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Sérgio Paulo Silva, Cidade sem Carnaval, 1ª ed., V. N. de Famalicão, 2005, 64 págs.

Cidade sem Carnaval

A história que vos vou contar aconteceu em Vilalegria, uma terra parecida com todas as outras, com um grande centro rodeado de prédios grandes, sisudos, de casas comerciais, lojinhas que vendiam tudo, bancos, cafés e uma praça de táxis.

Mesmo no meio do centro histórico tinha um lago cheio de pimpões vermelhos e um repuxo. Árvores, muitas árvores a toda a volta onde os pardais se escondiam no Inverno e as abelhas zumbiam no verão.

Os habitantes da vila gostavam muito do Entrudo. Alguns andavam o ano inteiro a arranjar roupas e a inventar brincadeiras. Quando chegava o dia, o dia mágico que todos sabiam qual era, quase nem almoçavam para ir para a praça.

Ouviam-se anúncios nos altifalantes quando as pessoas começaram a chegar. Em pouco tempo a praça ficou à pinha. Não se rompia. Não se sabia de onde vinha toda aquela gente, tanta cara desconhecida.

– Mãe, mãe, já vêm aí! Já se ouve a música! – Gritava, pulando, o João, enfiado nas botas de cano alto.

Em torno da praça estavam esticadas umas cordas grossas para que ninguém ocupasse a estrada mas as pessoas, mesmo assim, passavam. Os polícias traziam um capacete reluzente, um capacete marciano com um grande bico e tinham uma cara sem sorrisos como se fossem robots postos em cima dessas estatuas de carne, de bronze russo que eram os cavalos, para encher de terror as pessoas.

O som da música crescia. Pum pum catrapum pum pum, num ribombar cada vez mais forte. Era a fanfarra dos bombeiros que abria o cortejo.

A mãe do João teve que lhe dar a mão porque ele ardia de impaciência. Estava vestido de Napoleão e tinha uma espada quase a sério.

Como os outros miúdos, o João esgueirou-se por baixo das cordas para que todos o vissem no esplendor da sua farda e ficou ali mesmo, indiferente à aflição da mãe, sem medo das patas de um cavalo que sacudia os cascos como se, de repente, fosse partir à desfilada.

Lá no fundo apareceram uns gigantones cabeçudos, tranglomanglo, a dançar de um lado para o outro. Parecia que iam cair mesmo na frente da fanfarra que vinha atrás deles com bombos a vibrar. Estouravam foguetes, muitos foguetes que iam assanhados pelo ar para transbordarem de alegria no meio do céu.

Começaram a aparecer mascarados iguais à bruxa e aos soldados; outros como noivas e como trogloditas, uns muito feios com cabeleiras cor de laranja, um índio com uma carantonha de papelão montado numa bicicleta sem pneus e cowboys em cavalos de pau mascarilha e revolveres de estalinhos que nem se ouviam no meio daquela barulheira.

Com um pescoço enorme que baixava o bico para cima da multidão, surgiu um cisne montado sobre um carro que não se via de tão escondido que estava com pratas de chocolate. Das asas do pássaro apareciam bailarinas que atiravam chuvas de confetis e serpentinas. Atrás do cisne volteavam outras bailarinas com saias armadas como se fossem rabos de pavão e asas de gafanhoto.

A dançar, a bailar quase se enfiavam na charanga que arranhava os ouvidos de toda a gente com os estrídulos clarinetes, a charanga que abria o passo para deixar pular uma data de caras pintadas, mascarados e palhaços que atrapalhavam tudo com os seus sapatos descomunais e barrigas pançudas donde tiravam mancheias de papelinhos às cores e até rebuçados que lançavam para o meio da multidão e aos miúdos, mesmo aos que vinham esguicha-los com pistolas de água.

Por detrás das pessoas que se punham em bicos de pés e das árvores, onde estava uma data de gente empoleirada, para ver o cortejo, havia bancas a vender máscaras e bonecos, pastilhas elásticas e bugigangas de celulóide, roulotes que vendiam farturas fumegantes (tão quentinhas) e casitas de vidro que não tinham mãos a medir a vender nuvem doce e pipocas.

