Cabeçalho da página de Sérgio Paulo Silva e hiperligação para a hierarquia superior.

Sérgio Paulo Silva, Enguias, 2001, 64 págs.

Enguias

À memória de

José da Silva Valente Neto

5. As enguias e a culinária: receitas

No final dos anos setenta, trabalhei no Porto de Aveiro como operário químico da empresa a que ainda estou ligado, que tem instalações de recepção à face da ria. Aí assisti, inúmeras vezes, a vagas de pescadores que, com uma palma ou mesmo com uma chincha muito curta, uma e outra elaboradas com uma rede feita de organza, o mesmo tecido de que se fazem os cortinados das janelas, varriam a ria na captura do meixão.

Diziam-me que era para alimentar a gula dos espanhóis. Talvez fosse também para exploração em aquacultura.

Com idêntica voracidade o atacavam os cardumes de robalos. Talvez que outros peixes predassem igualmente o meixão. E era uma razia constrangedora. Sobretudo a que fazia o tecido maquiavélico. As que escapavam, subiam a ria, os rios, os ribeirinhos... Afinal aquelas enguias finíssimas que a criança que eu era apanhava no ribeiro da Enxurreira, um capilar insignificante perdido na geografia do Baixo-Vouga, acabavam de chegar do outro lado do mar, de sítios que a imaginação não abrangia enquanto as minúsculas lampreias partiam.

Portanto, em Espanha o meixão será talvez a maneira mais apreciada de comer as enguias. Nos países do Norte da Europa, apreciam-nas adultas e fumadas. Entre nós, há quem aprecie imenso (e eu sou um deles) os pequeníssimos carapaus e as petingas e, de igual maneira, foge-nos a gula para o bacalhau graúdo... Nas enguias há gostos para tudo, mas a preferência dos portugueses vai para a enguia amarela, com cerca de 15 cm, e para a adulta, prateada, fritas ou de caldeirada.

Uma amiga minha, sugestionada talvez pela forma do peixe que lhe lembraria as cobras da sua África de infância, saiu-se com esta numa ocasião em que se falava de enguias:

– Eu já vi comer e era muito bom...

Para quem não gosta, sobra sempre. Mas, para os apreciadores... O meu sogro gostava de ir de vez em quando passar as tardes de domingo no Bico da Murtosa. Encontrava sempre velhos apaixonados com quem se entretinha a conversar. Um deles não podendo já pescar por motivos de saúde e andando desejoso duma caldeirada, mandou a mulher à praça de Pardelhas. A mulher, limitada pelos preços que corriam, comprou-as só para ele e fez-lhe a caldeirada, uma caldeirada que deixou o homem indignado e a chorar o dinheiro gasto.

Painel da ré de um moliceiro, alusivo à pesca da enguia: «Será enguia ou lampreia?»

– Ó Sr. José, dizia ele para o meu sogro, a caldeirada era só batatas, só batatas... Uma coisa sem jeito nenhum.

O meu sogro estranhou o preço e perguntou-lhe quantos quilos tinham sido.

Pois que só dois quilos...

Quando chegou a casa, o Zé Neto ainda se vinha a rir e imitava o sotaque murtoseiro:

– Só batatas, Sr. José, só batatas...

Contudo, há quem as prefira e, se a caldeirada estiver paladosa, coma mesmo mais batatas que enguias.

Não sei se foi com gente desta, com quem se irmanava, que o meu sogro apreendeu a fazer a caldeirada suada ou se já trazia a receita do seu berço, em Pardilhó. Nunca a vi servida em nenhum restaurante e, se tiver mão de fada na preparação, é uma maravilha.

Arranjam-se enguias na quantidade bastante para que, quem as vai degustar, não diga depois que a caldeirada era "só batatas"... Requerendo-se enguias medianas, não muito finas, não muito grossas, cortando-as em dois ou três pedaços consoante sejam.

