Tenho,
um pouco por todo o lado, na caótica arrumação dos meus livros, muitas
obras que comprei enamorado pela beleza dos títulos. Muitos gostava que
tivessem sido meus. Outono Havias de Vir, da nossa Irene Lisboa,
Cão Velho entre Flores, do Baptista Bastos, O Romance da
Raposa, Crescem Pães pelos Outeiros... Enfim, uma infinidade
deles. Porque isto de escrever é às vezes como a desaparecida arte da
xávega. Custa tanto entrar no mar, custa tanto vencer as primeiras ondas
alterosas e traiçoeiras! É o momento de aflição suprema. Depois é remar,
remar sempre... Um título feliz quase nos põe a navegar à bolina. E há
os que caem nas coisas da vida como luva de cirurgião, como o de um
livro de versos da minha juventude, de Eduardo Guerra Carneiro: Isto
Anda Tudo Ligado. Fico cativo disto como nínfula de lamparina
estival. E como consequência torno-me arreliadoramente repetitivo.
Disse, no livrinho que escrevi sobre enguias, que na minha juventude
encontrava nesse humilde veio de água chamado rio da Enxurreira e nesse
outro, de nome mais ajustado, Rio Antuã, milhares, incontáveis
exemplares de juvenis de lampreias e de enguias. As enguias, sabem já os
que tiveram a gentileza e a canseira de ler esse meu livro, estavam ali
para crescerem, para se fazerem "gente", enquanto as minúsculas
lampreias mal gatinhavam em busca dos caminhos oceânicos onde
cresceriam. Fácil é perceber que, para lá terem nascido, é porque as
lampreias adultas tinham subido esses cursos de água, tinham cumprido o
preceito Bíblico. Já não brinco naquelas águas, mas, às vezes, olho-as
longamente e a esmo colho notícias que me dizem serem raríssimas as
enguias, e mais ainda as lampreias. Para o facto concorrem, por um lado,
a galopante poluição das águas e, por outro, a pesca tão furtiva quanto
selvagem. Os pobres animais sentem as qualidades adversas das águas e
rejeitam-nas como meios seguros de procriação. Os exemplares que, mesmo
assim, se atrevem tornam-se vítimas da gula pelo valor comercial que as
lampreias atingem. Ao longo dos dias, mas sobretudo de noite, que tem
manto de excelência para cobrir tais práticas, vêm-se chinchorros na
nossa ria arrastando as redes na captura de enguias. Vão sempre dois
barcos, em paralelo, arrastando, à força de motor, as malhas que rapam
tudo, embrulham tudo, sem travão de pudor ou de polícia. O mesmo jogo
sem regras vale para o berbigão ou para a amêijoa. O mergulho
clandestino tornou-se comezinho e o que ajuda a fazer doer mais tudo
isto é que tudo gira em nome dos interesses espanhóis, que tudo escoam
mas que nas suas rias galegas têm leis bem apertadas e inclementes.
A
mobilidade das redes é espantosa e diversificada também. As que tolhem o
passo reprodutivo das lampreias podem ser vistas em qualquer domingo de
lazer no Bico da Murtosa, barrando o canal, e outros ou os mesmos
artistas atravessam-nas no Vouga e no Antuã, de margem a margem, para
que não escape uma. Mas as lampreias são como os aficionados da roleta,
no meio da hecatombe, alguns são premiados. Coitadas das vencedoras!
Espera-as ainda a fisga dos derradeiros apaixonados, que as pescam ao
candeio. Disseram-me (há um ano ou dois) que as fortíssimas cheias do
Antuã levavam nas águas muito lixo de ramalhos e árvores inteiras que
levaram no enxurro as redes insidiosas. Ora, o milagre! Fez a natureza o
que a polícia não logrou. Depois, soube que nesse ano tinham sido vistos
juvenis descendo o rio.
Agora
que o Outono veio uma vez mais à minha vida, ponho-me a pensar nas
pequenas coisas que volteiam em torno. Dou então comigo a fazer
comparações. E ponho-me a pensar em coisas que, se calhar, nada têm a
ver umas com as outras, embora isto esteja tudo ligado. Dizia-se no meu
tempo de tropa: a velhice é um posto. E o conceito generalizou-se.
Contudo, as coisas não se ficavam só por aí. Durante largos anos
hostilizaram-se os que saíam do carreiro e franqueavam os rios do saber
aos juvenis. Prenderam-se professores, deportaram-se políticos,
exilaram-se cientistas. Tudo servia para salvaguardar a gula imediata. A
cada passo da vida se repetia a maravilhosa história da veste do rei. E
em nome do tecido exótico e das novas riquezas de renascidos
exploradores, os velhos foram a candeia que guiava duas vezes, dando-se
até ao limite, cada qual querendo ser o rei seguinte a ser revestido e
colhendo quanto viesse nas redes, sem cuidar que era aos seus próprios
filhos que legavam fábricas obsoletas, serras calcinadas, águas vazias,
campos abandonados.
Não
temos médicos que cheguem, não temos cientistas, o país não lê, sofremos
terrivelmente de qualificação profissional: o rol é extenso. Alguns
vivem dos cricos ou até das suas cascas; outros de habilidades de
trapezistas; outros compram nos hipermercados o que hão-de vender na
beira da estrada da Murtosa e, para que a máquina prossiga, servem-se
às crianças nas escolas textos sobre o que há de mais execrável nas
televisões.
Nada
disto é novo na roda dos tempos. Sempre assim foi, como também sempre
houve cheias que fizeram transbordar os rios (Iembrem-se do dizer de
Brecht: todos falam do rio que tudo arrasa e destrói / mas ninguém fala
das margens que o comprimem), como sempre houve enxurros que destruíram
as redes insidiosas, deixando, enfim, abertos os caminhos para que os
juvenis urdissem uma vida nova, o renovo, a Primavera que, enfim, os
Gregos e os Romanos endeusavam. Provavelmente, em nome da Vida,
provavelmente por terem percebido que o Homem é o futuro do Homem.
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