3. A propósito do que disse Egas Moniz
Interessantíssimas, não são? Revelam um pouco da personalidade do
catedrático, mostram uma pessoa muito humana assaz diferente do rosto
férreo do cientista que as pessoas conhecem das fotografias. Há pessoas
assim. Como o professor Rodrigues Lapa, Aquilino, Torga, tantos outros
de semblante assustador, mas incapazes de esconder, nesta ou naquela
curva da vida, a poderosa carga telúrica e a bondade mansa de animal
doméstico. Atente-se no carinho com que Egas Moniz chamou para esse seu
livro o Leonardo e o Vendaval deixando em indelével esquecimento a
multidão de notáveis com que privou sobretudo depois que a Academia
Sueca o distinguiu.
Data
de 1950 a publicação de A Nossa Casa. Foi, pois, escrito há já
mais de meio século. Não evoluíram entretanto as tropelias dos
marinheiros, mas pelas palavras do professor ficámos a saber da sua
simpatia pela arte do candeio, que era um processo rendoso de pesca (o
que era extremamente importante, porque então as famílias eram muito
numerosas) e sobretudo o processo como era praticado: primeiro com achas
de cerne de pinheiro, depois com candeeiro de acetileno. Depreende-se
que a memória de escrita do professor havia recuado muito no tempo uma
vez que o petromax já era utilizado na década de cinquenta. Hoje em dia,
há quem recorra a baterias e holofotes eléctricos...
Consoante a dádiva à leitura do seu texto se poderão notar outros
pormenores, desde a referência a outros métodos de pesca, o cesto de
vime e o novelo de minhocas, a referências culinárias, a hábitos do
peixe, o esconderijo das enguias grossas, ao seu ciclo de vida...
Na
pesca com o candeio, quem maneja a fisga escolhe o peixe que quer
arpoar, poupando as enguias excessivamente miudeiras. Assim também as
outras variedades de peixes. O pior é que um candeio que ande a
trabalhar na Mamaparda é visto em S. Jacinto ou na Varela, é
extremamente vulnerável à acção dos marinheiros que vêem à sorrelfa,
navegando às escuras e, quando são percebidos, já não há nada a fazer.
O cesto de vime, a varinha e
o novelo das minhocas.
Aos
poucos, os amantes da fisga, uns por terem ficado escaldados, outros por
terem visto as barbas do vizinho a arder, passaram a trabalhar de dia,
às cegas.
O que
o professor relatava dos dotes do Leonardo não é treta. Há artistas que
lêem melhor o fundo da ria que um padre a cartilha.
No
Verão, andam pela ria veraneantes que, volta e meia, vão, na maré baixa,
para os bancos da Pousada aos burriés e aos cricos. Andam para aqui,
andam para acolá, deixando na areia e no lodo as marcas dos pés, e são
capazes de jurar que o que lá há são apenas cascas velhas, as suas
pegadas e nada mais. Mas, eis que aparece um mal-vestido qualquer que
com uma varetazinha enche, num abrir e fechar de olhos, uma bacia de
caralhoses...
Nas
enguias que estão metidas no lodo não é tão fácil, mas os artistas sabem
distinguir a casa da enguia, o lote, e quando espetam a fisga raramente
se enganam. Devo dizer, talvez, que são raros. A generalidade trabalha
às cegas, nas regueiras, em alguns poceiros de moliço, onde lhes cheira.
Espeta-se muita vez, seguidinho, seguidinho como a música do Soito, e lá
vai calhando... quando calha. E, no final, o que se tem por certo são
umas valentes bolhas nas mãos e o corpo a pedir descanso.
Como
se percebe facilmente, não se escolhe, nesta prática, o peixe. A fisga
tanto dá em grado como em miúdo: vai tudo a eito. Sobretudo na picareta
é cruel.
A
picareta é uma fisga com o aspecto de um pente com algum espaço entre
dentes. A fisga das enguias é como uma mão. Se se afastarem os dedos
muito levemente, mantendo os dedos quase a tocar uns nos outros, é de
enguias; se se abrirem bem os dedos, transforma-se em picareta,
sobretudo para trabalhar a pé, quando as águas já estão tão baixas, que
a bateira não navega. Embora a picareta possa apanhar uma por outra
enguia (praticamente só as mais grossas), o seu fim é a apanha das
solhas e dos linguados. Nunca é utilizada com o lampião, mas sempre e só
às cegas. E, quer pelo espaço entre dentes, quer pela sua grossura,
corta as enguias miudeiras, matando-as, desaproveitando-as e, de igual
modo, nas solhas e nos linguados arpoa-os por vezes do tamanho dum
relógio de pulso.
