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Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

O choro das videiras

Às vezes, no correr dos anos, rompe do chão do meu quintal um rebento de videira em sítios onde as cepas foram arrancadas há dezenas de anos e que, entretanto, foram criando outras coisas. E esses rebentos vêm dizer-me o que a minha memória sabe: que na minha infância, em torno de todo o quintal, existiam videiras e uma grande latada, que cobria toda a área de galinheiros e currais de lenha e porcos. A escassa vindima não chegava a dar lagarada que se visse. Mas fez-se durante muitos anos. E era assim em todas as casas por aí. Os poços de rega tinham, quase sem excepção, latadas de videiras americanas, que protegiam com a sua sombra os animais que, sob o calor, os volteavam arrancando a água essencial ao medrar dos milhos. As parcelas de terrenos agrícolas, que ao longo dos anos se foram encurtando por mor das partilhas entre irmãos, de famílias ainda há bem pouco numerosas, eram, frequen­temente, demarcadas por videiras. E esse culto ia por aí, por adentro dessas terras marinhoas até a um palmo do mar: na Torreira ainda se vêm restos de latadas...

Salvo uma por outra cepa, não se cultivavam as uvas de mesa. Fazia­-se vinho fraco que não prestava. Nem o de Canelas, que sobressaía, valia o chão que ocupava; nenhum compensava a sombra, os trabalhos da folha, do sulfato, da poda, da vindima, do tanoeiro...

Grão a grão enche a galinha o papo. O ditado é uma luva para desvairadas mãos. Para o que era entre nós o cultivo da vinha também. Bebiam as gentes do que então se produzia, não se gastando um tostão (um cêntimo) nos vinhos de marca, de região demarcada, de adegas cooperativas e por aí fora, como hoje gastam, muitas vezes com um despropositado valor de rótulo, já que qualquer um, medianamente sensato, se apercebe do quanto os valores por litro estão injustificadamente inflacionados. Não gastavam e davam um valor acrescentado nas aguardentes que faziam, infelizmente desaproveitadas. Esfolava-se uma perna? Aguardente para cima. Doía um dente? Bochechava-se com aguardente. Perdia-se a mais valia em coisas comezinhas, em mata bichos de quanta tasca e venda se encontrava no cotovelo de quanta rua havia. De ordinário, não se envelhecia a aguardente. E, no entanto, as aguar­dentes que se obtinham destes vinhedos locais (ocasionais) eram de superior qualidade, ao contrário do vinho.

Os velhos hão-de recordar-se do cinema armado que foi a ordem de arranque e destruição das videiras americanas. Foi então insuficiente a polícia. Repicaram os sinos e teve que vir a tropa. E para quê tanto ânimo, tanta cena triste? O tempo no seu correr se encarregou de desfazer latadas, apodrecer os cascos, encerrar os alambiques.

Dos que existiam na minha freguesia (Salreu), resta apenas um, o do Sr. Mário Corte-Real, numa laboração ocasional, valendo-se do sacrifício do Sr. Armindo e destilando por teimosias: a teimosia da amizade, a teimosia de uma prestação de serviço a uma agricultura que já não existe e à tei­mosia do amor pelo que os anos foram entranhando nas nossas mãos... Fechou há muito o alambique do Ernesto IIdefonso; o do Dr. Pinaz pouco lhe sobreviveu. E tempos houve em que laboravam os três dia e noite. Para se ter uma ideia do que os alimentava, registe-se que o próprio Mário Corte-Real produzia, por ano, cerca de 600 almudes de vinho; e agora tem em casa quatro videiras...

Não se mudaram as vontades. E tenho a impressão de que se continua a dar de comer a um milhão de portugueses, apesar dos uísques e de outras modas similares. Antes creio que se deslocaram algumas geografias e se fazem contas de outra maneira nos tempos que se mudaram.

Da minha geografia sentimental me lembrou a videirinha espontânea, já que se deixaram de ouvir os silvos dos alambiques a pedir mais bagaço. Temo agora que o último se volatilize, como os aromas da aguardente, da pobre memória das gentes da minha aldeia.

(N. de A. – Assim aconteceu. Fechou esse último alambique e o velho Mário Corte-Real faleceu já no ano passado)

 

 
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