Secretamente, para Célia da Glória
Apareceu no chão, no meio da terra, entre os torrões, pequenas pedras e
ervas daninhas, uma pequena ovelha de barro. Conservava ainda as cores
da pintura: dois pontinhos negros a fazer de olhos, um sombreado de
batôn e o branco da sua lã, encardida pela terra. Uma orelha e uma
das patas já não existiam; o que a distinguia das pedras e bocadinhos
ínfimos de antigos tijolos, era a forma e as cores sujas.
Apareceu no chão, no meio da terra, entre os torrões, talvez trazida
pelos enxurros das grandes chuvadas que tinham caído alguns dias antes,
que avassalaram as ruas e as avenidas levando tudo de roldão.
Havia
muitas ovelhinhas assim no presépio que as catequistas faziam na igreja
da minha infância. Estavam espalhadas pelas colinas de musgo, que
desenhavam o monte onde estava plantada a cabana com o Menino, a vaca e
o burro. Podia muito bem fazer parte dum desses rebanhos de fantasia
mas, como estava entre as ervas daninhas, talvez fosse um derradeiro
sopro de realidade.
Tinha
uma malha preta numa espádua, sinal que me segredava:
– Não
te lembras de mim? Não me reconheces? Fecha os olhos, faço parte do teu
sono!
Fechei
os olhos, mas apenas senti nos dedos as formas do barro. Voltei a abrir
a mão e o meu olhar fixou a pequena mancha.
– Vá
lá, faz um esforço... Volta a fechar os olhos e escuta o som do meu
chocalho. Verás como me encontras lá no fundo. Vá lá, dá-me essa
alegria.
Cerrei
os olhos e abri as janelas da minha memória. No mesmo instante comecei a
ouvir o som dos chocalhos do grande rebanho, cada um com o seu toque,
atravessando o largo da aldeia, ganhando o caminho certo para a corte
onde iam passar a noite. O pastor vinha atrás com o bornal a tiracolo e
um fato de oleado dobrado sobre as costas. O cão do rebanho, enorme,
peludo, da cor das avelãs, com a coleira ameaçadora de espinhos,
deambulava entre o dono e o rebanho, cheirando as soleiras e as
esquinas. Passavam, no seu passinho estugado, e lá ia ela, com a sua
mancha negra, acenando-me com os olhos na tarde que escurecia.
Aqueles olhos grandes que acenavam ao ritmo da cabeça delicada, como os
poderia eu esquecer? Claro que eu conhecia a ovelhinha e foi uma doçura
maravilhosa termo-nos reencontrado, assim como as estrelas reconhecem
sempre a alma de quem as observa.
Foi
pelo tempo em que o frio regressa nas asas das galinholas aos países do
norte que nos conhecemos. Restavam-me ainda alguns dias de férias, que
resolvi aproveitar para pescar trutas. Carreguei as minhas coisas e lá
fui tentar a minha sorte.
Escolhi um rio de águas límpidas e puras, onde a vida brotasse a cada
passo nos pequenos insectos, nos bichos, nalgumas flores silvestres
também. Escolhi o rio Côa, pertinho da nascente, numa aldeia chamada
Fóios onde alguns amigos me dariam guarida.
Foi na
tarde em que cheguei que vi passar o rebanho. Ouvia-se um burro ao
longe, uma velha tocava as suas vacas, que caminhavam sem pressa. O cão
da cor das avelãs cheirava as soleiras e as esquinas. E anoitecia.
Na
manhã do dia seguinte, quando andava distraído a lançar as minhas moscas
às águas do rio, senti um barulho perto de mim que me assustou. Era o
cão do rebanho que ladrava ameaçador. Atrás dele, salpicando o lameiro,
vinham as ovelhas e o pastor, que se aproximou sossegando o cão.
Passariam o dia por ali mastigando, como todos os dias, as ervas, as
horas e os silêncios. Feliz por ter companhia, pôs-se a tagarelar. Como
as trutas não queriam nada comigo, não me importei e fomos conversando.
Já não
me lembro do que falámos. O que é certo é que o cão lá entendeu que
éramos amigos, não mais me ligou e meteu-se pelos giestais, à procura
duma boa sombra ou de algum coelho que não soubesse a tabuada. As
ovelhas e, já agora, as cabras, porque também andavam umas duas ou três
no rebanho, devem ter pensado que teriam mais um pastor a fazer-lhes
companhia e foram-se aproximando confiadas.
Já a
manhã ia alta, quando voltei a tentar a minha sorte nas trutas. Fiz
lançamentos sem conta, mas o dia não era do pescador...
