Quem
me dera, quem nos dera termos tido no concelho de Estarreja a sorte que
teve o da Murtosa, com uma casa comercial com gente de sensibilidade por
trás do balcão.
Por
todas as vilas, em qualquer cidade, existem casas de fotografia. Vamos
lá fazer fotos para o Bilhete de Identidade ou para a Carta de Condução.
É lá que se contratam os filmes de casamento, a foto cerimonial da
comunhão dos meninos, é lá que revelamos as nossas fotografias. Coisas
dessas. É assim em todas as terras e de tão vulgar, de tão natural,
parece que nada há a acrescentar.
Contudo, não basta ter dinheiro para montar um restaurante ou uma loja
de roupas. Há em Coimbra uma casa de música que tem atrás do balcão uma
senhora a quem basta que o cliente dê uma pequena pista, muitas vezes
bastando apenas trautear, para que a orquestra, o grupo, o cantor
singular seja identificado e satisfeito o desejo do cliente. De igual
maneira era assim a Livraria Leitura, no Porto. Por um nome, um indício,
identificava quase tudo e não importa que a edição fosse francesa, de
Buenos Aires ou da Arábia. Se não estivesse esgotado eles arranjavam.
São os
artistas, os profissionais de excelência, os que estão no sítio certo.
Conheço, desde que me conheço, a família Guedes, neste caso e mais
concretamente a Foto-Guedes da Murtosa. É uma casa comercial idêntica às
outras, mas...
Aqui
há uns anos, procurei-os porque queria decorar uma sala com imagens da
minha infância. Deram-me a escolher entre o que possuíam de arquivo. E
eram caixas e caixas de imagens que de imediato me comoveram e me
fascinaram, tornando dificílima a escolha. Voltei a procurá-los para
ilustrar coisas que ando a garatujar sobre a ria; e foi o fascínio
redobrado pelo atendimento de perfeita colaboração e simpatia.
Ao
longo dos anos, as objectivas das suas máquinas foram colhendo imagens a
preto-e-branco da vida da ria, do mar, das coisas do concelho,
preservando a memória.
Ali
estão os moliceiros e os mercanteis, a lancha que chegava ou partia, os
encantos da arte da xávega ou um arraial de S. Paio. Mas também pátios
murtoseiros, desgraçados do vinho ou um temporal na ria ou as imagens
das condições de vida infra-humanas dos pescadores. Tudo os motivava,
quando não se podia prever se haveria algum dia clientes para esses
devaneios. Bem mais prático seria terem-se quedado no estúdio nos
trabalhos comezinhos. Mas pelo seu arrojo, pela sua sensibilidade, o
concelho da Murtosa possui assim um bem inestimável nos arquivos
singulares da Foto-Guedes.
Agora
que as máquinas fotográficas são acessíveis às bolsas mais modestas, já
não será difícil seguir o exemplo, mas será sempre necessário que não
instale um café quem só tem natural habilidade para reparar bicicletas.
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