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Sérgio Paulo Silva, Enguias, 2001, 64 págs.

Enguias

À memória de

José da Silva Valente Neto

1. Evocando o passado 

Uma velha fotografia, tirada no centro da Vila de Estarreja pelo escritor Tomaz de Figueiredo, em que se vêem umas peixeiras esperando talvez a camioneta da carreira que as levaria de volta à vizinha Murtosa ou à Torreira, fez-me lembrar a Laurinda e outras peixeiras de que jamais soube o nome e de cujos rostos não pude guardar memória.

Mulheres sentadas no lancil do passeio à espera da camioneta.

Esperando a camioneta. Fotografia de Tomás de Figueiredo.

Como aquelas que a foto mostra, a Laurinda vinha, canastra à cabeça, vender peixe pelas portas, peixe da Torreira ou do rio, que é como as gentes de lá chamam à Ria, pelas freguesias de todo o concelho, chegando a alcançar, nos seus comércios, as freguesias de Soutelo, Albergaria-a-Nova... O carrego era quase sempre de sardinhas, de muges, de tainhas, carapaus e, sobretudo, de enguias. Às vezes, algum peixe fino: linguados, lulas, robalinhos. Mas também o desvalioso camarão-bruxo. Tudo cabia nessas canastras já que os compradores eram também de paladares e recursos vários.

Na fotografia, que tem perto de meio-século, percebe-se o abatimento físico das mulheres no final da jornada (as canastras já estão vazias), a roupa que usavam e o calçado – todos os figurantes estão descalços, inclusivamente o homem que empurra o carro de mão. Se adregava a camioneta já ter passado ou se o apuro era menos que um migalho, lá iam aquelas almas a pé, gândara de Veiros fora...

Normalmente, as peixeiras faziam sempre a mesma volta. Era importante o conhecimento da freguesia e a sua fidelização.

A nossa casa estava na rota da Laurinda, embora outras nos batessem à porta. Por isso, pelas vezes sem conta que passou por nossa casa, ao longo dos anos, a Laurinda tornou-se familiar; e ouvi-la a negociar com minha mãe era escutar uma cantilena puída de tão martelada. É que a peixeira conhecia a cliente, os gostos da casa, e esta as manhas daquela. Às vezes, os preços ditavam a opção de compra. Hoje, podia ser uma tainha para assar no forno; amanhã, umas petingas para fritar.

Uma das coisas que a Laurinda vendia regularmente à minha mãe eram enguias que o meu pai muito apreciava.

No Distrito de Aveiro, em todo o baixo Vouga, as enguias estavam para a classe dos peixes como os pardais estão para a das aves (leia-se pássaros), que se encontram um pouco por toda a parte. Para que a minha mãe as comprasse, a peixeira tinha que as amanhar, o que invariavelmente fazia, protestando, pela falta de vagar, as horas da camioneta, o preço então desajustado. Amanhava-as à pressa, embrulhando-as previamente em areia, com um canivete afiadíssimo que entrava pelo umbigo e cortava, deslizante, até à cabeça, para depois voltar abaixo um pouco, até onde ficara um resto de tripa. Vivas, debatiam-se, e dificultavam a tarefa que em mãos inexperientes se tornava mais demorada, porque se escapavam sucessivamente das mãos, deixando-as pegajosas do seu ranho.

Conheci-as assim, enfarinhadas com areia nas canastras de muitas Laurindas e depois, ao acaso por toda a minha aldeia (Salreu), pela Murtosa, pela Torreira. Era, de resto, inevitável dado que, mal saído do berço, fui acometido de forte carga de bicho-carpinteiro e agia em consequência. Faltava à escola para ir apanhar grilos ou ir para o rio Antuã, para andar aos ninhos e não foi preciso esperar que a barba me despontasse para arranjar uma cana de pesca e uma Flaubert de fabrico artesanal, que disparava por uma patilha, tudo à sorrelfa e sempre com parceiros que sofriam da mesma virose. Nas crises mais agudas, davam-me xarope de marmeleiro e, também com arreliadora frequência, manteiga de sobreiro. E tudo para nada, já que viroses dessas só se curam com o tempo e nada resolvem as sopas de urso.

Uma chincha (tipo de rede) de poucas braças a secar num pátio murtoseiro. Clicar para ampliar.
Uma chincha (tipo de rede) de poucas braças a secar num pátio murtoseiro.

