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Sérgio Paulo Silva, Enguias, 2001, 64 págs.

Enguias

À memória de

José da Silva Valente Neto

4. As enguias à luz da Ciência

Cabeça de enguia.
Cabeça de enguia.

Datam do início do século vinte os primeiros conhecimentos científicos deste peixe. Hoje há uma bibliografia vasta sobre as enguias, e também sobre a sua exploração em aquacultura, ao dispor dos estudiosos. Longe dos locais possíveis de consulta e sem a pretensão de levar o pé além da chinela, limitar-me-ei apenas a transcrever os conhecimentos divulgados, há já largos anos, pelo Professor Agostinho da Silva, num opúsculo intitulado Vida das Enguias.

Antes de prosseguir, gostaria de realçar o interesse que o tema despertou num cientista como o Prof. Egas Moniz, num filósofo e homem de letras como o Prof. Agostinho da Silva. É na verdade surpreendente que homens como eles, como Abel Salazar e outros mais, se interessem profundamente por coisas que não críamos (e, se calhar, inconscientemente não queríamos) como possíveis objectos das suas paixões. Fica para meditação.

A enguia é um animal vertebrado, com uma espinha dorsal constituída por vértebras, vive na água, respirando por guelras e tem a boca constituída por mandíbulas que se ligam ao esqueleto do crânio.

Tem um corpo cilíndrico, excepto na região da cauda, em que se verifica um achatamento lateral; na extremidade anterior do corpo encontra-se a cabeça, que vai acabar na altura em que estão colocados os orifícios das guelras e as barbatanas peitorais (duas), seguindo-se o tronco até ao ponto em que se abre o ânus. Daí por diante fica a região da cauda.

Desde o terço anterior do dorso até ao ânus, passando pela extremidade da cauda, estende-se uma barbatana, com cerca de 500 raios, que representa a ligação das barbatanas dorsal, anal e caudal que se encontram separadas nos outros peixes.

Constituintes da cabeça da enguia.
Constituintes da cabeça da enguia: P. - barbatana peitoral; O.B. - Orifício bronquial; P. m. - Poros mucosos;
Y - olho; N.p. - Narina posterior;  N.a - narina anterior.
 

Examinando a cabeça de uma enguia, do lado de trás para o da frente, observar-se-ão primeiro os orifícios branquiais, por onde passa a água que banha as guelras e nelas deixa o oxigénio necessário à respiração do animal; seguem-se os olhos, cuja posição e feitio dependem da época da vida da enguia; depois dois pares de narinas, primeiro junto dos olhos, as narinas posteriores, que são simples buracos e, na extremidade do focinho, as narinas anteriores, em forma de tubo. A boca da enguia é comprida e rasga-se até por debaixo dos olhos; os buraquinhos que estão distribuídos pelo focinho e até junto da barbatana peitoral são os poros por onde sai o muco que cobre toda a pele da enguia e a torna tão escorregadia.

Na boca da enguia encontram-se dentes agudos e numerosos: uns estão implantados nos maxilares, os outros a meio do céu da boca.

Entre as várias espécies de enguias existentes, a que vive na Europa é a Anguilla anguilla e o primeiro estudioso deste peixe foi o grego Aristóteles. Só no século XVII o italiano Francesco Redi estudou a emigração das enguias e Mondini, outro italiano, descobriu, em 1777, os ovários das enguias fêmeas; os órgãos masculinos de reprodução só foram vistos em 1874 pelo polaco Syrski, descoberta depois confirmada quando Grassi e Calandruccio pescaram, em 1897, o primeiro macho sexualmente maduro. Cerca de quarenta anos antes, o alemão Kaup tinha descoberto um peixe a que chamou Leptocephalus, animal em feitio de folha de árvore que não era mais que uma larva de enguia.


Cabeça de um leptocéfalo de 9 milímetros (J. Schmidt)

O leptocéfalo, que Grassi e Calandruccio estudaram melhor que Kaup, em 1896, tem uma transparência de cristal, o que torna difícil descobri-lo na água, mas permite estudar perfeitamente o seu organismo interno.

Nota-se logo uma segmentação transversal bastante nítida: duma extremidade a outra do leptocéfalo, dispõem-se regularmente, uns após os outros, segmentos musculares; cada um destes segmentos tem a forma de uma dupla divisa e encaixa-se no anterior e no seguinte; no total contam-se em cada leptocéfalo de 110 a 119 segmentos, número que é o das vértebras da enguia europeia. No leptocéfalo ainda não existem vértebras; o que vai ser o eixo do esqueleto da enguia é apenas representado por uma espécie de vareta finíssima, a corda dorsal, que se estende da cabeça à extremidade da cauda. Logo por baixo da corda dorsal está a medula e só mais tarde aparecerão à volta da corda dorsal os esboços das vértebras.


