Um dia
destes passei por casa do meu amigo António Augusto, para dar um bocado
ao serrote. Lá fomos bebericando, tirando as cerejas da cesta e, no
cacho, conta-me ele que tinha localizado em Lisboa um documento em que
Sua Majestade o Rei D. João (ou seria a Rainha D. Maria?) autorizava os
presos da cadeia de Estarreja a assistirem à missa na capela de St.º
António.
Este
piedoso acto da nossa Nobreza trouxe-me à memória uma história
engraçada, que colhi em qualquer árvore quando andei a fazer o livro da
feira de St.º Amaro.
Sim,
havia uma cadeia em Estarreja. Foi demolida no início dos anos
cinquenta, dizem-me. E mais me contaram: que ficava onde hoje é a
esplanada do Bar da Tomázia, por aí, onde depois se fez a praça do
peixe. Talvez alguém conserve alguma imagem antiga e um dia nos mostre.
Bom, se os presos eram autorizados a irem à missa, é porque a cadeia
tinha hóspedes.
De uns
sei eu que por lá pouco se demoravam, os carteiristas que caíam no laço.
Entretanto, é bom que as pessoas tenham presente que, por esses tempos,
não havia cartões de crédito; e cheques também não me consta que fosse
coisa conhecida das nossas gentes. O povo era analfabeto, ou quase, e o
dinheiro guardava-se debaixo do colchão, em panelas ou onde o diabo não
soubesse. E esses eram os anos em que a feira de St.º Amaro tinha fama
de muitas léguas em redor e o seu valor era tanto, que ditava os preços
dos gados. Quem demandava a feira ou ia com os bolsos recheados de
dinheiro vivo ou regressava a casa com a carteira gorda. Os carteiristas
que apareciam pela nossa querida feira tinham abundância de caça. O pior
é que o diabo tem a tal capa, que às vezes se destapa e, volta e meia,
lá apanhavam algum artista com a boca na botija, indo o fabiano parar à
tal cadeia.
Havia
então um Administrador do Concelho que entendia não dever gastar o
erário público com tais clientes. Chamava-os a juízo, passando-lhes um
valente sermão e fazendo-os prometer que não reincidiriam, soltava-os.
Só que
os nossos amigos apenas podiam sair da vila indo para baixo, afunilados,
ou subindo à praça e, fossem para um lado ou para outro, tinham sempre
uma pequena assembleia à sua espera que os sovava valentemente.
Não
havia nesse tempo cartões de crédito, mas também não havia telemóveis.
Contudo, as notícias circulavam rapidamente entre oficiais do mesmo
ofício; e enquanto o tal Administrador do Concelho esteve ao serviço, a
feira respirou de alívio e as pessoas andaram mais despreocupadas...
Perante a notícia do António Augusto, foi isto que me veio à lembrança.
E não me custa muito a crer que, já naquele tempo, os presos a caminho
da missa tivessem os olhos bem abertos para a paisagem e, já no interior
da capela, estivessem mais atentos aos circundantes que às imagens dos
altares. Cá por coisas.
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