5. As
enguias e a culinária: receitas
No
final dos anos setenta, trabalhei no Porto de Aveiro como operário
químico da empresa a que ainda estou ligado, que tem instalações de
recepção à face da ria. Aí assisti, inúmeras vezes, a vagas de
pescadores que, com uma palma ou mesmo com uma chincha muito curta, uma
e outra elaboradas com uma rede feita de organza, o mesmo tecido de que
se fazem os cortinados das janelas, varriam a ria na captura do meixão.
Diziam-me que era para alimentar a gula dos espanhóis. Talvez fosse
também para exploração em aquacultura.
Com
idêntica voracidade o atacavam os cardumes de robalos. Talvez que outros
peixes predassem igualmente o meixão. E era uma razia constrangedora.
Sobretudo a que fazia o tecido maquiavélico. As que escapavam, subiam a
ria, os rios, os ribeirinhos... Afinal aquelas enguias finíssimas que a
criança que eu era apanhava no ribeiro da Enxurreira, um capilar
insignificante perdido na geografia do Baixo-Vouga, acabavam de chegar
do outro lado do mar, de sítios que a imaginação não abrangia enquanto
as minúsculas lampreias partiam.
Portanto, em Espanha o meixão será talvez a maneira mais apreciada de
comer as enguias. Nos países do Norte da Europa, apreciam-nas adultas e
fumadas. Entre nós, há quem aprecie imenso (e eu sou um deles) os
pequeníssimos carapaus e as petingas e, de igual maneira, foge-nos a
gula para o bacalhau graúdo... Nas enguias há gostos para tudo, mas a
preferência dos portugueses vai para a enguia amarela, com cerca de 15
cm, e para a adulta, prateada, fritas ou de caldeirada.
Uma
amiga minha, sugestionada talvez pela forma do peixe que lhe lembraria
as cobras da sua África de infância, saiu-se com esta numa ocasião em
que se falava de enguias:
– Eu
já vi comer e era muito bom...
Para
quem não gosta, sobra sempre. Mas, para os apreciadores... O meu sogro
gostava de ir de vez em quando passar as tardes de domingo no Bico da
Murtosa. Encontrava sempre velhos apaixonados com quem se entretinha a
conversar. Um deles não podendo já pescar por motivos de saúde e andando
desejoso duma caldeirada, mandou a mulher à praça de Pardelhas. A
mulher, limitada pelos preços que corriam, comprou-as só para ele e
fez-lhe a caldeirada, uma caldeirada que deixou o homem indignado e a
chorar o dinheiro gasto.
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– Ó
Sr. José, dizia ele para o meu sogro, a caldeirada era só batatas, só
batatas... Uma coisa sem jeito nenhum.
O meu
sogro estranhou o preço e perguntou-lhe quantos quilos tinham sido.
Pois
que só dois quilos...
Quando
chegou a casa, o Zé Neto ainda se vinha a rir e imitava o sotaque
murtoseiro:
– Só
batatas, Sr. José, só batatas...
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Contudo, há quem as prefira e, se a caldeirada estiver paladosa, coma
mesmo mais batatas que enguias.
Não
sei se foi com gente desta, com quem se irmanava, que o meu sogro
apreendeu a fazer a caldeirada suada ou se já trazia a receita do seu
berço, em Pardilhó. Nunca a vi servida em nenhum restaurante e, se tiver
mão de fada na preparação, é uma maravilha.
Arranjam-se enguias na quantidade bastante para que, quem as vai
degustar, não diga depois que a caldeirada era "só batatas"...
Requerendo-se enguias medianas, não muito finas, não muito grossas,
cortando-as em dois ou três pedaços consoante sejam.
Num
tacho vulgar, de tamanho adequado ao que se pretende, regar o fundo com
um fio de azeite e tapar com uma generosa camada de rodelas de cebola.
Sobre a cebola uma camada de rodelas de batatas que se cortam e partem,
não devendo ser demasiado finas (para se não desfazerem) nem tão grossas
que estorvem a cozedura. Sobre as batatas, deitar uma colher de banha de
porco, uma colher de margarina, dois dentes de alho, um raminho de salsa
e outro de nêveda. Um pouco de louro também. Polvilha-se com colorau e
deita-se um pouco de polpa de tomate. Sal q.b. E um nadinha de picante
(uma malagueta chega). Deitam-se as enguias que se cobrem com nova e
generosa camada de rodelas de cebola, que se regará com um fio de azeite
e um bom copázio de vinho branco. Pôr o testo e cozer em lume brando
durante cerca de meia-hora evitando destapar.
