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Sérgio Paulo Silva, Memória fugidia da areia, 1ª ed., Estarreja, 2014, 48 pp.

Apêndice

A Memória da Xávega nas palavras
dum Murtoseiro Ilustre
José Maria Barbosa transcritas do seu livro A MURTOZA, Aveiro 1899

 

Não vae alem do ultimo quartel do seculo XVII, a existencia da Torreira como praia balnear, e, estação de pesca marítima. As habitações dos pescadores, os palheiros, eram todas junto à margem da ria, e era n'elles que se albergavam as pouquissimas pessoas que então para alli iam a banhos.

Desde principio nunca se usaram aqui senão as artes de pescar a sardinha, o espinhel com que em tempos passados os pescadores de Aveiro, e, com elles muitos de Ílhavo e Murtosa, iam à pesca do alto, esse foi sempre desconhecido na Torreira.

A importancia sempre progressiva da Murtosa, fez com que a visinha costa augmentasse tambem muito e muito, principalmente de 1820 para cá. Hoje a Torreira, tanto como estação balnear como centro de pescaria é uma das primeiras praias do paiz.

Tem soffrido differentes alternativas o numero de companhas que exercem a pesca maritima n'esta praia. Presentemente ha seis.

O material das companhas de pesca de sardinha da Torreira pertence em regra a um unico indivíduo ou a pequeno numero de parceiros, a que se dominam senhorios; ha duas companhas de um só senhorio, sendo de parceiros as 4 restantes.

Compete aos senhorios o pagamento do salario de 100$000 réis por safra ao primeiro arraes, de 60:000 reis ao segundo arraes, de 31:500 a cada um dos homens da agulha, que são dois encarregados do serviço de reparação das redes, de 43 :200 reis a 1 guarda apparelhos, o qual no inverno faz rede nova, trabalho este que lhe é pago à parte.

É dado de arrematação pelos senhorios, o serviço de condução da madeira (bordões) para transporte dos pandeiros de cabo, trabalho este desempenhado por 4 homens, e que em media custa 40:000 por safra; é egualmente dado de arrematação o serviço de tirar a sardinha com os redanhos do sacco da rede, trabalho que muitas vezes fica a cargo dos arrematantes da conducção de madeira, o que importa na media de 10:000 reis por safra.

Paga a companha salario de 60:000 reis por safra ao cordoeiro, companheiro que no serviço de largar o lanço é encarregado da manobra das cordas da rede; o escrivão e procurador vencem réis 600:000 cada safra, e o chamador da gente, que tem o encargo de despertar a companha de madrugada, ganha 18:000 reis.

Em regra, os ajustes são feitos pelo Natal, e as soldadas pagas no fim da epocha da pesca; alguns comtudo, recebem-n'as às prestações; consoante as necessidades a que tem de occorrer. Tem acontecido, ainda que só raras vezes, alguns senhorios deixarem de as pagar pretextando escassez de lucros colhidos na safra.

A partilha dos proventos accessorios é feita pela fórma seguinte: abate se o producto da venda do lanço o imposto do pescado, 1 1/2 por cento de perdança aos compradores, a quantia precisa para o pagamento do gado, e as marinhas, sendo o resto dividido em tres partes eguaes, uma para os senhorios e duas para a companha.

São estas subdivididas em quinhões eguaes, a que dão o nome de quatro quartos, cabendo a cada companheiro, incluidos os senhorios quando trabalham, numero de quinhões comprehendidos entre 7 1/2 e 2, e a cada moço numero que varia de 2 a 1/2, sendo este ultimo limite o que é abonado aos recemnascidos. O numero de quinhões, depende, para os homens, da importancia do cargo que elles exercem e para os moços da classe do lugar que os paes desempenhem, ou da necessidade de remunerar bem os filhos para conservar no serviço no serviço da companha os paes, quando sejam habeis.

