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Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

Fotografias

Quem me dera, quem nos dera termos tido no concelho de Estarreja a sorte que teve o da Murtosa, com uma casa comercial com gente de sensibilidade por trás do balcão.

Por todas as vilas, em qualquer cidade, existem casas de fotografia. Vamos lá fazer fotos para o Bilhete de Identidade ou para a Carta de Condução. É lá que se contratam os filmes de casamento, a foto cerimonial da comunhão dos meninos, é lá que revelamos as nossas fotografias. Coisas dessas. É assim em todas as terras e de tão vulgar, de tão natural, parece que nada há a acrescentar.

Contudo, não basta ter dinheiro para montar um restaurante ou uma loja de roupas. Há em Coimbra uma casa de música que tem atrás do balcão uma senhora a quem basta que o cliente dê uma pequena pista, muitas vezes bastando apenas trautear, para que a orquestra, o grupo, o cantor singular seja identificado e satisfeito o desejo do cliente. De igual maneira era assim a Livraria Leitura, no Porto. Por um nome, um indício, identificava quase tudo e não importa que a edição fosse francesa, de Buenos Aires ou da Arábia. Se não estivesse esgotado eles arranjavam.

São os artistas, os profissionais de excelência, os que estão no sítio certo.

Conheço, desde que me conheço, a família Guedes, neste caso e mais concretamente a Foto-Guedes da Murtosa. É uma casa comercial idêntica às outras, mas...

Aqui há uns anos, procurei-os porque queria decorar uma sala com imagens da minha infância. Deram-me a escolher entre o que possuíam de arquivo. E eram caixas e caixas de imagens que de imediato me comoveram e me fascinaram, tornando dificílima a escolha. Voltei a procurá-los para ilustrar coisas que ando a garatujar sobre a ria; e foi o fascínio redobrado pelo atendimento de perfeita colaboração e simpatia.

Ao longo dos anos, as objectivas das suas máquinas foram colhendo imagens a preto-e-branco da vida da ria, do mar, das coisas do concelho, preservando a memória.

Ali estão os moliceiros e os mercanteis, a lancha que chegava ou partia, os encantos da arte da xávega ou um arraial de S. Paio. Mas também pátios murtoseiros, desgraçados do vinho ou um temporal na ria ou as imagens das condições de vida infra-humanas dos pescadores. Tudo os motivava, quando não se podia prever se haveria algum dia clientes para esses devaneios. Bem mais prático seria terem-se quedado no estúdio nos trabalhos comezinhos. Mas pelo seu arrojo, pela sua sensibilidade, o concelho da Murtosa possui assim um bem inestimável nos arquivos singulares da Foto-Guedes.

Agora que as máquinas fotográficas são acessíveis às bolsas mais modestas, já não será difícil seguir o exemplo, mas será sempre necessário que não instale um café quem só tem natural habilidade para reparar bicicletas.

 

 
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