2. Arte da pesca vista por Egas Moniz
Desconheço se isto está arreigado noutras povoações ribeirinhas (na
Lagoa de Óbidos ou na Ria Formosa, por exemplo). Sei é que isto faz
parte de nós e tanto assim que mereceu ao professor Dr. Egas Moniz,
nosso querido prémio Nobel da Medicina, algumas páginas do seu belíssimo
livro "A Nossa Casa":
Fisgas de solhas e
linguados.
«Os velhos, aposentados do trabalho da Ria, mas
apreciando ainda as distracções da pesca, ali aparecem nas tardes
invernosas, quando as águas andam turvas, com o cesto de vime e o novelo
das minhocas a dar satisfação ao seu antigo prazer. Mesmo no estreito há
enguias em abundância para a saitela e, quando há sorte, vêm umas atrás
das outras, de maneira que, em pouco tempo, se arranja a caldeirada. São
pequenas, mas bem preparadas fazem óptima ceia.
Os mais novos, mesmo sem serem da arte, vão ao candeio,
à pesca do peixe branco. A colheita só é, porém, importante quando
entram pescadores de ofício, bons manejadores da fisga, arte de pesca
que é agora proibida. Continua, todavia, a praticar-se a ocultas da
polícia marítima. Esta, não raro, surpreende os infractores, que trata
com desmedida severidade.
Não pude ainda compreender o malefício do uso da fisga,
visto que o peixe não aumentou na Ria com tal proibição; mas o assunto
não é para este relato.
O candeio do meu tempo era um rendoso processo de pesca
e um curioso divertimento para os que assistiam ao espectáculo. Só podia
fazer-se em noites calmas e sem luar. Umas achas de cerne de pinho, com
abundante resina para dar boa luz e encadear o peixe, e dois homens,
sabedores da arte, numa pequena bateira, ou caçadeira, são equipagem
suficiente. Um conduz o barco, o outro atiça o fogo sobre a trempe e
realiza a pesca. O peixe passa, às vezes, com velocidade, à luz rubra do
candeio, mas a fisga de um bom pescador segura-o e passa-o ao barco.
Nas noites negras de Inverno, quando o vento não
assobiava do norte nem a chuva vinha toca da da barra, e também nas
escuridões nocturnas das outras estações do ano, viam-se da eira da
antiga vivenda de meu tio, em Pardilhó, por onde passei os anos da minha
infância e adolescência, dezenas de luzes a deslocarem-se na Ria em
todos os sentidos, como pequenos farolins de navios invisíveis, na
evolução de desconhecida táctica.
Outras vezes, devido à inconstância da visibilidade dos
luzeiros, pela interposição dos pescadores, lembravam um bando de
pirilampos a movimentarem-se no fundo escuro que fechava o horizonte.
Mais tarde, o candeio civilizou-se. Em vez da fogueira
do pinho resinado, passou a usar-se o candieiro de acetilene com um
simples reflector.
Começavam a pescar pelo esteira fora. O peixe aparecia:
a solha, o palmeiro, a tainha, este, de todos os peixes da Ria, o mais
apreciado. E com razão. Quando grande é saborosíssima, especialmente
frita, embora se arranje de muitas maneiras e até a recheiem com carnes
variadas.
A tainha salta, às vezes, fora da água. Consta, em
Pardilhó, que o Leonardo e o Vendaval, as têm fisgado no voo, de dia,
coisa que não vi, mas não deixo de o relatar, em abono das qualidades
dos dois mais hábeis, pescadores do meu tempo.
O Leonardo andou comigo na escola do Padre José Ramos.
Era dos mais velhos. Magro, de boa estatura, de músculos retesos,
moreno, a quem a maresia dera um tom discreto de mouro, era pescador
exímio. Quando fazíamos passeios pela Ria, ele sabia o esconderijo das
enguias grossas, nas pequenas regueiras dos juncais. Não falhava nunca!
– Além, deve estar uma!
Daí a pouco, aparecia, apertando na mão uma enguia
grossa, enroscada no braço e que ele, na gíria piscatória local,
classificava de "bom chicote ".
Ainda há meses, no Verão passado, me encontrei com o
Leonardo, a quem falta agora a luz da vista para poder pescar.
Falámos, entre outras coisas, das enguias, machos e
fêmeas e da criação. São os peixes misteriosos daquelas paragens e
assunto muito da sua predilecção.
Ainda há na região quem defenda, a pés juntos, que a
enguia nasce espontaneamente do lodo. A maioria porém, mesmo sem
conhecer as doutrinas de Pasteur, afirma que estes peixes provêm de
geração, como os outros animais. Somente ignoramos ainda muitas
particularidades da sua propagação.