Dá tambem a companha 3 quinhões a cada um de 3 medicos residentes nas freguezias a que pertence o pessoal, sob a condicção de tratarem gratuitamente os individuos que as procurem, dizendo pertencer à companha, declaração que algumas vezes é falha; a alveitares dá 2 quinhões, incumbindo-lhes de tratarem do gado, e, não raras vezes de valerem a alguns companheiros que a elles recorrem; ao padre dá 2 ou 1 1/2 quinhão, impondo-lhe a obrigação de dizer por vezes missa e de lhes ministrar socorros espirituaes; e,  por fim, ao coveiro dá 2 1/2 quinhões.

A viuva do companheiro fallecido por desastre occorido em serviço tem direito ao quinhão que ganhava seu marido, emquanto não mudar de estado.

Os paes que ficarem ao desamparo por lhes morrer o filho no serviço da companha, são egualmente abonados com o quinhão que cabia ao fallecido.
    
A qualquer companheiro que fôr recrutado é concedido augmento de quinhão por determinado numero de safras, até que tenha pago a despeza feita para se livrar.

A'quelle que se invalidar em serviço é garantido o quinhão que recebia anteriormente, sendo-lhe fornecidos alimentos e medicamentos em quanto estiver em tratamento.

Aquelle que adoecer, sem que a doença derive de serviço, conserva apenas o vencimento do quinhão que lhe cabia em actividade.

Os companheiros antigos, ainda que por avançamento de idade se vejam forçados ao desempenho do cargo de menor importancia, conservam sempre o quinhão que venciam primitivamente.

Todo o companheiro fallecido em serviço é enterrado a expensas da companha, a qual manda tambem resar missas por sua intenção.

Em regra, a partilha é feita ao domingo, mas o escrivão todos os dias informa a companha do valor do quinhão que corresponde a esse dia. Calculam que todo o lanço que produzir menos de 23$000 não deixa ganho algum aos pescadores; que o que rende 50$000 réis dá quinhão do valor de 25 reis, e que aquelle que fôr vendido por 100$000 reis produz quinhão de 70 reis; calculam egualmente, que toda a safra que não der rendimento superior a 10:000$000 reis não deixa luccro aos senhorios.

Quando a parte que pertence à companha, pelo serviço de um dia, seja inferior a 30:000 reis, não se faz d'ella partilha, dando então entrada no cofre da companha. No mesmo cofre entra a totalidade do preço da arrematação do peixe de diversas especies, que é colhido conjuntamente com sardinha, arrematação annual tomada, de ordinario, por alguns companheiros, e que rende quantia que varia entre 25$000 e 65$000 reis; tambem ao mesmo cofre pertencem os minimos que sobram das partilhas.

É esta receita applicada ao pagamento dos salarios que não são de conta dos senhorios; ao da barcagem, isto é do transporte do pessoal entre a Bestida e a Torreira, o qual é satisfeito por avença, importando em quantia comprehendida entre 25$000 e 30$000 reis por safra; ao pagamento, em vinho, do serviço de alcatroar e encascar as redes, fornecendo os senhorios os aviamentos precisos; ao abono de gratificações de 9$000 e 14$000 reis por safra aos companheiros que melhor serviço prestam, e, por fim serve tambem para o arraes conservar, durante os mezes de folga da pesca, boas relações com os companheiros que mais convem ao serviço, conservação obtida mediante o offerecimento de vinho em qualquer occasião que os encontre, e para outros despezas sumilhantes que todos mostram o empenho que ha em conservar a gente da propria companha, e mesmo em attrahir a das outras.

As «marinhas» consistem no abono de 0L26 de vinho e 1 pão a cada tripulante de barco, e a alguns que exercem os cargos mais importantes em terra, gratificação dada pelo serviço de 1 a 2 lanços no mesmo dia, e duplicada no caso do numero de lanços se elevar a 3 ou 4. O custo medio de uma «marinha» é de reis 5$000. Ao pessoal do barco é por vêzes distribuida uma gratifficação de aguardente antes de partir para o mar, de madrugada, e tambem por vezes é dada a toda a companha uma gratifficação de vinho, o que geralmente acontece ao fim de um dia de trabalho violento. É feita esta despesa pelo cofre da companha.

