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Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

 

Uma pitada de Diamantina sobre o fulminante e depois é que se punha a medida de Nacional 1. Assim queimava melhor, faziam-se melhores tiros. Eu nunca me tinha dado conta das línguas de fogo que saíam dos canos quando se dispara. E continuo sem as ver. Adivinho-as agora, mas continuo a não as ver. Numa noite de espera aos patos, um parceiro que estava noutra praia deu fogo e vi os canos da sua arma a vomitar lume, como a brasa dum cigarro a grande distância, quando a noite toda ela é um manto de Thanatos estendido sobre a terra, denunciando um fumador para além do aroma.

Nunca fui aficionado da caça aos patos, mas gostava de os esperar nalgumas noites de Inverno, aquelas noites gélidas que quebravam o ânimo de quase todos e devolviam a solidão primitiva às marinhas. Essas eram as noites que me fascinavam, porque me deixavam a sós com Deus e com o mundo, livre para pensar e sentir quase como os bichos do imenso paul.

Fui lá muitas vezes e de todas me recordo como se fosse única, como a memória dum monumento, que se vê sempre e que cabe inteira na pluralidade numa só fotografia.

Quem labuta no campo conhece as querenças dos bichos. Ou quem lá vai com vagares e tem tarimba. Se a minha vida me permitisse, eu estudaria as praias, procuraria indícios de molicinho mastigado ou penugem encostada às bordas pela aragem e posicionar-me-ia à confiança para fazer a espera. Assim, ia por palpite, ao entardecer, quando já não havia espaço nem tempo para observações requintadas. Numa dessas noites, escolhi uma praia jeitosa. Virei-me de costas para poder ver os patos a contra-luz, escondi-me bem e depressa se fez escuro. As narcejas pingavam como pedras na praia, à minha frente, confundindo-se num ápice com o meio. Apreciava-lhes o voo e escutava os beijos que espalhavam no ar, como ouvia as corujas e outros pássaros que gemiam no escuro desolado. Às vezes, percebia-se o mergulho das ratazanas, que se lançavam das valachas, ou o som das carruagens dos comboios, que pas­savam ao longe. Até que começaram a chegar os primeiros patos. Quando percebia o ciciar das suas asas, encolhia-me dentro de mim mesmo e procurava descortiná-los. Um pato que se vê de noite está dentro de fogo; mas vê-los não é para todas as pupilas. Ouvia-os e esperava que rodassem. Ao longe, noutra praia, já para lá do esteiro, para as bandas de Canelas, ouviram-se os primeiros tiros. Eu apenas sorvia os voos ciciantes e continuava a seco.

De novo se ouviu fogo na tal praia e calhou desta vez estar a olhar para aquelas bandas. Vi as brasas dos canos e marquei mentalmente o sítio. Entretanto, dois patos rodaram na praia onde eu estava e botaram-se. No instante em que iam a pousar fiz fogo, olha, com esse cartucho "norte" que aí está, e matei a fêmea. E foi o que consegui nessas noite, que se tomou de chuva diluviana. Sempre tinha, desta vez, molhado o bico.

O mau tempo continuou. E por isso voltei para nova espera. Fui mais cedo e procurei a direcção que tinha estimado dos fogachos. Entre canízias frondosas estava uma pequena praia de castanho. A abundância de plumão no canto contrário ao vento falava por si. Aproveitei o abrigo feito pelo fumador, que pouco depois chegou e seguiu a remorder a desfeita da noiva roubada. A ventania que sacudia a canízia dizia-me que os patos, que ali tinham feitio, viriam mais cedo. O mar e a ria estariam varridos pelo temporal e ali sentiriam refúgio certo.

Viriam, viriam mais cedo, apesar de já terem sido fustigados na véspera. E assim foi, de facto. Ainda a noite não estava fechada e já tinha morto três. Grande caçada fiz nesse dia, apesar do frio e da chuva que me desgraçaram. O campo, os lodaçais, entram nos ossos e paga-se sempre caro a paixão. Sim, há uma beleza tentadora nos caniços dançando ao vento; sim, há um apelo irresistível à proximidade do mar e a todos os desam­paros de lama e vento, mas, o coração, tenho-o nos tojos, nos rosmanos, nas giestas. Nunca mais voltei aos lodaçais. Não mais esperei a patarrada. Mas estarei sempre lá e aparecerei sempre como um fantasma nas fotografias que tirarem dessa vastidão de caniços e águas.

 

 
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