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Sérgio Paulo Silva, Cidade sem Carnaval, 1ª ed., V. N. de Famalicão, 2005, 64 págs.

Dois Amigos

– Roubaram o cavalinho vermelho! Roubaram o cavalinho vermelho! – Gritava congestionado o motorista de longo curso, Carlos Gafanhoto, à porta do restaurante onde tinha acabado de almoçar.

Os curiosos começaram a sair precipitadamente rodeando o motorista.

– O que foi?

– O que é que aconteceu?

– Roubaram o cavalinho vermelho. Ai que estou desgraçado!

– Homem, acalme-se e explique as coisas – aconselhou o dono do restaurante que não queria barulhos que espantassem a clientela.

Mas aos poucos as pessoas iam-se juntando, mirones, carriças metediças. Alguém telefonou para a polícia que apareceu num jipe "para tomar conta da ocorrência".

O que se tinha passado, conta-se rapidamente!

O motorista, Carlos Gafanhoto, tinha saído do Norte com a camioneta cheia de cavalinhos de pau que se destinavam a um carrossel. Tinha escolhido aquele restaurante por causa do parque de estacionamento cheio de árvores. Poderia assim estacionar a camioneta à sombra para proteger a pintura dos cavalinhos do sol escaldante. Eram doze, ao todo, cada um da sua cor. Faltava o vermelho. Alguém, enquanto almoçava, o tinha roubado. Agora, era como ele dizia, "estava desgraçado", teria talvez que pagar do seu bolso o cavalo. Mas, pior que o prejuízo, era a falta que ele faria no carrossel. Com que cara é que ia aparecer só com onze na véspera da abertura da feira?! Haveria crianças que ficariam de fora.

A polícia não conseguia fazer nada. Procuraram nas imediações, mas em vão. Não havia pegadas ou vestígios. Os vendedores de melões, que estavam numas barracas ao longo da estrada, também não tinham visto nada. Alguém lembrou que talvez tivesse caído da camioneta nalgum solavanco ou curva mais apertada. Mas não, via-se bem que a corda tinha sido cortada propositadamente.

– Mas, assim, sem medo nenhum?!

– Um a tomar conta, outro a fazer o serviço: foi quadrilha. Toda a gente dava opiniões.

E assim, desapareceu o cavalinho vermelho num mistério igualzinho ao do Rei D. Sebastião.

Carlos Gafanhoto, cabisbaixo, pôs o motor a trabalhar e arrancou numa fumarada de tristeza.

A campainha da escola tocou para a saída e, em poucos minutos, todas as salas, o pátio e o ringue ficaram desertos.

O Urbano, o Zé Pirolito, o Sérgio e o Berto iam pela estrada principal, combinando como haviam de surripiar um melão ou uma melancia. Andavam já há uma data de dias a pensar nisso, mas nunca tinham coragem, porque havia sempre gente nas palhotas. As vendedeiras de melões olhavam para eles como se soubessem tudo o que lhes ia no pensamento. Disfarçavam e lá iam estrada fora: "amanhã! Vai ser amanhã".

Quando passaram junto do restaurante, viram a camioneta cheia de cavalinhos reluzentes, novinhos em folha. Correram cheios de curiosidade e de desejo. As cigarras, que guizalhavam nas árvores, calaram-se. Tudo ficou em sossego. Os cavalinhos estavam como se descansassem duma grande correria que os tivesse deixado suados e exaustos. Brilhavam como uma romã madura, dessas que fazem crescer água na boca. E o mesmo desejo que tiveram Adão e Eva no paraíso pela árvore das maçãs encheu-lhes o rosto. Sentiram olhos nas janelas do restaurante, atrás das árvores, debaixo das folhas. Parecia que, por cima das cabeças das melancias, havia uma que era de gente. Na estrada parecia crescer um roncar qualquer.

Hesitaram. As cigarras continuavam caladas. Agora ou nunca! O mais afoito (na atrapalhação qual seria?) cortou a corda. E, enquanto o diabo esfregava um olho, desapareceram pelo mato com o cavalinho vermelho.