No
fundo, isto não difere nada, ou quase, dos princípios duma vulgar
caldeirada de peixe e mais não se trata que de encontrar Roma seguindo
pelo caminho que melhor nos pareça.
Quando
as enguias são já excessivamente grossas, podem-se ensaiar outras formas
de as preparar: numa tigela, mistura-se uma boa colherada de banha com
uma colherinha de gengibre, uma colherinha de pimenta em pó, um pouco de
sal, a que se adiciona um fio de vinagre. Besuntam-se as enguias que vão
assim a assar nas brasas. Vão para a mesa regadas com um molho vulgar de
manteiga e limão.
Prepara-se um refogado com um pouco de azeite, uma cebolinha e dois ou
três dentes de alho, tudo bem picadinho, a que se lançam os pedaços dos
brasinos, mantendo o lume vivo. Rega-se com um pouco de vinho branco e
deixa-se evaporar. Polvilha-se com um pouquinho de manjerona e uns
pedacinhos de folhas de louro temperando com sal e polvilhando com um
nadinha de pimenta.
Rega-se com um pouco de leite quente, tapa-se com um testo e deixa-se
então cozinhar em lume brando cerca de 20 a 30 minutos, adicionando mais
leite se necessário.
Retiram-se as enguias para a travessa, agasalhando para não deixar
esfriar.
Ao
molho sobrante da frigideira junta-se um pouco de manteiga batida com um
pouco de farinha de trigo, deixando levantar fervura enquanto se
homogeneiza com migalhas de anchovas de conserva, que entretanto se
picaram, regando-se finalmente, depois de apurado, os pedaços dos
brasinos.
Pessoa
amiga recomendou-me, há tempos, Sarilhos Grandes (Montijo) para comer um
prato de enguias muito bom. Não me permitindo a vida tais andanças, quis
apenas saber como era. Não me custa a crer que nessa zona, como em
Monção ou lá para Tavira as preparem dum modo diferente da maneira que é
uso prepararem-se pelo Baixo Vouga. Às vezes, basta uma erva, ou outra
coisa qualquer, para virar o paladar a um prato. E eu, que assumidamente
nada percebo de cozinha, atrevo-me a pensar que se trata de variantes da
mesmíssima cançoneta. As tais enguias de Sarilhos são fritas. E
servem-se com arroz de conquilhas ou lamejinhas que, na caldeirada, são
facultativas. Posteriormente, soube que usam coentros e pimentos na
caldeirada e que no ensopado utilizam cerveja.
Se a
cançoneta é a mesma, a questão está na qualidade dos músicos, dos
artistas. E nesta vida há Gratis pro Deo artistas para tudo. Eu
conheço um, refinado nas teias de Pantagruel, António Germano Homem, de
sua graça, nado e criado em Veiros, desenhador de mister e cozinheiro
pelas mesmíssimas razões das águas dos rios que têm que correr porque
sim.
Bati-lhe à porta na esperança de dar a este livreco um pouco mais de
aroma e, sobretudo, ao menos um pouco de paladar requintado. O que se
vai seguir foi-lhe roubado. De boa fé, claro!
Enguias fritas: são preferíveis as velhas frigideiras e é incontornável
a escolha dum bom azeite. Muito boa gente, para poupar meia dúzia de
tostões furados, trabalha com azeites fracos, quando não mesmo com óleos
ainda piores. É um mau costume, igual ao de ir à loja, comprar um vinho
branco de pataco, para temperar carnes...
Fritar
enguias requer um lume brando e se, a quantidade for muita, há que ter
em conta que o azeite satura. Assim e se a quantidade de enguias andar
pelos três quilos, fritar-se-ão os dois primeiros, rejeitando em seguida
esse azeite, e recomeçando para o terceiro quilo. À mão de semear,
estará um papel pardo, onde se vão escorrendo e secando.
