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Sérgio Paulo Silva, Palavras de trazer por casa, 1ª ed., Estarreja, 2007,146 págs.

Rádios Locais

Na década de oitenta, sim, creio que foi por esses anos, existiram no concelho de Estarreja uma chusma de rádios locais: em Pardilhó, na sede do Concelho; em Salreu, duas ou três, tomando o espectro todo já que o invadiam também as que existiam por Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira...

Por esses anos, o conceito de analfabetismo era já diferente. Analfabeto já não era apenas o que não sabia ler e escrever; a definição era mais generosa, mais permissiva, democratizara-se, cabia lá muito mais gente e havia lugar para todos. E, como ser-se locutor emprestava um brilho social do outro mundo, floresciam os locutores, misturavam-se as duas coisas e os resultados foram tão imediatos quanto brilhantes...

Ficou memorável um programa emitido de qualquer rádio, que operava ali para os lados de Sever do Vouga, e bem captada em Aveiro. Era um directo com um concurso de quadras alusivas ao S. João. Para alcançar o prémio anunciado, cada um se esmerava o melhor que po­dia, como no similar concurso do J. N. Acabou uma por se distinguir das demais:

 

Ó meu rico S. João

Tu para mim foste um ladrão

Das três pernas que me deste

Há uma que não chega ao chão

 

Destas estações de rádio eu fugia como o diabo da cruz. Quis porém o acaso que, um sábado à tarde, eu estivesse sozinho em casa, aborrecido, a olhar para o céu horas a fio, à espera dos pombos que vinham de Espanha e que nunca mais chegavam. Procurei a companhia dum rádio portátil; mas, o único que havia em casa estava avariado. Soube-o procurando estações: o malvado só captava a Rádio Independente, que emitia ali mesmo dum prédio fronteiro a minha casa, posteriormente demolido. Não tive outro remédio que aturar aquilo. O locutor prometia um prémio a quem adivinhasse o que dizia um cão quando um miúdo lhe atirava uma pedra. Sucediam-se os telefonemas dos ouvintes na ânsia do prémio. Uns diziam que era Caim, outros Caim-Caim, outros ainda ai-ai, ui-ui; e por aí fora, num desespero de tentativas sem que ninguém conseguisse adivinhar.

Um artista qualquer, que já tinha feito dois ou três telefonemas sem êxito, liga de novo e sai-se com esta:

– O que o cão diz quando um miúdo lhe atira a pedra é assim: foda-se!

O programa era directo e acabou logo ali com o locutor a gaguejar um sermão ao atrevidote. Mas foi pena, porque fiquei sem saber a solução de tão transcendente questão...

 

 
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