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Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

 

No norte de Moçambique, junto ao aquartelamento onde estive colocado, havia um aldeamento onde eu ia frequen­temente. Numa dessas deambulações, vi um velho que não falava português e que, portanto, pouco pude conhecer, que me intrigou. O velho, andrajosamente vestido, descalço, ia amiúde para o mato caçar passarinhos. Via-o regressar pela tardinha com a molhada e estranhava, porque não tinha ratoeiras, um pauzinho misterioso que fosse, nada que não fossem as suas mãos. Acabei por arranjar um intérprete de ocasião para decifrar o mistério. Lá falaram, riram-se muito e o velho foi buscar uns ervanços com que, apenas com o gume das unhas e a mobilidade dos dedos, enquanto o diabo esfregava um olho, fez uma data de laços corrediços, simulando com a ponta dos dedos as cabeças dos infelizes pássaros, tentando explicar-me o que eu não entendia e o intérprete não traduzia no meio da risota. Como era possível um tipo como eu, que lhes curava febres e doenças, que lhes cozia as feridas, não saber apanhar passarinhos? No dia seguinte presenteou-me com uma variedade deles, mas

vivos, para enriquecer uma grande gaiola que tínhamos na parada, envolvendo uma árvore. Notei-lhes nas patas restos de goma e soube que, para além das forcas, o nosso artista recorria ao suco de uma árvore que os prendia quando pousavam em raminhos estratégicos. Visgo: essa mala-arte não tinha fronteiras...

Se não fosse a barreira da língua, eu teria dito àquele velho que, no meu país, também se caçavam passarinhos e que eu tinha passado a infância a enegrecer a minha alma com a passarada.

Um dia, o meu pai lembrou-se de ir à terra da mãe (muito longe: Póvoa de Midões, Tábua) que ele já não chegou a conhecer, visitar uns primos. Fui com ele. Tenho uma vaga ideia de que apenas o meu irmão ia também. Não sei. Fomos pela única estrada possível, em direcção a Coimbra, cortando depois no Luso, onde se subia, subia sempre por curvas e contracurvas acentuadíssimas, para depois prosseguir rumo a Mortágua, por aí fora numa viagem que queimava longas horas.

Em qualquer ponto do percurso um pardal embateu no carro. Meu pai parou, apanhou-o e deu-mo. Já em Tábua, o pardal foi assado no fogareiro e eu comi-o sem saber que estava a saborear todo aquele passeio que não mais se me apagou.

E porque (não, não é porque: eu sei lá o ou os porquês!) eu gostava de comer passarinhos, caçava-os. Esse era o tempo em que à porta das tascas de qualquer cidade punham lousas: "Há passarinhos fritos"... Caçava-os, apanhava-os com ratoeira (costelos lhes chamam noutros sítios), que outro meio não tinha. A inveja que eu sentia dos filhos dum doutor da minha aldeia que tinham uma pressão-de-ar; e a inveja que eu senti num domingo em que fui à Branca (concelho de Albergaria-a-Velha) a casa de um amigo do meu pai! Enquanto eles tratavam do que tinham a tratar, eu andei com os filhos, rapazes rondando a minha idade, pelas ruas próximas e, casualmente, encontrámos um conhecido deles que trazia uma molhada de pássaros e uma fisga. Vi-o matar mais três ou quatro com seixos pequeninos, que colheu do chão. E eu, que também tinha uma fisga com que não acertava no sino duma igreja, fiquei basbaque, invejoso de tamanha destreza.

Havia quem tivesse molhadas de ratoeiras, verdadeiros arsenais. Eu tinha pouquinhas (e sabe Deus!), mas entretinha­-me com elas, sobretudo aos Domingos. Ia a casa do senhor Antoninho, aos cabanais, e tirava as lagartas das canas de milho, que metia numa caixinha de fósforos. Depois, amarrava-as com uma linha e armava onde melhor me parecia.

Ali pelo Outono arrastado, onde se juntavam mais pardais, era onde houvesse que ciscar, sobretudo nas casas dos lavradores que faziam terras de arroz, por causa do milhão. Também nas terras altas, nos cortes de erva frescos, caíam às vezes bátegas de lavercas, de ciotos e de piscos, quando vinham os frios e a cigarra ia pedir batatinhas à sua vizinha formiga.

Já mais espigadote, também eu os apanhei às molhadas; mas isso não era eu, era antes um conluio de banditagem. Passado o Verão, a pardalada, sentindo as árvores a despirem­-se, refugiava-se nos poços mais velhos, mais abandonados, que tinham criado vegetação interior e buracos nas paredes. Passávamos palavra e lá nos juntávamos, normalmente num sábado à noite, e íamos pelas terras e quintais conhecidos. Tapávamos a boca do poço com uma rede e acendíamos um foco (se o tínhamos ou se o tivéssemos levado), atirando lá para dentro um pedregulho. Espantada, a passarada atirava-se à rede, aos magotes, fugindo para a sertã... O pior eram os cães que davam fé dos meliantes quando a função se fazia em quintais adormecidos...

Mas as lavercas eram um nadinha maiores que pardais, faziam arregalar mais os olhos.

– Avô, um tiro p'rá mancha ficava um alqueire delas. Que cartucho vais carregar?

– Tem que ser um cartucho de escumilha.

– ?

– Para as codornizes carrego chumbo 10 ou até mesmo o 12. A escumilha é o número 14, como cabeças de alfinetes. Guarda um pouco num frasco para recordação. Quando passarem os anos, já não haverá desse chumbo. Também não será necessário, porque haverá poucos pássaros, serão cada vez menos numerosos, algumas variedades desaparecerão mesmo e tu próprio não quererás fazer parte dos grandes destruidores, dos grandes matadores que nunca caçaram.

 

 
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