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Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

 

Terçámos armas pela primeira vez há muitos anos. Então eu era muito novo e ele queria-se e queria-me ao largo, por desconfianças naturais, compreensíveis, mas que eu, natural­mente, enjeitava. Eu estava no grupo a convite do meu futuro cunhado e galgávamos montes sobranceiros ao rio Caia, para mim então desconhecido. Já pela tarde, eu via o "velho" a atirar pedras aos silvados e, de vez em quando, a Francotte cantava. Pensava serem coelhos e continuei pelos girassóis. Soube, mais tarde, para meu espanto, que eram codornizes. E ele nem cão tinha! Codornizes nos silvados!...

Num dia do passado mês de Dezembro fui sozinho para o meu sítio, no Sabugal. De manhãzinha, no momento de sair com as minhas cadelas para o monte, encontrei-me com o engenheiro Gaspar, amigo novo e outra alma que costuma andar desamparada por aqueles montes com os seus cães. Desafiou­-me e lá fomos os dois.

Talvez porque a época se aproximava já do fecho, as perdizes não se revelavam e alguma que se via era já ao longe, furtada aos cães e aos barulhos do nosso caminhar.

Já ia principiando a tarde quando, depois de atravessar uns lameiros, descortinei umas covinhas na terra ao abrigo de um giestal. Se as perdizes tinham estado ali a tomar o seu banho, não andariam longe.

Pois sim! Bem me meti com as cadelas no giestal! Bem andei por ali a caracolear, como ensinava o Tragacete, mas de perdizes nem cheiro. Lá para os fundos, o Gaspar fazia pela vida, concerteza já sem saber onde é que eu me teria metido; mas, a julgar pelo silêncio, com sorte igual à minha.

À saída do giestal havia, junto a um muro derrubado, um silvado antigo. Joguei para lá uma pedra e da fortaleza de espi­nhos espirrou um perdigão, que só consegui matar na emenda.

Muitas horas depois, já em casa, recebi um telefonema de um amigo. Falámos de coisas várias e já na despedida perguntou-me como me tinha corrido o dia de caça. Falei-lhe no perdigão e deu-me os parabéns. Despedimo-nos.

Apesar da fadiga, nessa noite, o sono tardou a chegar. No escuro, eu via a pedra a cair no silvado e a arma a encaixar-se-me na cara para um disparar chofrado. No dia seguinte escrevi-lhe isto:

 

Outra jornada com a Estrela e a Florentina

Matei ontem outro perdigão

Que escondi no bornal

com as pressas de um ladrão

sem alegria sem o entusiasmo

que tiveram as minhas cadelas

Mas com enlevo as acarinhei

Sim, eu também fui assim

Quando tinha a idade delas...

 

Felizmente a Estrela e a Florentina são analfabetas e creio que eternamente insensíveis à poesia.

 

 
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