Leptocéfalo da enguia europeia:  A - Ânus; C - Coração; CD - Cordão dorsal; I - Intestino; M - Medula;
My - Miótomos; NA - Barbartana anal; NC - Barbatana caudal; ND - Barbatana dorsal; P - Barbatana peitoral.

No bordo ventral da larva, pode ver-se o aparelho digestivo, um intestino, distinguindo-se ainda os esboços do rim, do fígado, um coração, sendo ainda igualmente possível, examinando ao microscópio, distinguir os olhos, com pupilas negras, a boca, as narinas, que se duplicam na altura da metamorfose, e algumas partes do encéfalo, no centro nervoso do animal, que tem apenas 9 milímetros de comprimento. Nota-se ainda uma barbatana, sem raios de sustentação, e só quando atinge os 20 milímetros de comprimento se esboçam os raios que hão-de sustentar a barbatana do exemplar adulto. Ao atingir os 30 milímetros, aparecerão os raios formados, sendo definitivos quando a larva da enguia atinge os 60 mm. A dentição desenvolve-se quando o leptocéfalo tem 40 milímetros.

Nos primórdios do séc. XX, efectuava o Thor, barco dinamarquês, investigações sobre o processo de reprodução dos peixes comestíveis dos mares do norte da Europa, quando se capturou, junto das ilhas Faroe, um leptocéfalo de 77 milímetros de comprimento; era o primeiro que se recolhia fora do estreito de Messina e um jovem oceanógrafo, Johannes Schmidt, interessou-se a tal ponto pela descoberta, que aceitou do governo dinamarquês o encargo de proceder a estudos sobre o lugar de postura das enguias; foi o ponto de partida das investigações, que durariam muitos anos e que levaram Schmidt à descoberta que o fez considerar pelos dinamarqueses como um herói nacional e, por todos os sábios, como um dos mais notáveis biólogos que têm existido. Logo no ano seguinte, saiu outra vez o Thor com derrota ao sul, e capturaram-se centenas de larvas com 70 milímetros de comprimento, outras com 80 milímetros; tinham o tubo digestivo vazio, o que indicava terem chegado ao fim de uma fase e não tomarem já qualquer alimento; uns meses mais tarde, recolheram-se larvas que já estavam em metamorfose, que passavam a pequenas enguias.

No ano imediato, nova campanha: o Thor estaciona no golfo da Gasconha, já sobre grandes fundos, e captura numerosas larvas, verificando-se que vivem todas entre 30 e 100 metros de profundidade; de dia, descem no mar, de noite, vêm mais à superfície; as larvas são, portanto, lucífugas, isto é, fogem da luz. Em 1907 não se faz nenhum cruzeiro e Schmidt aproveita o tempo a estudar milhares de enguias europeias e a estabelecer com dados seguros que se trata de uma só espécie; o lugar de reprodução devia, por conseguinte, ser um único, porque, se a reprodução fosse local, a diferença de condições já teria provocado o aparecimento de espécies diferentes.

De 1908 a 1910 vai um período de cruzeiros no Mediterrâneo e Schmidt descobre que os leptocéfalos encontrados no mar têm no mínimo 60 milímetros de comprimento e vão sendo cada vez maiores, à medida que se avança de Gibraltar para oeste; a conclusão era fácil de tirar: todos os leptocéfalos do Mediterrâneo vêm do Atlântico. A afirmação de Schmidt escandalizou profundamente os sábios italianos, que tanto tinham contribuído para o estudo das enguias nacionais, mas as investigações contrariavam sempre os seus patrióticos desejos.

Em 1910, outro barco, o Michael-Stars, pertencente à Noruega, pescou uma centena de leptocéfalos ao largo dos Açores; as larvas eram mais pequenas e, portanto, mais novas que todas as outras capturadas até então: mediam entre 40 e 60 milímetros; o intestino estava cheio de alimento e calculou-se que deveriam encontrar-se a um ano da metamorfose.