A banhos na Torreira, eu andava sempre a fazer sombra aos pescadores desportivos e a estorvar as companhas das pequenas chinchas. As enguias lá estavam sempre. Passando o S. Paio, colhia-se o arroz nas marinhas de Salreu e, onde tinha sobrado um resto de lama húmida, os lavradores apanhavam ainda um bom balde de enguias. Sobretudo os que iam escoar valas apanhavam-nas às sacadas, literalmente. E tanto se propalou a notícia do ouro que um dia pedi à minha mãe autorização para ir para o campo às enguias. Tive que explicar longamente que não era para o rio, que era nas valas das praias de arroz, água só pelos joelhos, com baldes... Lá me deixou! Na manhã seguinte, o nascer do dia já me encontrou a caminho com um parceiro de escola, o Figueiredo, enxada às costas, balde na mão e um saco de serapilheira, que talvez não fosse suficiente para o que sonhávamos apanhar...

Caminho fora, íamos olhando as valas. Esta não que já foi mexida, esta também. Esta outra não deve ter nada. Nenhuma nos parecia de feição até que a possibilidade de escolha se foi limitando. Finalmente, elegida uma vala, pusemos mãos à obra. Tirámos sapatos e meias, pusemo-nos em cuecas e, já dentro da água, costas contra costas, à força de cortar com as enxadas nas ombreiras da valacha, íamos fazendo uma tapada. Mordia-nos o cabo da enxada as mãos mimosas, mordiam-nos os mosquitos e as moscas, no suor que o calor do sol ia tornando mais copioso, e mordiam-nos as sanguessugas que tínhamos que estar constantemente a arrancar das pernas. Mas tanto batalhámos que lográmos fazer a primeira tapada.

Entretanto, a manhã tinha crescido. Os patos já não cruzavam os arrozais, nem as galinhas-da-água agitavam as canízias com os seus piados guturais. Pairavam milhafres e silêncios quietos como as águas.

Na nossa inexperiência não tínhamos levado nem pão, nem água.

Mas o que nos desesperava era não ter ainda uma só enguia ao cabo de tantas horas. A vala, porém, regorgitava delas. Tínhamo-las sentido sob os pés. Faltava apenas fazer a segunda tapagem e escoar a água do meio com baldes.

Saímos, andámos um pedaço e voltámos à vala, caminhando, como quem pisa uvas num lagar, para as enxotar de encontro à barreira. A poucos metros parámos e iniciámos a edificação da tapada que as aprisionaria. Quando finalmente o conseguimos, demo-nos pressa em tirar a água do meio. O pior é que a água de fora começou a fazer pressão e arrombou em segundos o trabalho de tantas horas...

Destruídos, encetámos o regresso e, no caminhar penoso, demos com uma terra de arroz já cegado onde havia uns poceiros de água. Foi nesses poceiros que salvámos a honra do convento: meio balde de enguias e três ou quatro pimpões meio atonados.

A tarde já declinava quando regressámos. Para encurtar caminho, deixei o Figueiredo depois da linha do comboio e subi pelas terras para desembocar num cancelo que havia ao lado da minha casa. Não entraria com um saco cheio mas, de qualquer maneira, com enguias e pimpões. Abri o portão e mal tive tempo de dar um pulo para o lado, largando tudo. O cabo de vassoura que minha mãe brandia despedaçou-se no chão e o falhanço do golpe deu-me asas para voar até à casa de banho, onde me aferrolhei só saindo depois da minha mãe prometer que não me batia. E não mais soube das enguias ou dos pimpões.

Sublinho que a abundância de enguias no campo não era uma fantasia de miúdo, mas antes uma realidade daqueles tempos em que a Ria desconhecia ainda o terrível assoreamento de hoje e em que as invernias traziam sempre cheias avassaladoras do Vouga (sobretudo), do Antuã e de quantos riozinhos e ribeiras vertem as suas águas na grande laguna. As enguias subiam (sobem sempre) e depois ficavam em tudo o que fossem valas, poços, fios de água que depois o verão minguaria.
 

Nos anos sessenta, na ribeira da Enxurreira, em qualquer manhã de verão das primaveras que tive algures, no açude onde as mulheres lavavam a roupa, apanhei, mais o rapazio, várias centenas de enguias e de lampreias. Eram tão finas que as devolvíamos à corrente. Hoje, esse riozinho continua a correr mas, talvez por ser vazadouro de cisternas de vacarias e tanta merda das gentes civilizadas, já só tem água que, em alguns anos mais secos, estagna longamente à espera das primeiras chuvas outonais, antes de conhecer a vastidão da ria.