O vinho é em regra fornecido por armazens pertencentes aos arraes, orçando por quantia comprehendida entre reis 1:000$000 a 1:200$000, a despeza annual feita n'elles pela companha.

O gado necessario para o serviço é contratado por escriptura, na qual o fornecedor se obriga a ter as juntas de bois alojadas na praia da Torreira; desde o primeiro dia em que foram chamadas, até aquelle em que o arraes as mandar retirar; á multa de 10$000 reis quando algum gado falte ao serviço de um lanço, e a multa arbitrada pelo arraes quando o gado compareça tarde para o mesmo serviço, ou quando falte, ainda que não haja pesca no primeiro dia em que for chamado para a Torreira; a não exigir pagamento pelo lanço em que o sacco da rede ficar perdido no mar, ou, não acceitando esta condição, a abater mensalmente a importancia de um dia de trabalho do gado.

Os arraes obrigam-se a pagar 900 reis por lanço, por cada uma das 12 juntas de bois que trabalham na companha e a dar 1 1/2 quinhão da pescaria a cada moço que acompanhar o gado, elevando este abono a 2 1/2 quinhões quando taes moços sejam aproveitados como tripulantes do barco, caso que algumas vezes se dá por falta de pessoal.

O pagamento do gado é ordinariamente effectuado em 2 ou 3 prestações, sem epocha determinada.

Alguns arraes abastados compram as juntas de bois, contratando com o vendedor o tractamento e alimentação d'ellas, mediante clausula de serem perfilhados a meias os lucros e perdas havidas na safra.

É de grande importancia, como se vê, a industria da pesca na Torreira e ainda que esta se limite quasi que à captura da sardinha, que como se sabe não é sedentaria nas costas de Portugal, mas só de passagem aqui estaciona durante o verão os seus resultados são muito valiosos, pois pode afoutamente calcular-se o valor d'esta pescaria entre cincoenta e sessenta contos de reis annuaes.

São boas as condições da praia para aquella exploração, facto que já se não dá com a saida da pescaria, que é necessariamente morosa em resultado da grande distancia a que fica a costa propriamente dita e a margem banhada pela ria; não havendo uma estrada que ligue os dois pontos atravez do areal, havendo depois a atravessar uma grande extensão de ria para aportar á Bestida, tendo ainda de percorrer bastantes kilometros para chegar á via ferrea. Se houvesse por isso uma estrada que communicasse a costa com a ria e se construisse uma ponte entre a margem e a Béstida, a Torreira attingiria dentro em pouco uma importancia enorme. É desafogada aqui a situação do pescador, e para isso muito concorre a organisação das companhas, que, apesar dos seus defeitos, porque os tem, é preferivel a todas as adoptadas em muitas outras estações de pesca de sardinha, e ao auxilio efficassissimo das mulheres, que, muitas vezes, obteem maiores proventos que os paes e os maridos, acarretando a pescaria para os armazens ou barcos, ou negociando na compra e venda d' ella. Gregas do Ocidente, finas estampas do Norte, flores gentilissimas da Murtosa lhe chamou com justa rasão Pinheiro Chagas, que, descrevendo com tintas raphaelescas a mulher d'estas regiões que a necessidade ou o desejo inato de ajudar o pae ou o marido impele para o norte onde vae mercadejar como aqui na pescaria, diz que «nada ha mais justificado do que essa fama de belleza e de elegancia que as varinas possuem, mas o que é necessario é procural-as no seu meio, na sua atmosphera, na aldeia natal onde florescem, em plena terra, ao ar livre, e não n' estas estufas das grandes cidades, onde degeneram, onde perdem as suas qualidades nativas, as suas cores fresquissimas, e até aquelle recato grave e delicado com que vae guiando nos campos da Murtosa, a caminho do mar que açouta ao longe os arraes da Torreira, o seu carro de bois, vagaroso e chiador.»

Um Postal da Torreira. Lá no alto da duna há hoje uma rotunda e um passeio onde os domingos se arrastam.