Cabeçalho da página de Sérgio Paulo Silva e hiperligação para a hierarquia superior.

Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

O Enxurro

Tenho, um pouco por todo o lado, na caótica arrumação dos meus livros, muitas obras que comprei enamorado pela beleza dos títulos. Muitos gostava que tivessem sido meus. Outono Havias de Vir, da nossa Irene Lisboa, Cão Velho entre Flores, do Baptista Bastos, O Romance da Raposa, Crescem Pães pelos Outeiros... Enfim, uma infinidade deles. Porque isto de escrever é às vezes como a desaparecida arte da xávega. Custa tanto entrar no mar, custa tanto vencer as primeiras ondas alterosas e traiçoeiras! É o momento de aflição suprema. Depois é remar, remar sempre... Um título feliz quase nos põe a navegar à bolina. E há os que caem nas coisas da vida como luva de cirurgião, como o de um livro de versos da minha juventude, de Eduardo Guerra Carneiro: Isto Anda Tudo Ligado. Fico cativo disto como nínfula de lamparina estival. E como consequência torno-me arreliadoramente repetitivo. Disse, no livrinho que escrevi sobre enguias, que na minha juventude encontrava nesse humilde veio de água chamado rio da Enxurreira e nesse outro, de nome mais ajustado, Rio Antuã, milhares, incontáveis exemplares de juvenis de lampreias e de enguias. As enguias, sabem já os que tiveram a gentileza e a canseira de ler esse meu livro, estavam ali para crescerem, para se fazerem "gente", enquanto as minúsculas lampreias mal ga­tinhavam em busca dos caminhos oceânicos onde cresceriam. Fácil é perceber que, para lá terem nascido, é porque as lampreias adultas tinham subido esses cursos de água, tinham cumprido o preceito Bíblico. Já não brinco naquelas águas, mas, às vezes, olho-as longamente e a esmo colho notícias que me dizem serem raríssimas as enguias, e mais ainda as lampreias. Para o facto concorrem, por um lado, a galopante poluição das águas e, por outro, a pesca tão furtiva quanto selvagem. Os pobres animais sentem as qualidades adversas das águas e rejeitam-nas como meios seguros de procriação. Os exemplares que, mesmo assim, se atrevem tornam-se vítimas da gula pelo valor comercial que as lampreias atingem. Ao longo dos dias, mas sobretudo de noite, que tem manto de excelência para cobrir tais práticas, vêm-se chinchorros na nossa ria arrastando as redes na captura de enguias. Vão sempre dois barcos, em paralelo, arrastando, à força de motor, as malhas que rapam tudo, embrulham tudo, sem travão de pudor ou de polícia. O mesmo jogo sem regras vale para o berbigão ou para a amêijoa. O mergulho clandestino tornou-se comezinho e o que ajuda a fazer doer mais tudo isto é que tudo gira em nome dos interesses espanhóis, que tudo escoam mas que nas suas rias galegas têm leis bem apertadas e inclementes.

A mobilidade das redes é espantosa e diversificada também. As que tolhem o passo reprodutivo das lampreias podem ser vistas em qualquer domingo de lazer no Bico da Murtosa, barrando o canal, e outros ou os mesmos artistas atravessam-nas no Vouga e no Antuã, de margem a margem, para que não escape uma. Mas as lampreias são como os aficionados da roleta, no meio da hecatombe, alguns são premiados. Coitadas das vencedoras! Espera-as ainda a fisga dos derradeiros apai­xonados, que as pescam ao candeio. Disseram-me (há um ano ou dois) que as fortíssimas cheias do Antuã levavam nas águas muito lixo de ra­malhos e árvores inteiras que levaram no enxurro as redes insidiosas. Ora, o milagre! Fez a natureza o que a polícia não logrou. Depois, soube que nesse ano tinham sido vistos juvenis descendo o rio.

Agora que o Outono veio uma vez mais à minha vida, ponho-me a pensar nas pequenas coisas que volteiam em torno. Dou então comigo a fazer comparações. E ponho-me a pensar em coisas que, se calhar, nada têm a ver umas com as outras, embora isto esteja tudo ligado. Dizia-­se no meu tempo de tropa: a velhice é um posto. E o conceito generalizou-se. Contudo, as coisas não se ficavam só por aí. Durante largos anos hostilizaram-se os que saíam do carreiro e franqueavam os rios do saber aos juvenis. Prenderam-se professores, deportaram-se políticos, exilaram-se cientistas. Tudo servia para salvaguardar a gula imediata. A cada passo da vida se repetia a maravilhosa história da veste do rei. E em nome do tecido exótico e das novas riquezas de renascidos exploradores, os velhos foram a candeia que guiava duas vezes, dando­-se até ao limite, cada qual querendo ser o rei seguinte a ser revestido e colhendo quanto viesse nas redes, sem cuidar que era aos seus próprios filhos que legavam fábricas obsoletas, serras calcinadas, águas vazias, campos abandonados.

Não temos médicos que cheguem, não temos cientistas, o país não lê, sofremos terrivelmente de qualificação profissional: o rol é extenso. Alguns vivem dos cricos ou até das suas cascas; outros de habilidades de trapezistas; outros compram nos hipermercados o que hão-de vender na beira da estrada da Murtosa e, para que a máquina prossiga, servem­-se às crianças nas escolas textos sobre o que há de mais execrável nas televisões.

Nada disto é novo na roda dos tempos. Sempre assim foi, como também sempre houve cheias que fizeram transbordar os rios (Iembrem­-se do dizer de Brecht: todos falam do rio que tudo arrasa e destrói / mas ninguém fala das margens que o comprimem), como sempre houve enxurros que destruíram as redes insidiosas, deixando, enfim, abertos os caminhos para que os juvenis urdissem uma vida nova, o renovo, a Pri­mavera que, enfim, os Gregos e os Romanos endeusavam. Provavelmente, em nome da Vida, provavelmente por terem percebido que o Homem é o futuro do Homem.

 

 
Página anterior Página inicial Página seguinte