos serão os chamados e poucos, muito poucos os escolhidos. Talvez que haja poesia, um resto de poesia nas gravuras rupestres do Alto Côa ou nas grutas de Altamira. Acontece que o olhar tem instantes que se fundem mais com a fantasia que com a realidade áspera. Eu, pessoalmente, tacteei a poesia que encontrei no bronze dumas esculturas cinegéticas em Gata (Sierra de Gata, Cáceres) e senti-me bem; eu, pessoalmente, caminhando no acaso da charneca, escutei o choro dos ralos e fiquei aflito.

Nos parcos limites da nossa courela ninguém como Fausto José, matador de javalis, ceifeiro de perdizes, andarilho nas fragas e nos montes pintados de que falava João de Araújo Correia, o soube ciciar. Só lendo a sua poesia se poderão per­ceber as palavras de Agustina, recordando os seus encontros com o caçador de Armamar na casa poveira de Florbela Espanca. Caçador de alma e coração, Fausto pairava e Agus­tina, prestidigitadora de palavras, não percebeu. Agustina divisou surdez onde deveria ter imaginado o planar duma águia que predava apenas para que fosse mais cristalina a sua poesia. Teixeira de Pascoaes tê-lo-ia percebido e franqueado as portas do seu reduto de fantasmas, abrindo os braços ao discípulo.

Tem que se lhe diga esta coisa da poesia, sobretudo quando mete o mundo dos bichos e a sua caça. Sabemos como os árabes foram a isso sensíveis e, talvez pela grande herança, os espanhóis. Por aqui, nem tanto, mas alguns, mesmo que, ao de leve, afloraram esse bordão. Fernando Assis Pacheco foi um deles. Disso dei notícia num outro trabalho, mas insisti num serão de acaso em casa do Carlos Eurico. O Carlos Eurico penou em Angola. O Assis Pacheco também, em Zala. Depois, muitos anos depois, o Assis escreveu Walt e o Eurico não gostou e fez uma daquelas cruzes ao Assis como as que faziam antigamente. Claro, eu sei que o Assis lhe tinha pregado uma desfeita noutras batalhas em idade em que o espelho nos enfeitiça e talvez residisse aí alguma explicação do enjoo... Gabei ao Eurico a poesia do Fernando e ofereci-lhe dois livros, chamando­-lhe particularmente a atenção para alguns poemas, alguns sonetos dos livros em questão (Variações Em Sousa e Respi­ração Assistida) mas ele pô-los de lado. Na altura, o Carlos Eurico andava enfronhado na escrita do seu livro, As Horas Vagas da Guerra, e eu não dei significativo valor ao desprezo a que ele votara a oferta. Passaram algumas semanas e, um dia, o Carlos Eurico telefonou-me à tarde:

– É só para te dizer que tens razão, que o Assis Pacheco é, na verdade, muito bom, que dou o braço a torcer...

O Carlos Eurico era um leitor compulsivo, mas atento. Ao longo da vida gastámos serões sem conta falando do que vinha à rede, D. Segundo Sombra ou Aquilino, AI Redor deI Caballo Español ou da Lolita. Tudo tinha cabimento no entre­laçar dos nossos copos, mesmo a política em que éramos contrários.

Algumas vezes o acompanhei na caça. Não muitas, porque a minha equipa era outra. Algumas. Medelim, Rosmaninhal, Sabugal, Idanha, Ouguela, por aí andámos. Particularmente recordarei uma madrugada, com ele e o Zé Manel Rodrigues, aos patos. Fomos caçar com negaças para perto da Ilha dos Ovos, junto ao Monte Farinha, e saímos para a função de ma­drugada (duas? três da manhã?). Na estrada para S. Jacinto não se via viva alma. Arriámos a canoa e, enquanto cortávamos uns ramalhos, começaram a ver-se very-lights verdes e vermelhos serpenteando pelo céu. Era malta da Base de S. Jacinto que andava em manobras e de que apenas se descortinou um pneumático deslizante. Metemo-nos à ria, também nós em manobras, e atravessámos o canal. O Zé Manel dispôs, camuflou­-se a canoa numa regueira e instalámo-nos com a descrição possível.

Os primeiros raios da manhã começavam a despontar muito ao longe, no Caramulo. O silêncio flutuava, misturado com a névoa fria com que a ria ia despertando. Passado um bocado, o Zé Manel pôs-se a berrar, com o chamariz que dava um som atrevido de gaita ferrugenta. Comentei em voz baixa para o Eurico, de quem estava próximo, que com tal chinfrineira não viria um. Estás enganado, disse-me, e assinalou-me, nos confins do horizonte, um bando pequeno.