Ao lado duma dessas casinhas de nuvem, estava a mulher dos balões. Fazia-os nascer numa botija de hélio que soprava um silvo assustador que os tornava gordos, inchados, tanto que alguns davam um grande PUM e ficavam desfeitos em mil bocados.

Coitados! Esses não tinham tido tempo para serem felizes, quer dizer para dar alegria. Eram todos tão frágeis!

Estavam amarrados por uma guita comprida a um peso de ferro, abanando, inchados de vaidade, as suas cores e as suas formas: bolas, cavalinhos, patos e lagartas com corninhos. Havia um que parecia um coração verde, com uma cara estampada que reluzia como se fosse de diamante. Todos eles esperavam o instante de pertencer a uma criança, sem se importarem que fosse menino ou menina, tão ansiosos como um cachorrinho ou um pequeno gato abandonado.

O que tinha cara de caleidoscópio, quando viu que o João o tinha escolhido, ficou com mais brilho e dançou de alegria quando se sentiu amarrado ao seu pulso. E tanto dançou, tanto saracoteou que a guita se desprendeu e... aí vai ele pelo céu fora como a Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão, subindo entre as árvores, rasando os telhados das casas que tinham as janelas entaladas de gente.

O João, que se deliciava com a nuvem, ficou pregado ao chão, basbaque, sem acreditar no que lhe tinha acontecido e sem poder fazer nada para poder apanhar o balão que subia, suBIA, SUBIA. Rompeu a chorar num berreiro tão grande que o pai teve que dizer em voz muito perfilada:

– Napoleão não chorava! Era um grande Imperador cheio de coragem!

De nada valeu e teve que comprar outro balão igualzinho para lhe devolvera alegria. Nas ruas da vila, o Carnaval seguia como um dragão chinês.

Maluco na sua repentina liberdade, o balão foi-se enganchar na pinglaruta de uma árvore. Ali ficou, vou-não-vou, com a cara de palhaço rico admirando o cortejo que, entretanto, continuava a passear e tinha outra panorâmica visto lá do alto, como se a árvore fosse um miradouro.

Com uma pressa de tartaruga, outros carros avançavam cheios de cor e de música, sempre atrapalhados por aquele mar de gente que não arredava pé, de escolas de samba cheias de reco-recos, biribaus, frigideiras, caixas, majoretes e gorilas atracados a trotinetas pasteleiras que os atiravam ao chão em cambalhotas trapalhonas que enchiam de risos toda a gente.

No alto de um castelo, que também parecia um bombom gigante, vinha uma Rainha palito e um Rei gordo, Golias, que abanava a mão como os Presidentes da República a dizer adeus – adeus a todos.

Do seu galho, tudo via o balão que estremeceu de medo quando se ouviu um grande estampido que tanto podia ser duma bomba como doutro balão seu parente. Estremeceu e libertou-se mergulhando no azul do céu como um asa-delta, numa ascensão maluca que não se sabia bem no que ia dar.

As pessoas foram ficando do tamanho de formigas e um bando de pombos que passava por ali, fugiu espavorido daquela nave brilhante que vogava no vento. Foi-se diluindo o cor de laranja dos telhados e todos os sons desapareceram.

Descobriu o fascínio dos grandes prados, das florestas, encontrou um rio que atravessava os campos como se fosse uma variz prateada.

Talvez fosse melhor voar mais baixo, como um zepelim. Ou como um helicóptero, controlando tudo com botões.

O vento deu-lhe outro safanão e continuou. No céu não há vidros partidos nem arame farpado, não há curvas perigosas nem os alfinetes dos cardos, tão perigosos para ele como semáforos traiçoeiros. Ignorante da sua fragilidade, voava feliz. Ia já muito longe quando anoiteceu. Mas a noite para ele não era o poço onde se escondia a Maria-da-Grade que comia meninos nem o sótão dos castigos nem tão pouco era o túnel arrepiante por onde às vezes os comboios entravam a velocidades sem juízo. Era apenas a aventura e nada mais.