Velhos galrichos. Clicar para ampliar.

Velhos galrichos

Esses juvenis de lampreia e essas enguias que se assemelhavam a restos duma cabeleira semeada no acaso das águas, ainda os encontrei noutras ocasiões pelo rio Antuã.

Já o disse: faltava à escola para ir para esse rio, misturado com a canalha. Gastávamos tardes à pesca dos robacos com bolinhas de pão ou simplesmente à mão, nas tocas. Jamais me tentou a proibida coca. Tentavam-me os galrichos e tentavam-me as palmas dos mais velhos, artes para que se esbugalhavam os olhos dos meus bolsos vazios. E eu roído... Para atiçar a chama lá estavam igualmente as bateiras. Para ir botar os galrichos, para ir às lampreias.

Uma ocasião, um dos parceiros de galdéria, abafou meia-dúzia de galrichos ao pai e lá os fomos armar. A boca para o mar, debaixo das ervas para que o peixe na procura da sombra e do abrigo fosse melhor à armadilha e igualmente para não serem roubados. Depois era só preciso dar tempo...

Mas, fosse porque a camuflagem deixasse a desejar, fosse porque alguém nos tivesse observado, os galrichos levaram sumiço e, em vez de enguias, o meu companheiro deve ter comido da canja, já que eu lavei logo ali, na água corrente, as mãos, como Pilatos.

Na mesa, nesse viajar do tempo, apareciam, volta e meia, as enguias da Laurinda. E outras, agulhas em palheiro, que eu apanhava quando já em plenas férias, na Torreira, andava ao tim-tim. Da borda, sempre da borda com a cana e um carreto Luxor, que recebi da minha mãe como prémio pelo exame do 2º ano do liceu. Uma só vez, nesses tempos, fui de barco e deixou cicatriz na memória. O meu pai tinha pedido a amigos que me levassem e num qualquer dia de férias da Páscoa se combinou a pescaria. Partimos sete, sendo eu o único miúdo, numa bateira grande, à vela (motor fora de borda: o que era isso?), do cais do Bico e lá fomos pela ria fora. O pesqueiro seria talvez lá para o Gramatal ou para o Cabeço da Cruz, onde lançámos ferro. Decorria a pescaria, que até nem estava a ser má, quando uma aragem arreliadora começou a encapelar a ria. Em pouco tempo a aragem cresceu, as vagas engrossaram e ficámos à mercê dum temporal medonho que desfez a vela e ameaçava tragar-nos juntamente com a bateira dum momento para o outro. Arrastámo-nos penosamente com os remos até que alcançámos a Pousada, onde nos fizeram beber imediatamente aguardentes, cafés quentes e chamaram um carro para nos levar embora.

Da borda nunca se apanhava a caldeirada que se conseguia de barco, mas o vício era na mesma enganado e os robalos, mesmo que fossem esgana-gatos, vinham sempre. Quando calhava uma por outra solha, linguado ou enguias, indesejadas pelo serviço que fazem aos estropos: embrulham-se todas, enroscam-se e, sobretudo quando ainda se não tem experiência e se demora a recolher, é mais que certo ter que substituir o estropo e ficar a maldizer a sorte de... ter apanhado peixe!

Era nesse tempo de férias que, nas noites escuras, quando o ar não bolia, eu assistia ao espectáculo que era o baile dos candeios pela ria fora. Eram às dezenas e pareciam-se com pequeníssimas cidades flutuantes.

A ria sempre foi maravilhosa nas noites de luar, como se à noite o céu devolvesse às águas toda a luz que o sol tinha emprestado ao seu espelho diurno. A arte do candeio requer, porém, outra ambiência. É fundamental que a noite esteja escura e que não haja vento. Qualquer aragem faz marulhar a água e impede a visibilidade dos fundos, essencial para a pesca.

A pesca ao candeio. Pintura de José de Oliveira. Clicar para ampliar
A pesca ao candeio. Pintura de José de Oliveira.