Num tacho vulgar, de tamanho adequado ao que se pretende, regar o fundo com um fio de azeite e tapar com uma generosa camada de rodelas de cebola. Sobre a cebola uma camada de rodelas de batatas que se cortam e partem, não devendo ser demasiado finas (para se não desfazerem) nem tão grossas que estorvem a cozedura. Sobre as batatas, deitar uma colher de banha de porco, uma colher de margarina, dois dentes de alho, um raminho de salsa e outro de nêveda. Um pouco de louro também. Polvilha-se com colorau e deita-se um pouco de polpa de tomate. Sal q.b. E um nadinha de picante (uma malagueta chega). Deitam-se as enguias que se cobrem com nova e generosa camada de rodelas de cebola, que se regará com um fio de azeite e um bom copázio de vinho branco. Pôr o testo e cozer em lume brando durante cerca de meia-hora evitando destapar.

No fundo, isto não difere nada, ou quase, dos princípios duma vulgar caldeirada de peixe e mais não se trata que de encontrar Roma seguindo pelo caminho que melhor nos pareça.

Quando as enguias são já excessivamente grossas, podem-se ensaiar outras formas de as preparar: numa tigela, mistura-se uma boa colherada de banha com uma colherinha de gengibre, uma colherinha de pimenta em pó, um pouco de sal, a que se adiciona um fio de vinagre. Besuntam-se as enguias que vão assim a assar nas brasas. Vão para a mesa regadas com um molho vulgar de manteiga e limão.

Prepara-se um refogado com um pouco de azeite, uma cebolinha e dois ou três dentes de alho, tudo bem picadinho, a que se lançam os pedaços dos brasinos, mantendo o lume vivo. Rega-se com um pouco de vinho branco e deixa-se evaporar. Polvilha-se com um pouquinho de manjerona e uns pedacinhos de folhas de louro temperando com sal e polvilhando com um nadinha de pimenta.

Rega-se com um pouco de leite quente, tapa-se com um testo e deixa-se então cozinhar em lume brando cerca de 20 a 30 minutos, adicionando mais leite se necessário.

Retiram-se as enguias para a travessa, agasalhando para não deixar esfriar.

Ao molho sobrante da frigideira junta-se um pouco de manteiga batida com um pouco de farinha de trigo, deixando levantar fervura enquanto se homogeneiza com migalhas de anchovas de conserva, que entretanto se picaram, regando-se finalmente, depois de apurado, os pedaços dos brasinos.

Pessoa amiga recomendou-me, há tempos, Sarilhos Grandes (Montijo) para comer um prato de enguias muito bom. Não me permitindo a vida tais andanças, quis apenas saber como era. Não me custa a crer que nessa zona, como em Monção ou lá para Tavira as preparem dum modo diferente da maneira que é uso prepararem-se pelo Baixo Vouga. Às vezes, basta uma erva, ou outra coisa qualquer, para virar o paladar a um prato. E eu, que assumidamente nada percebo de cozinha, atrevo-me a pensar que se trata de variantes da mesmíssima cançoneta. As tais enguias de Sarilhos são fritas. E servem-se com arroz de conquilhas ou lamejinhas que, na caldeirada, são facultativas. Posteriormente, soube que usam coentros e pimentos na caldeirada e que no ensopado utilizam cerveja.

Se a cançoneta é a mesma, a questão está na qualidade dos músicos, dos artistas. E nesta vida há Gratis pro Deo artistas para tudo. Eu conheço um, refinado nas teias de Pantagruel, António Germano Homem, de sua graça, nado e criado em Veiros, desenhador de mister e cozinheiro pelas mesmíssimas razões das águas dos rios que têm que correr porque sim.

Bati-lhe à porta na esperança de dar a este livreco um pouco mais de aroma e, sobretudo, ao menos um pouco de paladar requintado. O que se vai seguir foi-lhe roubado. De boa fé, claro!

Enguias fritas: são preferíveis as velhas frigideiras e é incontornável a escolha dum bom azeite. Muito boa gente, para poupar meia dúzia de tostões furados, trabalha com azeites fracos, quando não mesmo com óleos ainda piores. É um mau costume, igual ao de ir à loja, comprar um vinho branco de pataco, para temperar carnes...

Fritar enguias requer um lume brando e se, a quantidade for muita, há que ter em conta que o azeite satura. Assim e se a quantidade de enguias andar pelos três quilos, fritar-se-ão os dois primeiros, rejeitando em seguida esse azeite, e recomeçando para o terceiro quilo. À mão de semear, estará um papel pardo, onde se vão escorrendo e secando.

