Está
frio, muito frio. Riu-se a Fevereira e aí está o resultado. No meu
quarto de trabalho, as paredes desconhecem que já há ameixieiras em flor
e não tenho vontade de estar aqui e de escrever seja lá o que for,
tamanho é o desconforto.
E foi
bem feito, para não nos esquecermos que aqui em Fevereiro é Inverno e
se-lo-á sempre, embora, por instantes, queiramos emprestar o Verão do
nosso entusiasmo a uma festividade emocionante mas fugaz.
Manhã,
tão bonita manhã.
Manhã
tão bonita nasceu...
Ouvi
esta música de Luís Bonfá e a canção de Vinicius de Moraes / António
Carlos Jobim vezes sem conta, interpretadas por diversos mas sempre com
a mesma beleza:
A
gente trabalha um ano inteiro
p'ra
fazer a fantasia
De rei
ou de pirata ou jardineira
p'ra
tudo se acabar na quarta-feira
Haverá
por aí quem não conheça isto? Os que fazem o Carnaval creio que têm
estes versos na alma, mesmo que jamais os tenham escutado.
Pela
minha parte, fiz o Carnaval ao longo de toda a minha vida. Com
brincadeiras sem juízo, mascarado anónimo, fantasiado em cortejos ou nos
bailes do Centro Recreativo, de Pardilhó ou dos Bombeiros. Podia
contar-vos coisas engraçadas doutros anos. Porém, há coisas que só são
interessantes quando vividas; e que perdem todo o colorido quando
espalhadas no vento.
Essa
vontade de viver o momento levou-me a comprar, uma ocasião em que estava
de serviço na Galiza, uma máscara numa loja de Ourense. Depois vim a
mata-cavalos para participar nas marchas luminosas. Cheguei demasiado
tarde. Quem deu pela minha falta? Apenas uma pessoa e a mais importante:
eu próprio! A tristeza que eu senti por não ter estado lá, por ter
ficado de fora. Creio que os que fazem o Carnaval o compreendem. Os
outros (tão fadista é o que canta como o que escuta) compreenderão ou
não.
Agora
tudo é um pouco diferente. Pertenço a um grupo (Os Xateados) e é já
outro o Carnaval. O passar dos tempos trouxe-nos os grupos de samba.
Fazem parte da nossa tradição? Não fazem. Mas, se os retirássemos,
criaríamos um vazio talvez insustentável. Como o futebol, de resto. Não
fazia parte das nossas tradições recreativas. Nem das nossas, nem de
muitos outros países. Já imaginaram o que seria agora banir o futebol e
pôr a rapaziada a jogar à malha? Há ainda espaço para os mascarados e
outros trapalhões. Deverá haver sempre e deverá ser fomentado. Mas o
trabalho em grupos é bem outro e terá que ser tido um pouco mais em
conta pelos que fazem o Carnaval connosco, assistindo. Nos grupos,
trabalha-se o ano inteiro, para fazer a fantasia que se consome
vertiginosamente e fenece na quarta-feira. Cada um vai enchendo à sua
maneira o balão; e se há coisa que nos penaliza cruelmente são as
condições do tempo. Há três anos, apanhámos uma granizada amarga. O ano
passado, o S. Pedro roubou-nos um dia e, por mor disso, lá tivemos que
mastigar o que julgávamos intragável: um Carnaval de Verão.
Pessoalmente, acreditei que era uma vez sem exemplo. Mas em vez do
brinde, voltou a calhar-nos a fava; e foi o que sabeis e que eu,
pessoalmente, insisto, espero que não mais se repita. As coisas têm de
ser organizadas e acauteladas, para que não tenham que se repetir
cegadas destas, de carnavais de verão ou na quaresma. Eu pus o pé na
poça duas vezes, não quero pôr terceira. Bem sei que há uma grande
nevoeirada de hipocrisia em muitos argumentos que por aí esvoaçam, muito
paleio de gente que não mexe uma unha (quanto mais um dedo) pelas bolsas
de desemprego do meio, pelos gravíssimos problemas sociais gerados pela
pobreza e pouca cultura, pelas carências materiais e afectivas duma
CERCIESTA ou doutra instituição qualquer, gente que ignora o
funcionamento das discotecas na Quaresma, mas que se deleita a
aborrecer quem faz o Carnaval. Mas as coisas têm de facto o seu tempo.
Não vale fingir. Nós, os que estamos no terreno, bem o sentimos. Não é a
mesma coisa andamos ali como que por frete. Troquei impressões sobre
isso com a malta do meu grupo e achei consonâncias. Falei com o Nóbrega
do Tás'ku'ela e voltei a ouvir o mesmo. E por frete não presta. Nada
presta como sabeis...
Mas a
festa foi bonita. Gostei de ver, no derradeiro dia aquela malta toda
junto da Câmara, sem arredar pé, montes deles aflitos à procura de um
saca-rolhas para emprestar à Comissão, enfim, para ajudar a tirar a
rolha das classificações, que teimavam em não sair do gargalo. Até que
veio a sentença sem possibilidades de recurso para o supremo, ditando
euforias e frustrações. À noite, em casa, minha mãe perguntar-me-ia em
que lugar tínhamos (o meu grupo e o da minha filha, que pertence a
outro) ficado.
– Nós
ficámos em 6.º...
– E
isso o que quer dizer?
–
Olhe, mãe, abaixo de cão!
– E
não há possibilidades de recorrer?
– Já o
fizemos e fomos todos condenados a um novo ano de ilusões e à alegria do
próximo Carnaval, nós, os Cebolinhas, as Xicas, os Vai Quem Quer, todos,
todos tivemos pena agravada. E mais, disseram que o castigo, víssemos
bem!, de pertencer ao Carnaval de Estarreja era, afinal, doce... Que
fossemos é agradecidos...
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