Enquanto utilizei a picareta, doía-me a alma de cada vez que um dente
apanhava alguma solha ou linguado que não servia nem para a cova de um
dente de gato e devo honestamente reconhecer que, ao contrário do
candeio, esta prática deveria ser rigorosamente proibida.
O
cesto de vime e o novelo das minhocas: para ir a saitela, dizia o
Professor. Eu, na ignorância dos dicionários, chamar-Ihe-ei sertela. Às
vezes, minha mãe, outras vezes irmãos, às vezes amigos mais atentos
chamam-me a atenção de termos que uso no meu falar despreocupado. Ora,
quem sai aos seus não degenera, também nem sempre regenera e eu prefiro
o léxico aqui e além sujo dos lodos, desta minha feira de vaidades, ao
vocabulário moldado como os pezinhos das chinesas.
Adiante e voltando às palavras do professor, dizia ele que eram os
velhos, aposentados, que iam à sertela. De facto, constato nas minhas
andanças que, salvando um caso aqui, outro além, são efectivamente
homens de meia idade ou já velhotes que se dedicam a esta singular forma
de apanhar enguias. No que me diz respeito não fui mais que umas
escassas vezes (como lamento terem sido tão poucas!) com o meu sogro e,
quanto sei, dele o colhi.
Um
colega meu de fábrica, que trabalha nas oficinas, tem essa paixão. Como
não tem outros recursos, pesca na margem do Antuã, quando vê o rio de
feição ou, mesmo que sem ilusão, para estar entretido já que tem a casa
a dois passos. Já o tenho visto, com um guarda-chuva velho, ultimamente
uma bacia.
A
sertela faz-se com uma varinha, de madeira leve, fininha, normalmente
uma caninha da Índia, na ponta da qual se amarra um novelo de minhocas
(também se pode fazer o minhoqueiro com caranguejo de larga, para a ria)
que previamente se coseram com uma linha forte, como quem faz um extenso
colar. Metem-se as minhocas na água aflorando o fundo, oscilando
levissimamente a vara a sentir, a tentar o peixe.
Um apaixonado à sertela.
Quando
as enguias mordem e fixam os dentes nas minhocas é preciso puxar para
fora rápida, decididamente, sacudindo de imediato para dentro do
guarda-chuva, para o gigo, para a bateira.
Ora
essas línguas de prata que sempre são os companheiros de trabalho foram,
há anos, incansáveis a narrar a memorável pescaria que o colega tinha
feito numa noite. Aquilo era uma enguia atrás da outra. Foi-as
amealhando para o velho guarda-chuva, nem se dando ao cuidado de ir
cear. Quando finalmente sentiu que eram horas, tirou a última e puxou
para cima o guarda-chuva... vazio. Virou-o ao céu e viu luzir o buraco
por onde lhe fugira a última enguia. Que era sempre a mesma, no dizer
cáustico dos colegas. Tenho para mim que vestiram com a sua roupa o
corpo da anedota. Mas o que é certo é que nunca mais o vi com nenhum
guarda-chuva e a rapaziada deixou-o em paz.
O meu
sogro, a quem este livro se dedica, teve toda a vida a paixão da caça e
da pesca às enguias e foi, em ambas, exímio. Com ele partilhei momentos
das paixões comuns que me é penoso recordar. Conhecia profundamente toda
a região e dedicava-se às coisas com inteligência, com sentido de
observação e força de vontade.
