Tinha
eu onze anos quando fui estudar para Aveiro. Saía de casa com meu irmão
mais velho, muito cedo, ao romper do dia, para apanhar o comboio das
sete, então ainda a vapor. Era o ano de 1961 e toda a gente ia de
comboio, vinda um pouco de toda a parte.
Tive
então um companheiro que tinha pombos-correios (na realidade eram do
pai) e que, como eu, gostava de caça e de pesca e vivia na permanente
magia desse triângulo de paixões. Não foi, pois, empreitada de maior que
eu me tornasse a sua sombra e passasse a queimar todo o meu tempo por
Cacia, já que o João José, assim se chamava o meu companheiro, era dessa
aldeia do Vouga, filho do estimado médico da Celulose, Dr. João Soares.
E, talvez por isso, todas as portas se nos abriam no forte meio
columbófilo, gerado em torno dessa fábrica.
Desses
anos recordam-me as pessoas, recordam-me as cestas de verga em que os
pombos partiam de comboio, os calendários das provas, tão dissemelhantes
dos hoje praticados, alguns pombos também: o Preto, do Pardinhas, a
Lilás, dos Cordeiros... Para meu mal, tive sempre boa memória.
Tornei-me columbófilo como se sempre o tivesse sido. Mesmo sem pombal e
sem pombos, eu vivia intensamente toda aquela ambiência. Depois, quando
finalmente tive o meu primeiro pombal, corri a mesma Via Sacra de todos,
mesmo com os abandonos a que a vida me forçou e os regressos, sempre
cheios de novos sonhos e novos entusiasmos.
Tanta,
tanta coisa me lembra nesta noite em que escrevo, que a mim mesmo me
obrigo a escolher caminhos nas encruzilhadas da memória. Porque há
caminhadas que um homem não pode fazer sozinho sem correr o risco de se
emocionar e não consigo ser daqueles que sacodem airosamente as
sandálias...
Como
todos, conheci dias bons e dias maus. Como todos, alimentei, de campanha
para campanha, a chama. Talvez um dia, com outro vagar que agora não
tenho, com outra disponibilidade emocional, vos fale um pouco disto.
Afinal, durante a minha caminhada, conheci e privei de perto com tantos
amigos, com tanta gente, que talvez fosse bom acordar algumas cinzas.
Dizia
eu que alimentei a chama, de campanha para campanha. E assim foi, de
facto. Sempre experimentando novos casais, anilhando novos borrachos que
seriam, sempre e simultaneamente – de ano para ano, insisto – os
alicerces e o futuro da colónia. Até que a proprietária duma vacaria
clandestina ergueu, com a complacência da presidente da Câmara do PSD,
um muro de quatro metros diante dos meus pombais. E tudo teve que
terminar. A vacaria teve curta duração; e os tribunais deram novos donos
ao pesadelo. A presidente foi-se cinzentamente embora. Mas o mal estava
feito e sem retrocesso possível. Entretanto, os pombais, fechados é
certo, permaneciam lá dentro com vida, com a vida dos meus pombos.
Entre
eles estava o Malagueta. O Malagueta ficou a dever o nome a um 10
arrancado num concurso de Málaga com cerca de meia hora de avanço. Já
anteriormente se havia classificado por duas vezes na vintena, em provas
de Vejer de Ia Frontera, quer como borracho, quer já como adulto. Um mês
depois, voltou a ganhar outro 10 e outra vez com mais de meia hora de
avanço sobre o segundo, desta vez num concurso de La Gineta, amealhando
também a aposta no Grupo Columbófilo de Fundo da Beira Litoral, então no
seu zénite.
De cor
azul, com pena branca a meio da asa, tinha o N.º 373587 / 84. O pai
tinha sido o último filho da famosa Alverca de Alexandre Mendes Gordo,
pomba de origem Guy Vinois, e a mãe era descendente duma filha do
célebre Olímpico do Germano, de Albergaria, que lhe havia sido ofertado
pelo fundista Manuel Bento de Almeida, de Loures.
Do
Malagueta poucos irmãos tive, prematuramente perdidos num Zaragoza
desastroso. E, como o pai, apesar de me ter custado caríssimo, tinha
sido, entretanto, oferecido para o Castelo de S. Jorge, ao Alexandre
Mendes Gordo, reservei-o de imediato para a reprodução.
O meu
melhor pombo das campanhas de 1988, 89 era filho do Malagueta; e nunca
me atrevi a enviá-lo às provas rainhas, com medo de o perder (já não
tinha a mãe); mas outros tive que pude arriscar e que, de Espanha, ainda
honraram o pai. E talvez que um dia, num futuro em que eu não quero
deixar de crer, um descendente me possa dar alguns desses instantes
dessa glória efémera com que nós, columbófilos, nos apaziguamos.
Hoje,
2 de Fevereiro de 1998, o Malagueta morreu. E eu estou triste como esta
noite triste de invernia o pode estar. Porque, dentro do meu peito, há
um cacifo que nunca mais voltará a ser ocupado; e a memória esgana-me,
sem piedade, o coração.
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