Escama de enguia com cinco fases de crescimento (G.Gensoe)
Escama de enguia com cinco fases de crescimento (G.Gensoe)

Para prosseguir os estudos, precisaria Schmidt de um navio que pudesse estacionar no Atlântico de sudoeste, mas não foi possível obtê-lo; pensou então em pedir aos capitães da marinha mercante que faziam a carreira das Antilhas que lhe capturassem leptocéfalos, indicando com rigor o lugar da pesca; os capitães puseram toda a boa-vontade em colaborar com Schmidt e, de 1911 a 1915, vinte e três barcos de nacionalidade dinamarquesa trabalharam segundo as indicações do biólogo e capturaram-se leptocéfalos sempre mais novos, à medida que as pescas se faziam mais na direcção de sudoeste.

Em 1913, a escuna Margrett captura setecentos leptocéfalos com um mínimo de dez milímetros de comprimento; o lugar da pesca é no mar dos Sargaços que, como talvez saibas, é uma intensa pradaria de algas flutuantes, perto das costas da América; com mais precisão: os leptocéfalos mais pequenos foram pescados entre 48º a 65º de longitude oeste, perto das Bermudas, do bordo setentrional do Golfo, cujas águas, de temperatura bastante elevada, vêm do golfo do México e chegam até à Europa, cujo clima tomam muito mais agradável; há em volta do suposto lugar de nascimento dos leptocéfalos abismos de 5.000 e 6. 000 metros, mas Schmidt calculou que a eclosão dos ovos se dá a uma profundidade de entre 200 e 300 metros. Não anunciou logo a sua descoberta e esperou que ela se confirmasse, o que só se fez plenamente em 1920, quando do cruzeiro do Dana, posto à sua disposição pelo governo; até 1922, conseguiu Johannes Schmidt, de regresso à Europa, seguir o crescimento das larvas, quase milímetro a milímetro.

Ficava, pois, estabelecido que as enguias europeias vêm todas do mar dos Sargaços numa emigração que dura anos; faltava resolver outro problema: o da ida para o lugar de postura das enguias adultas. Estabeleceram-se estações de estudos nos locais em que as enguias são abundantes, por exemplo, em Comacchio, na Itália, e numerosos biólogos, colaborando na investigação, chegaram às conclusões que vais ler.

Quando a enguia-macho está entre os 8 e os 14 anos de idade e a fêmea entre os 10 e os 18 anos, com um tamanho que vai para o macho de 24 a 51 centímetros e para a fêmea de 37 a 1 metro, dá-se uma transformação no aspecto do corpo do animal e nas suas funções orgânicas; a pele torna-se áspera e coriácea, aperta-se à volta das escamas que não saem já com facilidade, o muco faz-se mais abundante e mais viscoso; os pigmentos ou substâncias corantes da pele das enguias tornam-se mais abundantes também, aparecendo no ventre as guaninas que lhe dão um aspecto de prata, no dorso e flancos as melaninas que os tornam quase negros, com reflexos de púrpura; a barbatana anal fica ligeiramente cor-de-rosa. As narinas dilatam-se e os olhos tornam-se muito grandes e quase parecem ir saltar das órbitas; o volume total aumenta oito vezes, devido ao afastamento das células que os constituem, não à sua multiplicação; como consequência da transformação dos seus órgãos visuais, as enguias tomam-se menos sensíveis à luz. Mal entra Agosto, a enguia deixa de comer, o intestino encurta-se e diminui de calibre, os tecidos tomam-se mais finos, pela destruição de numerosas células; têm-se mesmo capturado algumas enguias em que o ânus se encontra fechado por completo. No sangue baixa a quantidade de sais e aumenta a da água, ao mesmo tempo que, segundo parece, se faz por ele o transporte da gordura acumulada pela enguia, durante o crescimento, para os órgãos sexuais que a utilizam. Seria muito interessante saber-se qual o mecanismo desta transformação da enguia: a biologia não deu, porém, ainda uma resposta segura ao problema; parece, no entanto, que é tudo determinado pela secreção de uma glândula denominada hipófise; mesmo que isto se averigue sem possibilidade de contestação, terá ainda que se saber porque motivo entra a hipófise em funcionamento.

