Às
vezes, no correr dos anos, rompe do chão do meu quintal um rebento de
videira em sítios onde as cepas foram arrancadas há dezenas de anos e
que, entretanto, foram criando outras coisas. E esses rebentos vêm
dizer-me o que a minha memória sabe: que na minha infância, em torno de
todo o quintal, existiam videiras e uma grande latada, que cobria toda a
área de galinheiros e currais de lenha e porcos. A escassa vindima não
chegava a dar lagarada que se visse. Mas fez-se durante muitos anos. E
era assim em todas as casas por aí. Os poços de rega tinham, quase sem
excepção, latadas de videiras americanas, que protegiam com a sua sombra
os animais que, sob o calor, os volteavam arrancando a água essencial ao
medrar dos milhos. As parcelas de terrenos agrícolas, que ao longo dos
anos se foram encurtando por mor das partilhas entre irmãos, de famílias
ainda há bem pouco numerosas, eram, frequentemente, demarcadas por
videiras. E esse culto ia por aí, por adentro dessas terras marinhoas
até a um palmo do mar: na Torreira ainda se vêm restos de latadas...
Salvo
uma por outra cepa, não se cultivavam as uvas de mesa. Fazia-se vinho
fraco que não prestava. Nem o de Canelas, que sobressaía, valia o chão
que ocupava; nenhum compensava a sombra, os trabalhos da folha, do
sulfato, da poda, da vindima, do tanoeiro...
Grão a
grão enche a galinha o papo. O ditado é uma luva para desvairadas mãos.
Para o que era entre nós o cultivo da vinha também. Bebiam as gentes do
que então se produzia, não se gastando um tostão (um cêntimo) nos vinhos
de marca, de região demarcada, de adegas cooperativas e por aí fora,
como hoje gastam, muitas vezes com um despropositado valor de rótulo, já
que qualquer um, medianamente sensato, se apercebe do quanto os valores
por litro estão injustificadamente inflacionados. Não gastavam e davam
um valor acrescentado nas aguardentes que faziam, infelizmente
desaproveitadas. Esfolava-se uma perna? Aguardente para cima. Doía um
dente? Bochechava-se com aguardente. Perdia-se a mais valia em coisas
comezinhas, em mata bichos de quanta tasca e venda se encontrava no
cotovelo de quanta rua havia. De ordinário, não se envelhecia a
aguardente. E, no entanto, as aguardentes que se obtinham destes
vinhedos locais (ocasionais) eram de superior qualidade, ao contrário do
vinho.
Os
velhos hão-de recordar-se do cinema armado que foi a ordem de arranque e
destruição das videiras americanas. Foi então insuficiente a polícia.
Repicaram os sinos e teve que vir a tropa. E para quê tanto ânimo, tanta
cena triste? O tempo no seu correr se encarregou de desfazer latadas,
apodrecer os cascos, encerrar os alambiques.
Dos
que existiam na minha freguesia (Salreu), resta apenas um, o do Sr.
Mário Corte-Real, numa laboração ocasional, valendo-se do sacrifício do
Sr. Armindo e destilando por teimosias: a teimosia da amizade, a
teimosia de uma prestação de serviço a uma agricultura que já não existe
e à teimosia do amor pelo que os anos foram entranhando nas nossas
mãos... Fechou há muito o alambique do Ernesto IIdefonso; o do Dr. Pinaz
pouco lhe sobreviveu. E tempos houve em que laboravam os três dia e
noite. Para se ter uma ideia do que os alimentava, registe-se que o
próprio Mário Corte-Real produzia, por ano, cerca de 600 almudes de
vinho; e agora tem em casa quatro videiras...
Não se
mudaram as vontades. E tenho a impressão de que se continua a dar de
comer a um milhão de portugueses, apesar dos uísques e de outras modas
similares. Antes creio que se deslocaram algumas geografias e se fazem
contas de outra maneira nos tempos que se mudaram.
Da
minha geografia sentimental me lembrou a videirinha espontânea, já que
se deixaram de ouvir os silvos dos alambiques a pedir mais bagaço. Temo
agora que o último se volatilize, como os aromas da aguardente, da pobre
memória das gentes da minha aldeia.
(N. de
A. – Assim aconteceu. Fechou esse último alambique e o velho Mário
Corte-Real faleceu já no ano passado)
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