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Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

Quarta-Feira de Cinzas

Está frio, muito frio. Riu-se a Fevereira e aí está o resultado. No meu quarto de trabalho, as paredes desconhecem que já há ameixieiras em flor e não tenho vontade de estar aqui e de escrever seja lá o que for, tamanho é o desconforto.

E foi bem feito, para não nos esquecermos que aqui em Fevereiro é Inverno e se-lo-á sempre, embora, por instantes, queiramos emprestar o Verão do nosso entusiasmo a uma festividade emocionante mas fugaz.

Manhã, tão bonita manhã.

Manhã tão bonita nasceu...

Ouvi esta música de Luís Bonfá e a canção de Vinicius de Moraes / António Carlos Jobim vezes sem conta, interpretadas por diversos mas sempre com a mesma beleza:

 

A gente trabalha um ano inteiro

p'ra fazer a fantasia

De rei ou de pirata ou jardineira

p'ra tudo se acabar na quarta-feira

 

Haverá por aí quem não conheça isto? Os que fazem o Carnaval creio que têm estes versos na alma, mesmo que jamais os tenham escutado.

Pela minha parte, fiz o Carnaval ao longo de toda a minha vida. Com brincadeiras sem juízo, mascarado anónimo, fantasiado em cortejos ou nos bailes do Centro Recreativo, de Pardilhó ou dos Bombeiros. Podia contar-vos coisas engraçadas doutros anos. Porém, há coisas que só são interessantes quando vividas; e que perdem todo o colorido quando espalhadas no vento.

Essa vontade de viver o momento levou-me a comprar, uma ocasião em que estava de serviço na Galiza, uma máscara numa loja de Ourense. Depois vim a mata-cavalos para participar nas marchas luminosas. Cheguei demasiado tarde. Quem deu pela minha falta? Apenas uma pessoa e a mais importante: eu próprio! A tristeza que eu senti por não ter estado lá, por ter ficado de fora. Creio que os que fazem o Carnaval o compreendem. Os outros (tão fadista é o que canta como o que escuta) compreenderão ou não.

Agora tudo é um pouco diferente. Pertenço a um grupo (Os Xateados) e é já outro o Carnaval. O passar dos tempos trouxe-nos os grupos de samba. Fazem parte da nossa tradição? Não fazem. Mas, se os reti­rássemos, criaríamos um vazio talvez insustentável. Como o futebol, de resto. Não fazia parte das nossas tradições recreativas. Nem das nossas, nem de muitos outros países. Já imaginaram o que seria agora banir o futebol e pôr a rapaziada a jogar à malha? Há ainda espaço para os mascarados e outros trapalhões. Deverá haver sempre e deverá ser fomentado. Mas o trabalho em grupos é bem outro e terá que ser tido um pouco mais em conta pelos que fazem o Carnaval connosco, assistin­do. Nos grupos, trabalha-se o ano inteiro, para fazer a fantasia que se consome vertiginosamente e fenece na quarta-feira. Cada um vai enchendo à sua maneira o balão; e se há coisa que nos penaliza cruelmente são as condições do tempo. Há três anos, apanhámos uma granizada amarga. O ano passado, o S. Pedro roubou-nos um dia e, por mor disso, lá tivemos que mastigar o que julgávamos intragável: um Carnaval de Verão. Pessoalmente, acreditei que era uma vez sem exemplo. Mas em vez do brinde, voltou a calhar-nos a fava; e foi o que sabeis e que eu, pessoalmente, insisto, espero que não mais se repita. As coisas têm de ser organizadas e acauteladas, para que não tenham que se repetir cegadas destas, de carnavais de verão ou na quaresma. Eu pus o pé na poça duas vezes, não quero pôr terceira. Bem sei que há uma grande nevoeirada de hipocrisia em muitos argumentos que por aí esvoaçam, muito paleio de gente que não mexe uma unha (quanto mais um dedo) pelas bolsas de desemprego do meio, pelos gravíssimos problemas sociais gerados pela pobreza e pouca cultura, pelas carências materiais e afectivas duma CERCIESTA ou doutra instituição qualquer, gente que ignora o funcionamento das discotecas na Quaresma, mas que se deleita a abor­recer quem faz o Carnaval. Mas as coisas têm de facto o seu tempo. Não vale fingir. Nós, os que estamos no terreno, bem o sentimos. Não é a mesma coisa andamos ali como que por frete. Troquei impressões sobre isso com a malta do meu grupo e achei consonâncias. Falei com o Nóbrega do Tás'ku'ela e voltei a ouvir o mesmo. E por frete não presta. Nada presta como sabeis...

Mas a festa foi bonita. Gostei de ver, no derradeiro dia aquela malta toda junto da Câmara, sem arredar pé, montes deles aflitos à procura de um saca-rolhas para emprestar à Comissão, enfim, para ajudar a tirar a rolha das classificações, que teimavam em não sair do gargalo. Até que veio a sentença sem possibilidades de recurso para o supremo, ditando euforias e frustrações. À noite, em casa, minha mãe perguntar-me-ia em que lugar tínhamos (o meu grupo e o da minha filha, que pertence a outro) ficado.

– Nós ficámos em 6.º...

– E isso o que quer dizer?

– Olhe, mãe, abaixo de cão!

– E não há possibilidades de recorrer?

– Já o fizemos e fomos todos condenados a um novo ano de ilusões e à alegria do próximo Carnaval, nós, os Cebolinhas, as Xicas, os Vai Quem Quer, todos, todos tivemos pena agravada. E mais, disseram que o castigo, víssemos bem!, de pertencer ao Carnaval de Estarreja era, afinal, doce... Que fossemos é agradecidos...

 

 
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