Adquirido o aspecto que te descrevi, pelo Outono as enguias deixam os charcos, os tanques, os ribeiros, as lagoas, os estuários, e dirigem-se para o mar; é a grande época da pescaria, que se tem de fazer por meio de armadilhas, porque as enguias não comem e não podem, por conseguinte, ser tentadas pela isca; há ocasiões em que se apanham num só lugar dez toneladas de enguias numa noite; as emigrantes devem contar-se por centenas ou milhares de milhões. Mal chegam ao mar, desaparecem: as observações da passagem são raras e feitas em mares estreitos e pouco profundos, como o Bósforo, o Dardanelos, o estreito de Messina; no Atlântico só se viu uma e no estômago dum cachalote, o que não deu naturalmente nenhuma indicação quanto à profundidade a que nadam; sabe-se apenas que passam ao largo dos Açores e se devem dirigir para o mar dos Sargaços a uma velocidade bastante grande; como algumas enguias marcadas nadaram de 13 a 25 quilómetros por hora, calcula-se, por comparação com o que sucede com outros peixes, que as enguias do mar largo podem avançar 50 a 100 quilómetros por hora. Devem, portanto, chegar ao lugar da postura na Primavera seguinte à da emigração e em vagas sucessivas.

As enguias do Mediterrâneo põem um problema grave, porque não se capturou nenhuma no estreito de Gibraltar, que tem apenas 450 metros de profundidade; a ideia que ocorre imediatamente, e que defendem, como já te disse, os sábios italianos, é a de que as enguias põem nos fossos profundos do Adriático, do Jónico ou do Tirreno, mas a hipótese tem de se pôr de parte quando se verifica que não há captura de leptocéfalos inferiores a 50 milímetros. O mais provável é que o Mediterrâneo, pela diferença brusca de salinidade (38 por mil a 36 por mil), funcione como uma armadilha gigantesca e impeça a saída das enguias, que se afundam e morrem; a população não desaparece, porque os leptocéfalos passam do Atlântico ao Mediterrâneo.

Chegadas ao mar dos Sargaços, as enguias fazem a sua postura em águas quentes e muito salgadas, no limite de penetração da luz, porque a enguia sexualmente madura tem o que se chama um fototactismo negativo, isto é, evita quanto possível a luz. Os ovos, de que uma enguia fêmea pode conter dez milhões, flutuam entre duas águas e aí são fecundados pelos espermatozóides emitidos pelo macho, segundo um mecanismo muito interessante de que falaremos para outra vez; dá-se depois a eclosão e as larvas sobem um pouco mais à superfície, à medida que vão crescendo. As enguias adultas desaparecem: há biólogos que supõem que se tornam peixes de grande profundidade, mas parecem ter mais razão os que afirmam que a enguia morre; efectivamente, em todas as pescarias feitas a grande profundidade, nunca se apanhou nenhuma enguia, e o estado de ruína física em que a enguia emigra faz prever que não sobreviva à postura durante muito tempo. Mas, como vês, não é questão decidida.

Os leptocéfalos que nadam ou se deixam arrastar para norte ou sul morrem, em virtude da diferença de temperatura e de salinidade das águas; morrem também os que vão para o lado da América, porque chegaram à costa muito antes da transformação e não podem, portanto, subir os rios; a viagem para a América fá-la apenas o leptocéfalo americano de desenvolvimento mais rápido; dos europeus, somente se salvam os que seguem na corrente do golfo e se aproveitam ainda dum fenómeno que se nota no Atlântico: o da extensão das águas quentes para norte, de Março a Setembro. De um modo geral, aparecem leptocéfalos de 25 milímetros a oeste do meridiano de 50º, de 53 milímetros a oeste do de 20º e de 75 milímetros a leste do mesmo. Três anos depois do nascimento, chegam os leptocéfalos à Europa, atingindo a costa mais cedo ou mais tarde, conforme a extensão do planalto continental que, a partir do litoral, precede a existência de grandes fundos; no Báltico, onde o planalto é muito extenso, só chegam em Maio, quando atingem a costa portuguesa, de reduzido planalto continental, no Outubro anterior.

A metamorfose dos leptocéfalos faz-se ainda nos grandes fundos e dá as enguias pequenas, já subcilíndricas, mas ainda transparentes, que vêm daqui à costa e sobem os cursos de água. São mais pequenas que os leptocéfalos que lhes deram origem e o peso reduz a cerca de um décimo; são muito magras, podendo dizer-se que apenas têm esqueleto e pele; aparecem os dentes definitivos, e o ânus, por diminuição do comprimento do intestino, desloca-se mais para o lado da cabeça. Principia também nessa altura a pigmentação da enguia, por acumulação das guarinas em células estreladas, sendo o mais interessante de todos os fenómenos da pigmentação e o mais difícil de explicar, o da coroa cerebral. Assim como as mudanças de aspecto da enguia adulta se podem atribuir, segundo parece, a uma secreção de hipófise, é talvez uma secreção da tiróide que determina a metamorfose do leptocéfalo, exercendo os factores externos uma função de aceleração ou de retardamento.