Arrumava as minhas coisas quando ouvi uma voz que me segredava:
– Vez
aquela cabra preta acolá, à beira do pontão?
Olhei
espantado e vi que quem me tinha ciciado era uma ovelhinha muito
engraçada. Voltei a erguer os olhos e, efectivamente, andava uma cabra
perto dum pontão. Mas a ovelha não esperou pela resposta e voltou a
segredar-me:
–
Daqui por um bocado vamos todas descansar. Ela, coitada, terá que
continuar a comer. Sabes porquê?
Como
eu continuava a fazer cara de espanto, a minha amiga informou-me:
– Foi
o pastor que disse «cabra manca não tem descanso»; e como ela se magoou
numa pata a dar um salto maluco duma penedia, agora tem que se
sacrificar.
–
Ah!...
– E
vês além aquelas duas ovelhas magras?
–
Aquelas?
– Não,
essas parecem magras porque já foram tosquiadas. As outras duas que
estão mais além... Sabes porque estão magras?
– Diz
lá.
–
Porque estão sempre na conversa, a falar da vida alheia.
O
pastor já lhes pregou um sermão e disse-lhes que ovelha que barrega,
bocado que perde. Como não fizeram caso, quando as apanha a dar ao
serrote, joga-lhes pedras.
– E
tu?
– Eu,
olha, levo a vida sempre certinha, vou para onde vão as outras e não
quero saber dos perdigões que cantam nem das maluquices das cabras. As
atrevidotas do rebanho estão sempre a levar mordidelas do Leão nas
pernas. Vais-me ver logo passar?
– Para
onde vais?
– Ora,
para o redil. É sempre pelo mesmo carreiro.
–
Talvez! Talvez! Agora não barregues mais senão também tu ficarás uma
magricelas. Regressei ao centro da aldeia e reencontrei alguns amigos
com quem me entretive a conversar.
No seu
chouto de burro velho passou uma carroça cheia de lenha. As galinhas
esgaravetavam os últimos ciscos do dia e a miudagem saiu da escola aos
pinotes como cabritos. Vi passar o primeiro rebanho de cabras, um outro,
e só depois o rebanho da minha amiga, que me voltou a acenar com os
olhos, certinha no seu lugar, na tardinha que voltou a poisar depois que
se deixaram de ouvir os sons dos chocalhos.
No dia
seguinte, fui tentar a minha sorte nas trutas, mais para baixo, onde o
Côa era mais caudaloso. Não mais vi o rebanho e, entretanto, regressei à
minha vida de sempre esquecido, já da minha nova conhecida.
Acarinhei entre os dedos a ovelhinha de barro.
–
Então, rapariga, que é feito de ti? Afinal o mundo é realmente muito
pequeno...
–
Olha, por lá continuei, nos dias tão iguais. Fossem de chuva ou de sol,
de ventania ou quietude, não sabendo de domingos nem de feriados. Fui
vivendo sem romarias de transumâncias ou sobressaltos de lobos.
– E
como é que vieste aqui parar?
– Oh,
isso é uma longa história...
–
Queres contar-ma?
– Mais
logo, quando estiveres a dormir. Agora não te distraias. Pousa-me onde
eu possa apanhar um pouco de sol.
Fez-se
enfim noite, uma noite escura, de lua nova. O passar dos carros foi
sendo cada vez mais espaçado, fazendo crescer o silêncio. Antes de me
deitar, fui ainda à janela, por breves instantes, e olhei tudo em volta.
As árvores dormiam e lucilavam ao longe algumas luzes. Arrefecia.
Adormeci pensando em como estaria o pequeno mundo onde tinha conhecido a
minha amiga. Lá, sem o estorvo das luzes, as noites são mais profundas,
o céu fica mais próximo, mais imenso também. À mesma hora em que muitos
bichos mergulham no sono, outros despertam em qualquer recanto dos
montes, dos bosques. Os mochos e as corujas, os javalis e as raposas, as
esguias ginetas e os coelhos, ratos, insectos, pequenos vermes, tudo
agita de vida o que parece parado no segredo do escuro. E o rio corre
cantarolando nas pedras, indiferente a tudo, aos peixes que dormem nas
suas águas, ao respirar do vento nas copas das árvores...
De
mansinho, com pequenos balidos, a ovelhinha foi-se abeirando e
contando-me a sua vida, as coisas de que todas as existências são
feitas, mesmo aquelas que nos parecem durar um relâmpago.