Fugiam a corta-mato e tudo atrapalhava: os galhos mais baixos das árvores, as mochilas, as pedras soltas. Uma lebre, que estava na cama saboreando o sol morno, saltou-lhes debaixo dos pés, deixando-os com o coração na boca. Parecia que o som dos próprios passos os perseguia e só respiraram aliviados quando esconderam o cavalinho num celeiro de arroz há muito abandonado.

Já era tarde. Em casa diriam todos que se tinham demorado a ajudar a empurrar um carro que não pegava. Trancaram a porta do celeiro com pedregulhos e desapareceram sem coragem para olhar para os carros que passavam.

Durante muitos anos, no tempo do avô do Sérgio, aquele celeiro tinha tido vida. No verão, era aberto de par em par. O soalho era varrido e assim ficava exposto ao sol à espera do arroz. Pelas árvores e pelos telhados mais próximos, os pardais esperavam também.

O arroz chegava em grandes carroças. Era malhado, passado pela ventaneira, empilhado no celeiro onde os pardais colhiam então a sua parte. Pela noite dentro, os ratos colhiam a deles, com pezinhos de lã, orelhitas de sentinela a qualquer ruído.

Agora, a ventaneira estava arrumada a um canto. Sobre a moega gretava a velha sela e os estribos da burra russa, que todos tinham esquecido depois que fora vendida aos ciganos. Pelas frinchas, o vento empurrava palhas e poeira e, pelas noites dentro, apenas se ouvia as mós do caruncho nos barrotes do telhado.

O Sérgio teve sempre uma secreta paixão pelos cavalos. Quando ouvia o tropel na estrada vinha sempre a correr para a varanda. Numa terra que ele não conhecia, tinha visto uma procissão que trazia à frente cavalos da polícia. Quando passaram perto, conseguiu pôr a mão na garupa de um deles e nunca mais o esqueceu, como se nos dedos lhe tivesse ficado a própria pele do animal. No dia em que descobriu a velha sela, ficou tão feliz como se tivesse descoberto um fabuloso tesouro de piratas. Empilhou uns caixotes, firmou as esporas com umas pontinhas de arame, compôs a sela sobre os caixotes e cavalgou horas a fio como um verdadeiro cowboy pelas pradarias de Wyoming. O imaginário, pela força da sua verdade, tornava-se real, e o velho celeiro transformou-se num picadeiro e numa pista donde partir ou chegar era apenas uma questão de vontade.

As aranhas, com a sua baba de silêncio, foram transformando o celeiro num sítio apenas oco. Agora o cavalinho respirava no escuro e a vida voltava ao celeiro abandonado.

No dia seguinte, quando tocou para a saída, ardiam todos de impaciência. Cada um tinha pensado um nome para o cavalinho vermelho.

– Fandango. – Dizia o Urbano.

– Mosqueteiro- – Tinha escolhido o Zé Pirolito.

– Foguete. – Queria o Sérgio.

– Dominó. – Escolhera o Berto.

Gastaram metade do caminho a discutir sem chegar a acordo. Foram a sortes e ficou "Dominó". A meio da manhã, no recreio, o Urbano tinha mostrado o medo que o afligia:

– E se descobrem que fomos nós?

Mas os amigos não queriam pensar nisso: as cigarras tinham voltado a cantar nas árvores da vereda por onde tinham passado. Agora, o Dominó esperava-os no estábulo.

Arranjaram uma manta velha para não ferir o dorso e ajaezaram-no com a sela. À-vez-à-vez cada um cavalgou, índio, toureiro, cowboy, até o Dominó manchar de espuma os freios inventados.

Vivia feliz o corcel. Durante a noite, as suas orelhas espetadas estavam atentas a qualquer ruído e esperavam pelos primeiros sons dos pássaros, na ânsia de novas brincadeiras loucas e heróicas. Tornou-se a estrela dum estúdio de fotografia à la minuta e outros projectos iam surgindo, onde o Dominó era sempre o astro. Nesse tempo tão solto, o verão trouxe uma noite terrível. O vento começou a soprar. Entrava terriça pelas frinchas da porta e pelos buracos das telhas. O calor era abafado até sufocar e sentia-se um ar de alcatrão por todo o céu.