O último azeite, o que não está ainda saturado, é o que vai servir para fazer o escabeche. Deita-se-lhe uma boa porção de dentes de alho esmagados com casca, bastantes folhas de louro, um pouco de pimenta em pó e vinagre. Pouco, se for para comer na ocasião, muito se for para conservar as enguias durante algum tempo.

A qualidade do vinagre também ditará a sentença ao escabeche. Como quem quer bolota, trepa, assim também haverá que ir fazendo pacientemente o vinagre ao longo do ano. Servir-nos-á também para um bom bacalhau ou para umas sardinhas salgadas, de Inverno... O vinagre que se vende nos supermercados é muito bom para esfregar o corpo, quando se tem urticária mas, para isto, não se pode recomendar.

Em levantando fervura estará pronto a verter sobre as enguias. O melhor seria que as enguias já tivessem arrefecido, embora se possa deitar sobre as enguias ainda mornas.

Tapa-se bem para não perder aromas. Viram-se as enguias no dia seguinte (e no outro, e no outro...) e pode-se borrifar com um pouco de vinagre. Na hora de servir, vai-se à horta buscar salsa fresca.

Painel da ré de um moliceiro, mostrando um pescador de enguia à fisga que, observando uma moça de biquini, exclama: «Era uma rica fisgadela!»

Já não me lembro bem se foi nas férias do ano passado, se do ano anterior, que o Germano me proporcionou uma caldeirada de raro requinte. Eu tinha ido de manhã cedo para o tim-tim, ali para os lados da Pousada. Na ocasião, tinha uma bateira velha que guardava numa poita, ao abrigo das tramagueiras, na zona do Ramada. Quando terminei a pescaria, naveguei para a poita e ali mesmo, num rechêgo, entre as tramagueiras, estava o Germano com o cunhado e um amigo passante, preparando a caldeirada. Mandou-me ir despejar a palamenta e o resto da tralha a casa e voltar com um prato e um copo.

Fui a correr e regressei a voar para nada perder da solenidade.

Por não haver trempe, arranjaram-se umas pedras e acendeu-se o lume com lenha. Amanharam-se as enguias que se lavaram na água da ria. Um velho tacho de fazer rojões estava já cuidadosamente limpo, para evitar o perigoso azebre, e havia um testo que lhe servia à maravilha. Cobriu-se o fundo do tacho com umas boas rodelas de cebola, que pousaram sobre um fio de azeite e unto velho. Tal como se havia feito na caldeirada suada, cortaram-se e partiram-se rodelas de batatas, batatas brancas, moles ou farinhentas, com a espessura ideal para cozerem. Sobre as batatas, três folhas de louro, um bom ramo de salsa, um pouco de sal de modo a ficar insossa, cobrindo tudo com nova e generosa camada de cebola. Mas, para melhor entendimento, troca-se a conjugação: dispõem-se seguidamente as enguias lavadas, como se disse, na água da Ria. Cobrir com água doce até tapar ao de leve as enguias. Polvilhar com gengibre e açafrão (***) (a gosto: quanto mais se puser mais cor dá). Regar com novo fio de azeite, testo em cima e tacho ao lume. O lume não poderá passar de médio pelo que haverá que ir tenteando as achas. De vez em quando sacode-se o tacho com jeito, deixando-se ferver cerca de vinte a trinta minutos.

Enquanto no velho tacho de rojões as enguias apuram, vai-se preparando a moura. Numa malga grande, de barro, picam-se, muito bem picadinhos, seis dentes de alho, que se polvilham com um pouco de pimenta, sal em quantidade que compense e um bom golpe de vinagre.

Quando acabar a cozedura das enguias, coa-se a água e deita-se na malga. O que sobejar será posto à parte para o caldo.

Borca-se a malga no tacho e deixa-se levantar de novo fervura, retirando, de imediato, sem destapar.

E a sopa? Nem de galinha! Dizia o bom amigo do Professor Egas Moniz. Dizia-o, claro, no tempo em que quando o pobre comia galinha, um dos dois estava doente. Correm dissemelhantes os tempos, mas a sopa de enguias continua a ser manjar incomparável... à melhor canja!

Numa terrina miga-se um bom pão, grosseiramente, juntamente com miolo de boroa de milho. Polvilha-se com pimenta, põe-se um raminho de nêveda ou de hortelã e rega-se com um fio de azeite, deitando-se por cima a água que nos sobejou da caldeirada e da moura. E aí está a sopa!