O nosso Leonardo é também desse parecer.
– Contudo, objecta, onde estão as ovas de tal peixe? –
Mas existem, embora de volume reduzido.
– Em Pardilhó, encontrou-se uma vez uma enguia com
grandes ovas.
Examinei-a. Não podia haver dúvidas. Mas nunca mais tal
coisa se viu!
– Foi pena não mandarem esse peixe, acrescentei, para um
Instituto de zoologia a fim de ser convenientemente examinado.
– Não foi lembrado...
Disse-lhe que as enguias, como outras espécies aquáticas
emigradoras, vão desovar longe, muito longe da costa. As enguias vão ao
chamado Mar do Sargaço. Pelo que li, deve ser durante a viagem que as
ovas se enchem para darem milhões de ovos.
– E como é que os filhos das enguias vêm para a nossa
Ria?
– É um problema. Dizem que vêm em parte pelas suas
próprias forças. Mas estas são muito fracas, pois os filhos das enguias,
já de feitio comprido, são pequenos e transparentes. As correntes do
mar, mais do que as suas habilidades natatórias, arrastam-nos até às
costas europeias. Invadem os mares mais recônditos, como o Báltico, as
numerosas lagunas ligadas ao oceano e os rios e riachos da Europa. Assim
chegam à nossa Ria onde se desenvolvem e onde se sentem bem.
O bom Leonardo acreditava no que eu lhe ia dizendo, mas
como lhe fosse apresentando algumas dúvidas e certas reservas, ele, por
fim, comentou:
– Quer dizer, as nossas enguias não nascem dos pais que
foram da nossa Ria; vêm de toda a parte, lá do mar do Sargaço que faz
abrigo à criação. As enguias de todo o mundo lá vão pôr os ovos e as
correntes do mar é que distribuem as que nascem. Tenho encontrado essas
enguias pequenas, ainda sem cor e, pelo visto, com uma viagem de muitas
milhas. Olhe que custa a crer!
– Na Ribeira da fonte do Moinho, disse-lhe eu, vi, em
criança, rodilhas de enguias muito pequeninas, mas já com alguma cor.
– Tenho-as encontrado, muitas vezes, aos montes,
acrescentou o Leonardo. Os sábios ainda têm que comer muitos alqueires
de sal antes de saberem ao certo como se geram e criam esses peixes. De
Inverno, saem de noite dos rios e vêm passear pelos pastos encharcados.
É nessas passeatas que vão para os poços. Já ali as tenho encontrado,
sem que ninguém lá as tivessem posto.
– E dos poços é que não voltam a sair, disse-lhe eu.
– Não voltam, não. Faltam-lhe pernas para trepar. Ali
vivem e crescem até que, em ano de seca, se escoa o poço e vão para a
sertão Para mim não há peixe como a enguia!
E prosseguindo:
– É também aquele que mais gosto de apanhar. E a sopa
que ele dá!
Nem de galinha!
E mudando de tom:
– Não me sai da cabeça, sr. Doutor, porque é que a
lampreia vem do mar, para desovar na água doce...
– E o sável e o salmão...
– O sável conheço, o salmão sei que é um peixe de carne
vermelha mas não vem à nossa ria. Mas como ia dizendo, não posso
compreender como esses peixes vêm desovar às águas doces, enquanto a
enguia salta dos nossos rios para o tal mar do Sargaço que, pelo que me
conta, é muito longe daqui. Nem se contenta com a água salgada da nossa
Ria!
– Salgada de Verão...
– E de Inverno, atalhou. Menos, é certo, mas sempre
salobra. Então pr'á Barra, mesmo de Inverno, a água da Ria é muito
salgada.
– As enguias, para procriarem precisam de outra
temperatura e de outras condições por nós ignoradas... Acrescentei.
– Tudo o que queira. Mas elas tão bem se dão na água
salgada como na doce. Para que raio vão para tão longe desovar?! A razão
dessa viagem é que eu queria que me dissessem. E quantas ficarão pelo
caminho nas bocas de peixes maiores! Além desse perigo, a lonjura da
viagem... As enguias embora nadem bem, hão-de precisar de muitos meses
ou anos para chegar ao tal mar do Sargaço! E isto, se não se perderem no
caminho. Ainda se sabe muito pouco sobre a vida das enguias!
Eu, sem garantir as fracas informações dadas, nada mais
podia adiantar sobre o assunto.
Mudando de conversa perguntei-lhe se ainda pescavam à
fisga.
– Ainda se pesca; eu é que já não o posso fazer por
falta de vista. Contudo, é preciso cautela, que os marinheiros têm feito
para aí tropelias de seiscentos diabos!»
|