A vida, decorei-o de qualquer verso ou duma qualquer canção de Vinícius de Morais, é a arte do encontro... embora haja tanto desencontro. É assim também o candeio. São raras as noites propícias à sua prática. Há sempre qualquer coisa que gera o "desencontro": o luar, o vento, a maré, os afazeres da vida... Quando, porém, tudo se conjuga, colhem-se as tais noites de magia a que aludi noutras prosas. E então é assim: juntam-se dois manos à boca da noite. Calha então muito bem que a maré esteja a vazar. Acende-se o petromax na ré da embarcação e vai-se com a corrente. Um parceiro, com a fisga, junto ao petromax, o outro à vara atrás, vogando, como se depreende, a embarcação ao contrário. Ao longo da pescaria, revezam-se, se ambos forem habilidosos, porque, de contrário, é sempre preferível que o mais azelha vá com a fisga. A manobra da bateira tem que ser de artista para a deixar ir com a corrente, com souplesse (perdoem-me a expressão, mas é necessária), volteando nos sítios de crença do peixe. Uma vara mal manejada, que se enterra no lodo e que é arrancada de supetão, pode mandar o camarada para a água num já.

A melhor posição, indubitavelmente, é a da fisga, já que é quem a manobra que assiste ao espectáculo dos fundos iluminados pelo potente candeio (geralmente 500 velas, ajudados por uma chapa espelhante, reflectora) que vê o peixe e o arpoa. Enguias sobretudo, algum peixe chato, que requer olhar de lince, chocos, douradinhas. As douradinhas parecem dormir em quieto equilíbrio, as enguias mal oscilam... Fogem do candeio os robalos e as tainhas velhas. Para caçar alguma é preciso lançar a fisga para a frente, sem demora no lance, para o passar, um pouco acreditando no acaso que favorece os artistas e desespera quem não sabe. Curiosamente as tainhas miudeiras saltam aos montes para dentro da bateira quando se rema e topa cardume. Assemelham-se a uma girândola de prata, a acha que crepita à toa lançando fagulhas para dentro do barco.

Fisgas de enguias. Clicar para ampliar.
Fisgas de enguias.

Por vezes, o parceiro da vara pode usar uma segunda fisga, usando-a quase só aflorando o fundo para não danificar os dentes e concorrendo para a caldeirada espetando o peixe à esquerda que ao camarada fugiu à direita. E assim, duma maneira ou outra, vão andando com a maré, esquecidos do mundo, esquecidos de tudo, absolutamente de tudo. Na pesca do candeio perdem-se a noção das horas, do tempo, esquecem-se vontades de comer ou de beber, esquecem-se cigarros, esquece-se o mundo como se se estivesse sob poderosa hipnose.

No alheamento total há, porém, que manter sempre presente o sítio donde se partiu, onde se terá que chegar. Porque o barco voga para tão longe, dá tantas voltas e reviravoltas que não são precisos muitos minutos para já se não saber se se está para o lado do mar ou da serra, para norte ou para sul. Claro, a água corre, há outras referências. Mas o que nos sabidos é uma coisa, nos estreantes é outra. E, quando calha de vir nevoeiro inesperado, então estão perdidos uns e outros...

Uma ocasião fui com meu sogro ao candeio. Entramos na ribeira do Nancinho, Pardilhó, e lá fomos pela ria abaixo, rapidamente alheios a outra coisa que não fosse fisgar o peixe, ripá-Io para a caixa, buscar mais.

A névoa foi-se instalando entretanto, subreptícia, insidiosamente e quando a apercebemos já estávamos embrulhados na sua teia. Chegámos a casa às quatro e tal da madrugada e, mesmo assim, com alguma sorte: umas cristas de pinheiro que tinham ficado fora da cortina valeram-nos o norte dessa noite.

Não conheço casa de pescador de toda a zona em que vivo que não tenha em qualquer recanto da garagem ou do telheiro uma fisga. E se a mente viajar pelo Bunheiro, por toda a Murtosa, por Pardilhó, por Válega, então é quase um sacrilégio não a ter, mesmo que "o ferro" passe meses ou anos sem ser utilizado, entendido que não me refiro aos profissionais, mas a todos quantos tenham na vida as mais díspares profissões, mas gostam de pesca e amem a ria. Muitas vezes as obrigações profissionais, familiares – tanta coisa da vida de cada um – não nos permitem ir para a "função", mas é como que uma questão de conforto pessoal saber que elas estão lá. Em algumas famílias amigas que estão na América eu tenho reparado em como as deixam enmassadas e quero crer que em alguns instantes se lembrarão delas sabendo-lhes, nesses instantes, a vida a desterro.

Utilizei o plural, porque, na realidade, têm-se sempre várias. A começar pelas das enguias. Nem todos os ferreiros as fazem com a mesma mestria e há sempre uma que nos agrada mais do que as outras (estou a falar de fisgas) pelo afiado dos dentes, pelo balanço. Depois há as solheiras, as picaretas para ir às solhas e aos linguados.
 

 
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