A nêveda e a hortelã da caldeirada colocar-se-ão somente no fim, ao virar para a travessa.

Enquanto se foi preparando a sopa e a caldeirada, bebericou-se e falou-se sei lá do quê, de pesca, da caça, de bola, do diabo a sete. Arrastou-se o almoço no aconchego das tramagueiras e perdi a tarde de praia. Mas, quantas tardes de praia tive na minha vida? Não têm conta... E por estagnadas as não recordo. Mas momentos destes grudam-se à memória e perduram ao longo dos anos.

O Quim Anão.
O Quim Anão.

Episódio que tem perdurado na memória dos Estarrejenses foi o do Quim Anão e da enguia viva, que talvez seja outro modo de as comer, mas só lá muito para oriente...

O nosso herói era um pobre diabo tão querido das gentes da vila, como enxotado. Tinha desmandos de linguagem, e de gestos, quando e onde menos se esperava, desde o dar corda ao relógio a... Uma ocasião vinha pelo passeio um indivíduo aprumado no passo e no vestir. O Quim, quando viu o figuro, cheirou-lhe a trocos para uma pinga e estendeu a mão:

– Ó padrinho, padrinho jeitoso, dê uma esmolinha...

O homem passou pelo Quim sem o olhar sequer. E o Quim, de mão estendida:

– Padrinho, panasca, paneleiro!

O passadiço habitual do Quim era junto à loja do Manuel Lopes, onde entrava frequentemente... Numa ocasião em que passava com o seu velho saco de serapilheira, para ir apanhar saramagos na borda do rio, viu lá gente que o aturava e vá de entrar. A Adélia Condeça, mulher do Lopes, tinha no balcão um alguidar de enguias, que ia amanhando enquanto aviava.

Um freguês qualquer viu o Quim entrar e perguntou-lhe: – Gostas de enguias, Quim? Podes comer uma que eu pago.

E deitando a mão ao alguidar, atirou uma enguia, que serpenteava, pelo balcão fora. O Quim agarrou-a e engoliu-a num ápice. O pior é que a enguia continuou a serpentear e o Quim a rebolar-se no chão com as mãos crispadas na barriga. O freguês, ainda insatisfeito, pede um quartilho de aguardente e, à laia de açúcar, deita a manápula a um saco de amónio que estava aberto para a venda a retalho, pôs uma mancheia na cachaça e deu o copázio a beber ao Quim. O pobre Anão, na aflição, emborcou a mistela duma assentada. E aterrou.

A Adélia Condeça invectivava a clientela, aflita, que fizessem alguma coisa, que o homem ia morrer ali, que aquilo não se fazia nem a um cão, que acudissem ao Anão...

Ao cabo de mais de duas horas sem dar acordo, o Quim deu finalmente sinais, começou a erguer-se e, cambaleando, pegou no saco e na foicinha e lá se foi à vida.

Com o evoluir da ciência e da técnica, as enguias são, hoje em dia, exploradas em culturas, tal como se faz com os robalos ou as trutas. Em Portugal, a anguilicultura, em regime intensivo, iniciou-se em 1982; e muitas das enguias que se servem à mesa dos restaurantes daí provêm.

Talvez assim estejam sempre disponíveis e possam ser comercializadas a preços mais acessíveis. Talvez que assim este peixe de excelência possa chegar a mesas, onde doutra maneira não chegaria. Contudo, eu preferirei sempre aquelas que são apanhadas pelas gentes da ria, em alguns cantinhos lá para o Sul, ou aqui mais para o Norte, no Bunheiro, em Pardilhó ou em Válega, tanto faz. E, enquanto puder e a vida o permitir, tentarei ir a elas, sozinho ou com algum camarada, pela saudade, sempre renovada, duma boa caldeirada, mesmo que a caldeirada seja só batatas e mais tempero não tenha que a alma irrigada pela magia da Ria de Aveiro.

_________________

(***) O Açafrão verdadeiro tem um preço por Kg. aproximado ao preço do ouro pelo que, o que se utiliza vulgarmente nas caldeiradas, é a curcuma, conhecida por açafrão-das-índias, que apenas tem de comum com o açafrão a cor amarela.

 
Página anterior Página inicial Página seguinte