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Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

 

Perdigão perdeu a pena

Não há mal que lhe não venha

                                  (Camões) (1)

 

Cirandam penas de perdiz no meu espaço e já são cacos. Quando estavam dispostas como as telhas de um telhado, tinham outra harmonia, eram infinitamente mais belas, apesar do animal estar já sem vida. E tiveram sempre peculiar beleza desde a nascença.

São bonitos os pintainhos quando saem dos cascarrões. Sem os olhos deslumbrados dos pirilampos-mágicos, têm a mesma ternura de bonequinhos animados esgueirando-se por entre os ervanços à cata dos primeiros insectos. São assim também os javalis, quando nascem, raiados, disfarçados pelos matos atrás da marrana. Vai-se a beleza na muda da pena, na muda do pelo. Se soubessem que são rapazolas cheios de acne e parvoíce, nem com barba nem sem ela mas sempre presumi­dos e parvos... Mas a sua realidade diária é outra, a sua luta é bem outra. Na mudança da pena todas as aves são vulneráveis, não há mal que lhes não venha...

A feia lagarta, a comilona lagarta, o asqueroso verme "morre" e ressuscita numa borboleta que encanta o mundo. O homem, com todos os vícios e defeitos, o ser imperfeito ganha asas de anjo e purifica com a sua beleza metamorfoseada, se não o mundo, pelo menos o imaginário. Os franganotes mudam a voz e as vestes como os javalis o riscado. Agora, que podem singrar no desamparo, a beleza renasce, mais resplandecente. No final do Verão, quando o Outono emitir os primeiros sinais, todos terão já as suas definitivas túnicas, que farão deles a ave mais bela e cobiçada de toda a península ibérica.

 

Imóvel

Prolongando em ave o granito

A perdiz contempla o montado sem fim

À hora em que o sol mostra os vermelhos

Os breves

Os da despedida

 

Amanhã é dia de caça

Adeus princesa

 

Este belo e perturbador poema cacei-o no livro de Joaquim Palma “Viagem ao Alentejo Mais Longe". Aos vermelhos solares das suas penas se referia, sobrepondo-lhe os cinzentos da angústia. Outro poeta, Fausto José, já tinha

esgotado o que havia a dizer dos vermelhos das pernas:

 

Como o senhor Bispo, o bom Bispo velho

Calça meia fina de cetim vermelho

 

Restando apenas o coral do bico e o timbre do seu canto, que também tem cambiantes solares, e o barro do dorso crestado pelo sol de infindáveis séculos.

Por tantas vezes ter demorado o olhar no movimento penoso da sombra que o toco calcinado de ferro arrastava sobre as marcas maceradas que outros ponteiros tinham gravado no granito, imagi­nei que, naquele instante, quem passasse pelo adro e olhasse a torre, notaria que o dia estava a meio. Pela posição do sol, pelo cansaço dos cães, pelo pasmo dos montes, eram horas de terminar a aventura, de voltar uma página que tinha sido adversa.

Desafogada a cintura do cilício da cartucheira, metemos os cães no atrelado e fomos almoçar. Agora, a sombra do velho toco viajaria apressada pelo musgo da pedra e a volta da tarde já pouco mais seria que lançar nas cartas negras as derradeiras moedas.

De retorno à liberdade do monte, os cães recuperavam o ânimo, mas era indisfarçável o seu cansaço, que se enroscava nos nossos passos dentro do vasto lagar onde pisávamos as uvas do desalento. Ao fundo, lá bem ao fundo, o sol ia mostrando os vermelhos, os breves, os da despedida nos contrafortes da vigorosa serra da Malcata. Não tardaria muito a ser noite.

Quando já encetávamos o caminho de regresso, num esforço insensato, alarguei a volta, afastando-me dos com­panheiros e assim deles me perdendo. Recuperei a rota subindo e atalhando caminho por um carvalhal que envolvia uma área de lameiros. Tresmalhados entre os carvalhos, despontavam alguns penedos que ajudavam a escurecer o dia. Subitamente, por entre os diferentes recantos das giestas e dos fetos, alguns perdigões começaram a cantar como se me desafiassem, ora a descer, ora a subir, tentando desorientar-me e ludibriar como se ludibria uma raposa velha de passagem pelas cercanias do local elegido para a pernoita. As cadelas, espevitadas pelas emanações e pelo timbre dos seus cantos, recobravam ânimos anquilosados, mas as perdizes fugiam a pés, furtando-se-Ihes, sem arriscarem voos fatais. Fazia-se noite e não me permitia a luminosidade muitos lances de capote. Urgia prosseguir a caminhada.

Um perdigão (o mais velho? O mais afoito? O mais inexperiente?) saltou, por instantes, para o cocuruto dum penedo como se fosse um navio a espreitar, na crista da vaga, a súbita tormenta. Um encare rápido, um tiro no crepúsculo e aquele perdigão teria pago com a vida a valentia ou o atre­vimento. Mas os vermelhos do poente tinham-me ofuscado a vontade e permiti que voasse encoberto pelo granito: Boa Noite, Princesa!

Prossegui a urgente caminhada ao encontro dos meus companheiros, que estariam já em sobressalto. A serra mergulhou no silêncio. Ganhou a carta vermelha.

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(1)

Perdigão perdeu a pena
 
Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.
 
Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.
 
Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.
 
                  Luís de Camões
 

 
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