A subida das enguias jovens tem uma periodicidade anual e sexenal: nos anos pares há um mínimo de captura e a três anos de pesca crescente seguem-se outros três de pesca decrescente; é possível que este fenómeno se possa ligar ao da transgressão das águas quentes do Atlântico e também a ciclos de fenómenos que se passam na Lua e no Sol.

As enguias sobem os rios de noite, num cordão que mede às vezes quilómetros de comprimento, com um metro de largura e meio metro de espessura; passam aos milhões, trepam os obstáculos verticais, por exemplo molhes e comportas, saltam quedas de água e são mesmo capazes de se arrastar por terra, desde que haja bastante humidade; só assim se explica que se encontrem enguias em charcos que estão longe de qualquer ribeiro; claro está que em todas estas aventuras, as enguias morrem em grande quantidade: mas é frequente verem-se as enguias passarem sobre os cadáveres das que as precederam na tentativa e teimarem até conseguirem passar o obstáculo que se lhes deparou. Nesta fase da vida as enguias são poderosamente atraídas pela água doce: acorrem aos milhares ao canal de irrigação de Tunis, sempre que se despeja água doce para o mar, e o mesmo acontece com as bombas de Mex, perto de Alexandria.

Quando chegam aos lugares em que vão viver, escondidas entre as pedras ou alapadas no lodo, as enguias são sexualmente neutras; não há machos nem fêmeas; mas uns 10% das enguias são logo fêmeas, o que faz supor que a determinação do sexo é independente do meio em que vivem; os outros 90% têm uma fase em que são fêmeas ou em que pelo menos, mostram uma tendência para fêmeas; depois, ao lado dos órgãos femininos, produtores de óvulos, desenvolvem-se os masculinos, produtores dos espermatozóides: a enguia é então, ao mesmo tempo, macho e fêmea, hermafrodita, e só depois se atrofiam ou os órgãos masculinos ou os órgãos femininos; aqui parece existir uma determinação do meio; as experiências, no entanto, são difíceis e pouco seguras.

Como te falei atrás de enguias de 8, 10, 14 e 18 anos, talvez queiras saber como é possível averiguar a idade das enguias; há dois processos: o das escamas e o dos otólitos ou pedras dos ouvidos. A escama é uma placa oval e transparente sobre a qual, em zonas concêntricas, há umas mil placazinhas de arogonite, que é uma variedade de carbonato de cálcio; as zonas mais largas representariam um Verão, em que a enguia se alimenta com mais abundância, a zona estreita um Inverno; o método é, no entanto, de reduzida confiança, porque as escamas não aparecem todas ao mesmo tempo, o crescimento é irregular e pára mesmo a cena altura. Os otólitos têm mais importância: são concreções de carbonato de cálcio que se encontram nos ouvidos dos peixes; nas enguias há três de cada lado: um deles, o sagitta ou seta de 7 milímetros, nos exemplares maiores, serve para determinar a idade, porque há uma sucessão de zonas claras largas e zonas estreitas escuras que marcam um Inverno e um Verão de vida do animal; as duas zonas centrais correspondem à vida marítima.

Como vês, a vida das enguias põe à biologia numerosos problemas e traz-lhe importantes elementos de estudo; não é dos menos interessantes o que se refere ao sangue. Angelo Mosso descobriu, em 1888, que o sangue era tóxico; injectado em animais matava-os rapidamente e injectado no homem provocava inflamações às vezes graves, o que de resto já os pescadores sabiam por experiência; o sangue da enguia ataca os nervos e os glóbulos vermelhos do sangue, havendo, no entanto, animais, por exemplo a víbora e o gato, que são imunes ao veneno ou toxina que destrói os glóbulos, mas não ao que ataca os nervos. O soro da enguia, isto é, o que fica do sangue quando se separam os glóbulos, perde a toxina quando aquecido a 56º e fica anti-tóxico contra a raiva e o veneno da víbora.

Supõe-se que os venenos do sangue da enguia são tónicos para o animal e que as antitoxinas o defendem contra os agentes que nele provocariam doenças; a um e outro elemento se deve poder atribuir a espantosa vitalidade das enguias." (Agostinho da Silva, ob. cit).

Após a vastidão do oceano, começa a aventura da vida dos leptocéfalos transformados em meixão, a forma pós-Iarvar da enguia, nos rios, nas lagunas, nos charcos...

 
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