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Sérgio Paulo Silva, Memória fugidia da areia, 1ª ed., Estarreja, 2014, 48 pp.

A Fábrica do Estrangeiro

 

«Em 1776 chegou ao Furadouro um individuo de nome Jean Pierre Mijaule, natural de Languedoc, acompanhado de alguns operarios catalães, fundando ali um armazem ou fabrica em que começou a recolher e a conservar sardinha pelo processo ainda hoje usado pelos negociantes do genero e que consiste, como é sabido, em recolhel-a em dornas ou tinas, d' antemão munidas de agua e sal ou salmoura, onde ella se conserva durante mezes e até annos sem se estragar. Para que o seu segredo se não divulgasse, o francez recolhia a sardinha e encerrava-se com os operarios na fabrica, não consentindo que pessoa alguma ali penetrasse. Da sardinha que sahia, comprava unicamente a que sobrava da exportação diaria, aquella que os negociantes ou mercantis não podiam levantar da praia e que os pescadores estavam acostumados a vender, quando esse facto se dava, para estrumação das terras circumvisinhas. Isto equivale a dizer que a adquiria por um infimo preço, quasi de graça. Em seguida lançava-a à salmoura e ahi a conservava até o mar embravecer ou se fechar por completo e só então a vendia ou exportava para os grandes centros consumidores, auferindo, como é fácil de concluir, lucros enormes.

Os pescadores viram desde logo a utilidade que lhes adviria do conhecimento do processo; mas o francez e os catalães afferavam-se ao segredo e não era possível fazel-os falar sobre o caso. Ás interrogações que lhes dirigiam, respondiam com o silencio e fechavam-se como um sepulchro impenetravel. (...)

Um dia, porém, um dos pescadores conseguiu subir cautelosamente ao telhado da fabrica no momento em que laborava e, fisgando a vista atravez do orifício d'uma telha, imperceptivelmente levantada, tudo viu e compreendeu n'um relance, descendo para ir contar alegremente aos seus companheiros de pesca a descoberta que acabava de fazer!

Estava finalmente desvendado o segredo do francez. O seu processo dentro em breve tornou-se conhecido e passou a ser usado, não só pelos pescadores do Furadouro, mas também pelos das outras costas de pesca, onde a notícia, como é fácil imaginar, chegou rapidamente.

D'ahi resultou a necessidade de ficarem n'essas costas durante alguns mezes de Inverno e até mesmo durante todo elle, as familias que na safra piscatoria recolhiam sardinha ás dornas para vender quando o mar se fechasse. É, pois, de então para cá, que n'essas costas, incluindo, portanto, a de d'Espinho, começou a haver população permanente.»

Puxando os panos para bordo. Foto do Eng.º Rocha Soares.

Estas sardinhas salgadas foram, durante longos anos, o alimento possível de muitas pessoas, de muitas famílias. O Malhadinhas, do Aquilino, vinha-as buscar de burro a Aveiro, vendendo-as depois aos serranos da Lapa. Eu comi-as na infância, como comi sardinhas fritas, conservadas em escabeche, porque era a maneira de conservar o alimento e agora, todos os anos, com alguns amigos que também guardaram a memória desses sabores, mato saudades comendo-as com bom azeite, uns nabos, batatas e couves onde a geada já meteu o dente.

Redes a secar e a remendar.. Fotografia de Américo Carvalho da Silva, in "Aveiro e Cultura".

Preparando a viagem seguinte. Foto Guedes.

No areaI os trabalhos prosseguiam. Havia sempre coisas para fazer: cordas para secar, redes para consertar... Tudo tinha que estar a postos para voltar quando soasse o búzio ou a palavra corresse. Às vezes o barco tinha pouco tempo para respirar; outras, era puxado para o resguardo das dunas e lá ficava dias e dias, fitando a má catadura do mar e a aspereza da nortada que fustigava a praia.

 
O tempo da fartura. Fotógrafo não indicado.

Gigantes abrigados na avenida onde hoje está a Venpor. Fotógrafo não indicado.

Em terra ou no mar, o barco era majestoso. Raul Brandão fala assim do seu desenho: «Como não há porto nem abrigo e a embarcação tem de passar logo do areal para a onda que escachôa, atravessando a arrebentação para sair ao largo ou para regressar à terra, era necessário oferecer à onda a menor resistência e saltar-lhe no dorso: por isso ergueu a proa. E como a dança das ondas se sucede durante longos minutos, era forçoso também que, mal assentasse na água, lhe andasse ao de cima: e a popa fugiu-lhe para o céu. O barco tem exactamente o feitio côncavo do espaço que vai de vaga a vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas extremidades.» (Os Pescadores).
 