Efectivamente, os patos começaram a voltear, dirigindo­-se a esquadrilha para o nosso poiso. Passou então o chamariz a ser outro, de fole. Aproximaram-se os patos, rodaram, rodaram mas não baixaram. E lá se foram pelo céu fora. Após alguma espera, o Zé Manel voltou a berrar com o chamariz. Na lonjura nova romaria de adens alterou a rota, comportando-se como os primeiros. Nessa altura eu caçava com uma SKB de canos sobrepostos que ia buscar a caça onde ela se julgava já a salvo. Os patos rodavam, rodavam, rodavam e quando se percebeu que também não se fariam às negaças estive para atirar. Poderia ter arriado um ou dois, mas já a festa não seria de todos; e não atirei. Entretanto, fez-se dia claro e pudemos ver, a descoberto, um pouco ao largo, um artistão aqui de Estarreja, gosma conhecido a quem teriam chegado notícias das anteriores caçadas do Zé Manel e do Eurico. Tinha vindo às sobras. Ficou explicado o comportamento dos patos e pusemo-nos logo ao fresco, provavelmente para desgosto do indesejável confrade, que talvez ainda alimentasse esperanças de ver funcionar melhor as negaças nesse dia dum mês em que os patos andavam tão compostos de plumagem e de gordura.

Lutando contra a doença, no isolamento e na solidão, o meu amigo Carlos Eurico escrevia o seu livro. Em melhores tempos ele tinha ousado uns contos que envolviam figuras locais e episódios vulgares como fio da meada. Foram talvez um bom treino de mão. Passaram anos e pedi-lhe que escrevesse qualquer coisa sobre caça. Quando lhe fiz esse desafio, tinha em ideia a caça menor que ele tinha praticado intensamente e de que, como ocasional companheiro, eu conhecia matéria para moldar. Contudo, foi para Angola que se virou o seu pensamento e assim nasceu o seu livro As Horas Vagas da Guerra, que escreveu apaixonadamente. Acompanhei a ela­boração desde o início e continuámos como no passado: na leitura e discussão dos capítulos; de repente já estávamos a falar da política local, da garupa duma conhecida qualquer, de veleiros ou de compotas de pêra... Acabado o livro, enveredou pela poesia. Talvez porque tivesse a campainha do meu pedido inicial a zunir-lhe nos ouvidos, telefonou-me e anunciou-me ter escrito uma coisa para mim. À noite, lá estava eu para o copo e para a poesia. Eis o que nessa noite me ofereceu:

 

                     Calendário

 

Eu não sei se isto são poemas

Se só saudades da caça, estes os temas

Acerca dos tempos melhores que já gastei...

Não sei

Sei que lembro

As rolas e as codornas nos milhos de Setembro

E os carros de bois, nos seus vagares

Com as dornas e os primeiros cachos

P'rós lagares

Depois, Outubro entrado, às perdizes

Com o Red, setter de esplêndidos narizes

Elas de bico abaixo, bólidos de penas

Caídas redondas com tiros de poemas,

Ou vindas de papo, mortas pela lei

De ser ao prumo esse tiro que é de rei

Ou arrancadas de largo cada para seu lado

A emoção do tiro bem doblado

E depois, lá pelo meio de Novembro,

Vindas do norte ao inicial nevão

As damas do bosque. Elas aí estão

Que as primas, as narcejas ziguezagueantes

Tinham já chegado pelo fim do Verão

Com seus voos inesperados. Fulgurantes

A deixar-nos um beijo na veloz partida

E voando até às nuvens na pânica subida...

Essas, se as não conseguia com um tiro bem chofrado

Emendava-as com o segundo, mais esperado.

E as noites de Verão, sob milhares de estrelas

À espera dos patos, no campo adormecido

O sibilar das asas a mostrar aos olhos do ouvido

Os reais em bandadas sobre nós e nós sem vê-las

Três ou quatro, um casal, outra bandada,

As contas se fariam no voltar da madrugada...

Pelo piado assobio distinguindo os alfanados

Dos lavancos dos poderosos voos sibilados

Mais agudo e rápido se fossem arrabíos

Esses vindos mais tarde com os primeiros frios

Juntos com cerrados bandos de velozes marrequinhas

Rasando os voos e, como foguetes, subindo as marinhas

Depois, quando a cheia enchia o campo enregelado

E havia o luar encoberto e cheio, desejado,

Na caçadeira a vogar silenciosa

Ao levante dos patos no lento procurar

A pôr à vara o Parraco, que o fazia

Sem se ouvir um som no navegar

Até à proa saltar a pataria!...

Noites de poucas vezes, mas a recordar,

Por estas jóias singulares de fantasia!

E nas manhãs de neblina, às damas de veludo

Nunca me esquecia do pinhal miúdo

Onde vi a primeira

Aí, sempre, ano após ano, não falhava,

Uma galinhola se acoitava

No eleito e denso bastio da valeira

Ah, tantas boas lembranças, tantas...

E quantas saudades da caça, ai quantas, quantas!...

Alguns tiros errados, alguns dias adversos,

Não serão lembrados.

Más recordações, não cabem nestes versos!...

 

Para o Sérgio Paulo Silva com a amizade
do Carlos Eurico, Outubro 2006

 

Poucos meses depois desta noite o filho telefonou-me dizendo-me que a vela se tinha apagado...

Nós, caçadores, não penduramos na trela os amigos que se vão. São antes tiros que nos saem pela culatra e para os quais não temos ganchos, que queríamos que fossem, como uma galinhola ou uma perdiz especial, devolver à vida mas que não somos capazes.

Acabou-se. Posso apenas numa leitura ainda titubeante dos seus versos reinventar boas lembranças. Tiros errados, dias adversos não podem ser lembrados. Sobretudo em momentos em que a poesia não presta para nada, não serve para nada.
 

 
Página anterior Página inicial Página seguinte