Abeirava-se já dos oitenta anos e enchia-nos de preocupações e
sobressaltos por causa das enguias. Ia sozinho com a carrinha de caixa
aberta Peugeot, o bote atrás, para onde calhava. De marcha-atrás
aproximava a carrinha da borda e arriava o bote. Para baixo, todos os
santos ajudam. Pois! Mas carregava-o para cima igualmente sozinho e
sempre em locais ermos. Nunca dizia para onde ia, enfadava-se quando lho
perguntavam e creio que só comigo se confessava. Conhecia-lhe os sítios
e algumas vezes lhe apareci de surpresa só porque sim. Ficava então
contente. Mas era realmente uma aflição porque, se estava a dar, ele
deixava-se estar, se não dava nada, insistia ainda na esperança que o
evoluir da maré modificasse o peixe. Faziam-se horas da ceia, tantas
vezes em feias noites de invernia, e o mestre não aparecia... E tanto
podia estar em Canelas, como no Bunheiro, em Pardilhó ou em Válega.
Uma
noite de Verão (os milhos estavam verdes mas altos) eu acabava de jantar
quando ele chegou a casa. Vinha aborrecido por ter perdido a vara do
minhoqueiro. Recordo que apesar da altura do ano estava mau tempo com
vento e chuva. O rio andava emborralhado e a função até nem tinha
corrido mal. A chatice era a vara ter-se perdido. Quis saber onde e
como. Que devia ter caído abaixo da carrinha com qualquer solavanco,
sabia-se lá onde. Não valia a pena. Insisti e lá fui, de motorizada,
sempre devagar e apalpando todo o chão do caminho com os olhos. O sítio
da pescaria tinha sido no Antuã, perto da ponte do comboio, por um
caminho entre milheirais. Fui andando devagar, mas acelerando sempre
para aumentar o foco de luz. Quando me aproximei da margem, a motorizada
iluminou um vulto negro que não virou a cara à luz. Dei as boas-noites,
mas não respondeu. Acelerando com a motorizada parada dei mais luz e
esquadrinhei o chão onde percebi os rodados da carrinha. Quando pensava
já retroceder, o homem diz-me do seu canto:
– O
que você procura tenho-o eu aqui.
Reconheci-o então pela voz. Era o velho António "polícia" de quem eu era
conhecido e amigo e que tinha também o vício. Tratei-o pelo nome e fui
ao seu encontro. Tinha visto a varinha cair da carrinha e estava-se já a
servir dela com mais proveito do que obtivera com a sua.
Quando
voltei a casa, o silêncio feliz com que o meu sogro pegou na varinha,
pagou-me de sobejo a aventura.
– Onde
estava?
Antes
que alguém deduza que a varinha fosse de condão, quero desfazer qualquer
equívoco e dizer que se tratava duma simples caninha da Índia. Das
pretas e nascida defeituosa, grossa e cheia de nódulos na base, mirrada
no seu crescimento, portanto afunilando logo, como um florete. Mas era
por tudo isso que era especial. Pauzinhos de Austrália, caninhas da
Índia, ai o que há disso por aí! Nas mãos dum bom moleiro tudo se
transforma em farinha, mas (e sabem-no tão bem os caçadores!) há
varinhas de minhoqueiro, canas de pesca, armas, fisgas que se casam com
o nosso braço, com a nossa mão, com a nossa alma. Quem faz a panela faz
o testo para ela, não é?
Claro,
a varinha só resultará se tiver na extremidade um bom minhoqueiro e,
nisso estava um dos grandes "segredos" do meu sogro.
Dantes
viam-se por aqui, nas noites de tempo virado do avesso, homens com uma
lanterna e uma lata, pelas bermas dos caminhos, à procura de minhocas.
Porque, sobretudo na Primavera e no Verão, nem sempre as há em
quantidade e qualidade para tecer o minhoqueiro.
Ao
contrário dos aflitos e dos improvisadores, meu sogro manteve sempre uma
espécie de viveiro, que cuidava com desvelo – viveiro que custava
arrelias e cuidados à minha sogra – para ter sempre recurso a minhocas
finas, saborosas e odorosas. Era o seu segredo da pólvora! Algumas vezes
o testemunhei: podia haver várias bateiras na mesma zona que o fieiro
era sempre dele. Os outros apanhavam, com certeza que sim, mas o seu
minhoqueiro tinha o condão da flauta...
Barricas de enguias outrora
em madeira, hoje de lata.