Esse tempo encheu de cinza a felicidade do Dominó, que se lembrou da velha oficina onde tinha nascido das mãos do Sr. Alípio.

O Sr. Alípio era um velho ferroviário que ia todas as manhãs, muito cedo, para uma pequenina estação que ninguém sabia onde ficava, porque ele nunca falava muito. À tardinha, quando regressava a casa, ia apanhar leitugas para os coelhos e regar os alfobres das alfaces e das couves galegas. Depois, mal comia, enfiava-se logo na oficina, que era muito acanhada e cheia de quanta quinquilharia havia: coisas para concertar, ferramentas, bocados de ferros, até sapatos velhos, porque o Sr. Alípio aproveitava o couro para fazer buchas, coisas assim. Com uns óculos fortes, um chapéu velho na cabeça, martelava, serrava, martelava. Às vezes ouvia-se o zunido do berbequim e o cheiro da cola ia sempre, sorrateiro, parar a casa dos vizinhos. A oficina era assim uma espécie de crisálida donde saíam, depois de terem atravessado a lenta metamorfose, os cavalinhos e outros bonecos que a D. Brilete, mulher do Sr. Alípio, coloria, nos sábados de bom tempo, com tintas ciganas e feitios de faiança.

De tudo isso se recordava muito bem o Dominó, enquanto a ventania rodopiava. E sentia uma grande nostalgia do pátio onde secou ao sol as crinas entrançadas, o pátio que tinha muitas sardinheiras e brincos-de-princesa.

Uma faísca inundou de pavor o celeiro e o estrondo do trovão varreu o céu. Começou a chover a potes.

Faltou a luz. A televisão ficou muda. Dentro da casa do Sérgio ninguém se mexeu do lugar onde estava, à espera que a luz voltasse. Ouviu-se um estrondo a esbater-se mais longe e a Milinha começou a chorar.

– Não tenhas medo – disse o pai – estes barulhos são ali no clube, a arrastar cadeiras. Devem ter desligado a luz para fazerem qualquer coisa, mas já a ligam outra vez.

Acendeu o isqueiro e pegou na irmã do Sérgio que soluçava.

No escuro, o Sérgio ouvia a chuva que caía já mais fraca e pensava no Dominó, sozinho, no velho celeiro, indefeso como um passarito que tivesse caído do ninho.

Quando a luz voltou, a televisão encheu logo a sala. Mas, o cavalinho vermelho, como estaria? Os outros já tinham deixado de lhe ligar e quase o tinham estragado, quando lhe quiseram aplicar umas rodas de ferro.

Fingiu que ia à cozinha beber água e foi aos apalpões pelo carreiro. As ervas molhavam-lhe as calças e a terra cheirava à chuva. Talvez o Dominó o tivesse pressentido, porque lhe pareceu ouvir um relincho vigoroso. Encostou o ouvido à porta: o cavalinho resfolegava baixinho. Quando a abriu, sentiu a amizade daqueles olhos grandes e das orelhas sentinelas.

– Tiveste medo?

Abraçou-o pela garupa. Enquanto o temporal se dissipava, conversaram das coisas que só eles sabiam, da alegria e da tristeza que tinham inventado juntos.

Dominó lembrava-se dos outros cavalinhos e do motorista Carlos Gafanhoto. Agora tinha saudades deles. Como teriam feito o resto da viagem? Que seria feito deles? Se ao menos lhes pudesse mandar um postal!

Da mesma maneira que a árvore que ama o pássaro não o pode prender no seu ramo quando ele pousa, se é no espaço, sem fronteiras, do céu, que mora a sua alegria, assim o pequeno cavaleiro percebeu que o cavalinho vermelho só lhe tinha pertencido nos breves instantes em que tinha partilhado a sua fantasia. Teria que o restituir ao seu mundo, para que cumprisse, como todos os outros, o destino que lhe tinha dado o ferroviário Alípio.