O
último azeite, o que não está ainda saturado, é o que vai servir para
fazer o escabeche. Deita-se-lhe uma boa porção de dentes de alho
esmagados com casca, bastantes folhas de louro, um pouco de pimenta em
pó e vinagre. Pouco, se for para comer na ocasião, muito se for para
conservar as enguias durante algum tempo.
A
qualidade do vinagre também ditará a sentença ao escabeche. Como quem
quer bolota, trepa, assim também haverá que ir fazendo pacientemente o
vinagre ao longo do ano. Servir-nos-á também para um bom bacalhau ou
para umas sardinhas salgadas, de Inverno... O vinagre que se vende nos
supermercados é muito bom para esfregar o corpo, quando se tem urticária
mas, para isto, não se pode recomendar.
Em
levantando fervura estará pronto a verter sobre as enguias. O melhor
seria que as enguias já tivessem arrefecido, embora se possa deitar
sobre as enguias ainda mornas.
Tapa-se bem para não perder aromas. Viram-se as enguias no dia seguinte
(e no outro, e no outro...) e pode-se borrifar com um pouco de vinagre.
Na hora de servir, vai-se à horta buscar salsa fresca.
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Já não
me lembro bem se foi nas férias do ano passado, se do ano anterior, que
o Germano me proporcionou uma caldeirada de raro requinte. Eu tinha ido
de manhã cedo para o tim-tim, ali para os lados da Pousada. Na ocasião,
tinha uma bateira velha que guardava numa poita, ao abrigo das
tramagueiras, na zona do Ramada. Quando terminei a pescaria, naveguei
para a poita e ali mesmo, num rechêgo, entre as tramagueiras, estava o
Germano com o cunhado e um amigo passante, preparando a caldeirada.
Mandou-me ir despejar a palamenta e o resto da tralha a casa e voltar
com um prato e um copo.
Fui a
correr e regressei a voar para nada perder da solenidade.
Por
não haver trempe, arranjaram-se umas pedras e acendeu-se o lume com
lenha. Amanharam-se as enguias que se lavaram na água da ria. Um velho
tacho de fazer rojões estava já cuidadosamente limpo, para evitar o
perigoso azebre, e havia um testo que lhe servia à maravilha. Cobriu-se
o fundo do tacho com umas boas rodelas de cebola, que pousaram sobre um
fio de azeite e unto velho. Tal como se havia feito na caldeirada suada,
cortaram-se e partiram-se rodelas de batatas, batatas brancas, moles ou
farinhentas, com a espessura ideal para cozerem. Sobre as batatas, três
folhas de louro, um bom ramo de salsa, um pouco de sal de modo a ficar
insossa, cobrindo tudo com nova e generosa camada de cebola. Mas, para
melhor entendimento, troca-se a conjugação: dispõem-se seguidamente as
enguias lavadas, como se disse, na água da Ria. Cobrir com água doce até
tapar ao de leve as enguias. Polvilhar com gengibre e açafrão
(***) (a gosto:
quanto mais se puser mais cor dá). Regar com novo fio de azeite, testo
em cima e tacho ao lume. O lume não poderá passar de médio pelo que
haverá que ir tenteando as achas. De vez em quando sacode-se o tacho com
jeito, deixando-se ferver cerca de vinte a trinta minutos.
Enquanto no velho tacho de rojões as enguias apuram, vai-se preparando a
moura. Numa malga grande, de barro, picam-se, muito bem picadinhos, seis
dentes de alho, que se polvilham com um pouco de pimenta, sal em
quantidade que compense e um bom golpe de vinagre.
Quando
acabar a cozedura das enguias, coa-se a água e deita-se na malga. O que
sobejar será posto à parte para o caldo.
Borca-se a malga no tacho e deixa-se levantar de novo fervura,
retirando, de imediato, sem destapar.
E a
sopa? Nem de galinha! Dizia o bom amigo do Professor Egas
Moniz. Dizia-o, claro, no tempo em que quando o pobre comia galinha, um
dos dois estava doente. Correm dissemelhantes os tempos, mas a sopa de
enguias continua a ser manjar incomparável... à melhor canja!
Numa
terrina miga-se um bom pão, grosseiramente, juntamente com miolo de
boroa de milho. Polvilha-se com pimenta, põe-se um raminho de nêveda ou
de hortelã e rega-se com um fio de azeite, deitando-se por cima a água
que nos sobejou da caldeirada e da moura. E aí está a sopa!