Uma
manhã, quando iam pela estrada fora a caminho dos sítios onde passariam
mais um dia, viu a cabra manca a esgueirar-se do rebanho e subir para um
muro, onde despontavam umas silvas apetitosas. Debicou algumas folhas,
mas logo teve que voltar ao rebanho, porque viu o cajado do pastor com
cara de poucos amigos. Quando a apanhou a jeito, disse-lhe:
–
Andas sempre com habilidades e malabarismos e depois acontecem-te
dessas...
– Pois
fica sabendo que, mesmo que me magoe, hei-de procurar ervas diferentes.
Estou farta de andar de cabeça no chão. Há tempos, ouvi dizer a duas
velhotas que andavam a apanhar ervas-do-paraíso, hipericão e outras
ervas para os chás, que havia trevos de quatro folhas que davam sorte,
muita sorte e muita felicidade. E eu hei-de encontrar o meu trevo de
quatro folhas.
A
ovelhinha calou-se, mas ficou a pensar. Também ela se aborrecia muito
com a vida que levava.
Um
dia, como quem não quer a coisa, perguntou ao carneiro velho como era o
trevo. O carneiro mostrou-lhe os lençóis de trevo, mas a ovelhinha ficou
triste, porque todos tinham apenas três folhinhas. Haveria de encontrar
algures um diferente, haveria de aparecer um com quatro. E, a partir
desse dia, andou sempre aplicada, de olhos no chão, procurando a sua
felicidade.
No meu
dormir, fui-a deixando contar tudo. Apenas a interrompi para saber se
tinha conseguido achar algum, tamanha era também a minha curiosidade.
Não,
não tinha. Mas, um dia, na hora de descanso, pôs-se a olhar o céu e
ficou deslumbrada. Viu pássaros e invejou-os. Semicerrou os olhos e viu
formas nas nuvens. Pareceu-lhe que eram rebanhos nas estradas do vento e
uma nuvem mais pequena, tecida de lã, parecia-se tanto consigo, tanto,
tanto, que desejou ser aquela nuvem, mudar a sua vida.
Num
ápice, fez do desejo realidade e passou a ser nuvem, liberta do cão que
a mordia, das companheiras submissas, das ovelhas linguareiras, da cabra
maluca.
Viu
então outros montes, outros rios, cidades e planícies, as planícies
imensas do céu onde não pascia, mas que lhe deixavam na alma o doce
sabor do trevo.
Continuei a escutá-la, maravilhado, mas tive que voltar a cortar-lhe o
60 à meada, porque afinal havia outra metamorfose e eu queria que ela me
desvendasse o mistério.
Nem
sempre os ventos sopram do mesmo quadrante. A viração que se deu, sem
que ela soubesse como, transformou-a em chuva e a nuvenzinha que ela era
desfez-se gota a gota, fazendo uma pequena poça que empapou o chão e
tornou a terra barrenta.
Calou-se durante um bocado, para ver se eu continuava a dormir ou se
tinha acordado e desabafou consigo mesma:
– As
voltas que a vida dá!... Observou-me de novo e prosseguiu.
Entranhava-se na terra, quando sentiu passos. Os passos eram dum velho
oleiro, que se que deu a observar a pequena poça, indiferente à chuva
que caía. Curvou-se e os seus dedos fortes, cheios de gretas e nódulos,
colheram o barro molhado que ia amassando a caminho de casa.
E
assim, daquelas mãos tão grosseiras se viu renascida.
O dia
foi acordando nos assobios modulados do melro que velava a companheira
no ninho, no bulício das pessoas e do trânsito e também eu despertei
para o novo dia. Estava, porém, insatisfeita a minha curiosidade.
Vertiginosa tinha sido esta noite da minha vida e não me podia levantar
sem saber qualquer coisa da sua nova existência.
–
Ainda posso ficar um pouco mais. Não me contas o resto?
– O
resto, o resto... Lembro-me de ter estado numa montra, de ter estado num
presépio, numa casa de bonecas... De alguma maneira tinha que ganhar a
vida, não é? Falaremos disso noutra ocasião.
Levantei-me e preparei-me para um novo dia de trabalho. No meio da
multidão, também eu teria que procurar o meu trevo da sorte.
Quando
à tardinha procurei a minha ovelhinha de barro, no sítio onde a tinha
deixado a apanhar um pouco de sol, já não a encontrei. Mas o que dela
restou guardo-o ainda no meu coração, onde às vezes, ao entardecer, se
pode escutar o som cavado dum chocalho.
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