Abraçou-o com força e segredou-lhe:

– Se ouvires algum barulhão, não tenhas medo, são os empregados a arrumar cadeiras no clube. Depressa será dia. Tinha parado de chover e a noite tornou-se mais branda.

Cheirava a uvas maduras. Os quatro compinchas estavam de férias. Às vezes encontravam-se no rio onde iam à pesca de robacos e de carpas.

O Dominó passava esses longos dias do fim do verão, sozinho, no curral improvisado, onde se voltaram a ouvir os carunchos rilhando a madeira velha. Já só o Sérgio o visitava, mas com as pressas todas, como se tivesse que ir para o comboio, carregado de desculpas e explicações. Dos outros, apenas o Urbano apareceu um dia. Nem para ele olhou. Disse qualquer coisa e lá se foram os dois.

Numa dessas tardes imensas e áridas como um deserto, começou a ouvir-se uma música roufenha, uma barulheira desenfreada que espantava os pássaros e se metia sem cerimónia pelos ouvidos dentro, arranhando a paciência dos mais santos. Eram os altifalantes dos primeiros carros de choque que chegavam para a festa das vindimas.

O vento trazia todos os sons da azáfama que encheu o largo grande e o Dominó ficou agitado como um garanhão. Parecia que ia partir o bridão a qualquer momento.

No sábado de tarde, o Sérgio foi com os outros espreitar as feras nas jaulas do circo, ver os carrosseis e as barracas todas.

O carrossel que estava montado, mesmo ao lado da Casa do Terror, girava, subindo e descendo, com girafas de grandes pescoços esticados, cadeirinhas giratórias e cavalos pintados de festa como os galinhas de Barcelos. Faltava um. E o carrossel parecia uma boca bonita que tivesse perdido um dente.

Sem medo nem tonturas, andavam dois homens a cobrar bilhetes, saltando da pista para a cabine de som como macacos.

– E se descobrissem que tinham sido eles?!

Desapareceram como se fossem distraídos. Quando se viu sozinho, o pequeno Sérgio correu para o celeiro contar a novidade.

– Quando for muito tarde e já toda a gente estiver a dormir, levo-te para a tua casa.

E ficaram a contar coisas. O Dominó estava agitado, ardia cada vez mais de impaciência.

Quando chegou a hora em que já nem os cães ladravam, a porta do celeiro abriu-se num chiar arrepiante e os dois amigos atravessaram a vereda escura e meteram-se à estrada que dava até ao largo das diversões, onde os carrosséis dormiam e os leões ressonavam.

Domingo à tarde toda a família foi à feira. Havia mulheres a vender cavacas e bolos de gema. Os tendeiros esganiçavam-se, sobretudo a mulher da pomada indiana que tinha um macaco preso e grandes argolas de ouro nas orelhas. O cauteleiro velho abriu o guarda-chuva para jogar a vermelhinha. Cheirava a churrasco e a farturas.

A Milinha, que ia ao colo da mãe, queria andar em todos os carrinhos e na máquina do comboio também.

O altifalante do carrossel, que estava montado mesmo ao lado da Casa do Terror, gritava: – NOVA CORRIDA, NOVA VIAGEM – RÁPIDO À BILHETEIRA – RÁPIDO QUE VAI ROLAR

O pai pagou ao Sérgio a volta que ele quis dar no carrossel das girafas e dos cavalinhos que rodopiava como uma boca bonita onde não faltava dente nenhum.

Tocou a sirene. O carrossel começou a ganhar velocidade outra vez. O Sérgio tinha escolhido o cavalinho vermelho, enquanto as outras crianças se tinham encavalitado noutros e nas girafas também.

Como um jockey, abraçou-se ao seu pescoço e enquanto o homem da cabine de som chamava todas as crianças para o "grande carrossel da fantasia" os dois amigos oravam de tanta felicidade.

 

 
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