Uma
ocasião foi bater uns cantos para os lados de Canelas. Em três excursões
apanhou cinquenta e tal kgs de enguias. Não estou a fantasiar. Enguias
negras, intragáveis. Negras por terem adquirido a coloração das folhas
podres das amieiras, intragáveis pelo gosto acentuado do lodo das valas,
que nem o mais carregado escabeche conseguiu disfarçar. Podia ter
insistido mas, nessa ocasião, logo se virou para os lados do Bunheiro e
Válega, onde a safra era bem mais diminuta mas de fina qualidade. É bem
preferível suportar a pressão dos caranguejos (vêm muitos ao minhoqueiro,
às vezes estorvam mesmo sem remédio a pescaria) mas colher o que é
realmente bom. E as enguias da zona norte da ria são indubitavelmente as
melhores e, naturalmente, é sempre preferível beber um bom copo de vinho
a uma garrafa de zurrapa.
Na
pesca da sertela acontece o que acontece na caça. Quando eu era mais
moço, andava por aqui um cego a vender cautelas. Acho que era de Fermelã;
e há muito já que deve ter falecido. Exibia a lotaria numa mão e tinha
um refrão invariável: "Há horas felizes!; Há horas felizes!..." Nunca
falava das outras...
Seja
ao robalo à amostra, no chinchorro ou na sertela, há sempre as tais
horas de que o cauteleiro não falava. E há as felizes que, na sertela,
têm quase sempre um pouco mais de prolongamento no tempo como se, após
os sete anos de vacas magras, se tivessem que suceder os mesmos de vacas
gordas. Deve-se, então, aproveitar. Tira a família a barriga de
misérias, às vezes os amigos, a vizinhança também. Dos dias felizes
aproveita também a Comur, a fábrica de conservas de enguias da Murtosa,
já que os serteleiros aí as vão vender.
Contaram-me certa ocasião uma história em que um lavrador do Douro
recebeu a visita dum Marquês qualquer. Mandou então a um criado que
servisse ao senhor Marquês um cálice de vinho fino do que tinha de
melhor. O Marquês emborcou o cálice. A um sinal, o criado voltou a
encher e o senhor Marquês esvaziou-o com a mesma sofreguidão. O lavrador
já não mandou encher terceiro. Virou-se para o criado e disse-lhe
apenas:
–
Traga um jarro de água, que o senhor Marquês está cheio de sede!
Quem
põe enguias na arca congeladora aprecia-as tanto como o Marquês da
história. São inúmeros os peixes que se podem conservar no gelo sem que
percam o sabor. Nas enguias é crime.
A
antiga abundância e a dificuldade da sua conservação estão na origem
dessa fábrica, que é um verdadeiro ex-libris da região e, como já
sugerido, contribuiu desde a sua fundação para o equilíbrio financeiro
de inúmeras famílias, quando não era (ou é) mesmo o único recurso de
subsistência de pescadores.
Um
resto de caldeirada que sobrou pode-se ainda aquecer no dia seguinte.
Depois vai para o lixo. Fritas, comem-se no dia, no dia seguinte e, se
as meterem num bom escabeche, continuar-se-ão a comer por vários dias
mais.
Num
qualquer mês de 73, a monotonia do correio, que nos chegava a um povoado
perdido nos confins de Moçambique, foi quebrada por um embrulho que um
companheiro de Aguada recebera. Comíamos, então, carne com massa e massa
com carne, variando a ementa periodicamente com rações de combate.
O
embrulho, preparado com desvelos de mãe, trazia dentro duas barriquinhas
de madeira com enguias da Murtosa e a memória de quanto havíamos
deixado. Juntaram-se à mesma mesa, por deferência do felizardo, todos os
que eram da região de Aveiro; e fomos irmãos, quanto o poderíamos ser na
adversidade, por um punhado de enguias.
Compreendi então todo o significado que tem o pipinho (agora são de
lata) de enguias de escabeche da Comur na diáspora portuguesa, sobretudo
na América e no Canadá, onde estão sediadas as mais significativas
comunidades de emigrantes Murtoseiros.
Meu
sogro sabia apenas, por ouvir dizer, que vinham do Mar de Sargaços. Por
quanto tenho escutado aqui e além, nada sabem deste peixe os que mais o
apreciam e sobretudo os que vivem da sua captura. E, afinal, que bicho é
este que Aristóteles julgava que provinha do âmago da terra?
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