A
nêveda e a hortelã da caldeirada colocar-se-ão somente no fim, ao virar
para a travessa.
Enquanto se foi preparando a sopa e a caldeirada, bebericou-se e
falou-se sei lá do quê, de pesca, da caça, de bola, do diabo a sete.
Arrastou-se o almoço no aconchego das tramagueiras e perdi a tarde de
praia. Mas, quantas tardes de praia tive na minha vida? Não têm conta...
E por estagnadas as não recordo. Mas momentos destes grudam-se à memória
e perduram ao longo dos anos.
O Quim Anão.
Episódio que tem perdurado na memória dos Estarrejenses foi o do Quim
Anão e da enguia viva, que talvez seja outro modo de as comer, mas só lá
muito para oriente...
O
nosso herói era um pobre diabo tão querido das gentes da vila, como
enxotado. Tinha desmandos de linguagem, e de gestos, quando e onde menos
se esperava, desde o dar corda ao relógio a... Uma ocasião vinha pelo
passeio um indivíduo aprumado no passo e no vestir. O Quim, quando viu o
figuro, cheirou-lhe a trocos para uma pinga e estendeu a mão:
– Ó
padrinho, padrinho jeitoso, dê uma esmolinha...
O
homem passou pelo Quim sem o olhar sequer. E o Quim, de mão estendida:
–
Padrinho, panasca, paneleiro!
O
passadiço habitual do Quim era junto à loja do Manuel Lopes, onde
entrava frequentemente... Numa ocasião em que passava com o seu velho
saco de serapilheira, para ir apanhar saramagos na borda do rio, viu lá
gente que o aturava e vá de entrar. A Adélia Condeça, mulher do Lopes,
tinha no balcão um alguidar de enguias, que ia amanhando enquanto
aviava.
Um
freguês qualquer viu o Quim entrar e perguntou-lhe: – Gostas de enguias,
Quim? Podes comer uma que eu pago.
E
deitando a mão ao alguidar, atirou uma enguia, que serpenteava, pelo
balcão fora. O Quim agarrou-a e engoliu-a num ápice. O pior é que a
enguia continuou a serpentear e o Quim a rebolar-se no chão com as mãos
crispadas na barriga. O freguês, ainda insatisfeito, pede um quartilho
de aguardente e, à laia de açúcar, deita a manápula a um saco de amónio
que estava aberto para a venda a retalho, pôs uma mancheia na cachaça e
deu o copázio a beber ao Quim. O pobre Anão, na aflição, emborcou a
mistela duma assentada. E aterrou.
A
Adélia Condeça invectivava a clientela, aflita, que fizessem alguma
coisa, que o homem ia morrer ali, que aquilo não se fazia nem a um cão,
que acudissem ao Anão...
Ao
cabo de mais de duas horas sem dar acordo, o Quim deu finalmente sinais,
começou a erguer-se e, cambaleando, pegou no saco e na foicinha e lá se
foi à vida.
Com o
evoluir da ciência e da técnica, as enguias são, hoje em dia, exploradas
em culturas, tal como se faz com os robalos ou as trutas. Em Portugal, a
anguilicultura, em regime intensivo, iniciou-se em 1982; e muitas das
enguias que se servem à mesa dos restaurantes daí provêm.
Talvez
assim estejam sempre disponíveis e possam ser comercializadas a preços
mais acessíveis. Talvez que assim este peixe de excelência possa chegar
a mesas, onde doutra maneira não chegaria. Contudo, eu preferirei sempre
aquelas que são apanhadas pelas gentes da ria, em alguns cantinhos lá
para o Sul, ou aqui mais para o Norte, no Bunheiro, em Pardilhó ou em
Válega, tanto faz. E, enquanto puder e a vida o permitir, tentarei ir a
elas, sozinho ou com algum camarada, pela saudade, sempre renovada, duma
boa caldeirada, mesmo que a caldeirada seja só batatas e mais
tempero não tenha que a alma irrigada pela magia da Ria de Aveiro.
_________________
(***) O
Açafrão verdadeiro tem um preço por Kg. aproximado ao preço do ouro pelo
que, o que se utiliza vulgarmente nas caldeiradas, é a curcuma,
conhecida por açafrão-das-índias, que apenas tem de comum com o açafrão
a cor amarela.
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