Henrique Ferreira da Costa (Henrique Lavoura). In: Aveiro, Ria, mar, terra e Gente

Praia do Monte Branco, onde um gigante teve o seu fim. Fotógrafo não indicado.

Diz o escritor da Foz que eram construídos na Lagoa, mas a sua crónica insidia na Praia de Mira. Os nossos tiveram a mão dos Raimundos, da Murtosa, de Manuel Tavares mas sobretudo do Mestre Henrique Ferreira da Costa, Henrique Lavoura, como era conhecido, de Pardilhó. No seu estaleiro foram construídos todos os que conheceram o areal da Torreira na segunda metade do século passado e de que restam profusas imagens. A sua casa, onde também se situava o estaleiro, ostenta, orgulhosamente, azulejos alusivos à sua arte. Alguns dos seus barcos conheceram, no nosso Museu da Marinha e no estrangeiro, o resguardo de museus, outros... De um me lembro ter sido adaptado a bar, na praia do Monte Branco, onde gastou a tristeza da velhice antes de naufragar no tempo. Na praia da Torreira, Murtosa, não ficou nenhum...
 

 

Desaparecidos os bois, os pescadores da Torreira (sobretudo as mulheres) carregavam o penedo de Sísifo. Fotos do Autor.

Escassez de peixe, receitas magras, custos, salários de homens e de gado, emigração... enfim, tudo se foi conjugando para a extinção da arte xávega na nossa praia. A teimosia dos pescadores e das peixeiras ainda inventou forças para resistir ao que o tempo tinha sentenciado. Fizeram barcos mais pequenos, já não de quatro remos mas de dois, de muito menor dimensão, diminuíram o comprimento de cordas e redes, e a força dos braços conjugou-se para preencher o desaparecimento dos bois que não mais enterrariam os seus cascos na areia. Mas o esforço era, em tudo, demasiado, e a corda partiu-se definitivamente, afundando o sonho. Honra aos que por vezes na vida nadam contra o cardume. Soçobram com facilidade? Mas a vida não é dos que sonham o largo oceano e nem coragem têm para molhar os pés no mar de Agosto mas antes dos que ousam. Puxando as redes, como eles, retrocederam no tempo. Basta olhar bem os azulejos romanos... Os tubarões que se multiplicaram em terra, esperam sempre para atacar, vorazmente, todos os sonhos que sempre esfrangalham.

A chegada da rede ao areal. Imagens obtidas pelo fotógrafo da equipa cinematográfica de Claude Rives, que, em 1985, produziu um filme acerca da Ria de Aveiro. In "Aveiro e Cultura".

Enquanto durou, a arte xávega galvanizou, pouco ou muito, toda a gente. Ninguém lhe foi indiferente. Anónimos veraneantes, que espontaneamente ajudavam, gente de perto ou de longe, pessoas de qualquer idade. Enfeitiçou artistas plásticos, cineastas, fotógrafos, artesãos... Graças a todos eles se preservou a memória de tantos, tantos anos, se contrariou a fugidia areia da ampulheta. Qualquer pessoa pode aceder ao precioso arquivo fotográfico da Foto Guedes; à preciosidade que é a colecção "Carvalhinho", divulgado pelo Aveiro e Cultura, numa qualquer parede nos surge uma pintura, nas bibliotecas um livro com perfume de maresia espreita-nos...
 

A Câmara Municipal de Ovar adquiriu o filme Mudar de Vida, cujas cenas foram filmadas ao vivo na praia do Furadouro e vende cópias por preço acessível; outro filme com particular interesse, é o do Prof. Ernesto Veiga de Oliveira, a cores, filmado na Torreira, em 1970, no sítio onde hoje está o paredão (que então, claro, não existia). Adquiri ao Museu de Gottingen, na Alemanha, uma cópia que ofereci ao Museu Marítimo de Ílhavo, museu onde se podem encontrar outras coisas desta aventura maravilhosa.

 

O saudoso artesão Domingos da Russa exibe a sua obra. Foto gentilmente cedida pela família.

 
 
 

Nos anos em que decorria a minha infância, veio para Estarreja, em missão de serviço para o então Amoníaco Português, o Engenheiro Rocha Soares, que foi sensível à faina e captou belas imagens que aqui também se divulgam, para memória. E é provável que, com o correr do tempo, as areias revelem, como o fizerem no Egipto, outras memórias das pegadas do Homem no seu caminhar. O que vos entrego não é mais do que a minha lembrança, a lembrança do meu caminhar na areia onde o mar, entretanto, há muito apagou os sinais dos meus passos.

Resta apenas acrescentar que a pesca com barco a motor e o uso de tractores para recolha das redes tem para mim o mesmo valor dum moliceiro movido por motor, sem mastro, de proa amputada, com mais bóias e coletes que pulgas brancas num palminho de areia...