Cruzou-se com morcegos e com bandos de aves migradoras. Talvez fossem galinholas ou narcejas que já estivessem de regresso aos seus países frios ou, quem sabe, as primeiras andorinhas da primavera.

Ouviu um enorme mocho bufo, bu, buu, buff, buuff, buuuu aterrador.

Ultrapassou algumas nuvens e escapou milagrosamente duns cabos de alta-tensão, até que aos seus olhos se abriu uma enorme cidade, toda iluminada. Subitamente a noite ganhou outra vida como se alguém, com um toque de magia, ali tivesse posto o maior anel de diamantes do mundo, todo cravejado de pedras que cintilavam cheias de néon, iodo e luar.

Aproximava-se na velocidade do vento e a sua cara de um milhão de olhos como a dos moscardos, começou a diferenciar todo aquele concerto de luzes.

Viu um aeroporto cheio de aviões roncando, um enorme estádio de futebol, e um eléctrico velhote, com um braço cheio de curto-circuitos, a rezingar pelos carris. Os carros moviam-se nas estradas como se fossem lagartas a arder. Teve medo de entrar naquele jardim zoológico de torres e de luzes, de travões que guinchavam, de ambulâncias que gritavam, da centopeia de barulhos que o ensurdeciam.

Mas nada podia fazer. O vento empurrava-o e mergulhou na cidade grande levando atrás o fio como os cometas levam a sua cauda.

Serpenteou entre os centros comerciais e os bairros, passou uma grande ponte e encontrou outros bairros até que uma enorme torre lhe barrou o caminho. Quando pensava que já nada o podia salvar, que se ia esborrachar no paquiderme de cimento, uma estrutura articulada dum estendal de roupa travou-lhe a corrida. E lá ficou, com a cauda enrodilhada na estrutura a dançar no vento.

Lá em baixo a vida agitava-se. Viu chegar um leiteiro e passar uma velhinha com um grande cesto de hortaliças. Pelos passeios havia muita gente de cara ensonada. Aos poucos as luzes iam-se apagando. Nascia outro dia.

O estendal de roupa era da mãe do Francisco, um menino que morava no décimo andar da torre e estava fixado na parede da varanda que tinha um postigo para o seu quartinho lá do alto.

Como se fosse uma bandeira, o balão drapejava. Não podia imaginar o que o esperava ainda, depois de tão arriscada e emocionante viagem. Sentiu saudades do João. Mal o tinha conhecido, é certo. Mas, em vez de alegria, tinha-lhe dado um grande desgosto. Paciência! Com certeza que ele já o tinha esquecido. Não se sentia culpado, tinha-se soltado sem querer. Que pena não ter tido forças para o trazer! Ele teria adorado aquela aventura. Bom, pensando bem talvez ele tivesse vertigens. E, de resto, era perigoso. Talvez o pai lhe tivesse comprado outro, lagarta ou coelhinho...

Aquela hora o Francisquinho ainda dormia. Em casa da avó também havia um estendal de roupa. Como não era tão alto os pardais vinham pousar nos arames e faziam barulho com as molas que o acordavam.

O drapejar do balão também o acordou. Deixou-se estar: estava tão bem na cama! Volta e meia ouvia qualquer coisa. Sabia que não estava em casa da avó, que não eram os pardais. Mas aquele som o que seria? Tanto magicou que acabou por ir ao postigo vigiar.

Ao ver o balão, exultou de alegria. Como é que ele teria  chegado ali? Meteu o braço e apanhou-o.

Meio a dormir, meio acordado, cogitava no que lhe parecia um grande mistério. De quem seria?

O balão cheio de felicidade por ter encontrado outra criança, percebeu os pensamentos do Francisco e, com a voz das coisas que não têm voz, contou-lhe como tinha vindo e toda a sua odisseia.

O Francisco não sabia como era o Carnaval. Então o balão abriu muito a sua boca de caleidoscópio e narrou-lhe tudo quanto tinha visto: as escolas de samba, as enrodilhadas serpentinas, os carros alegóricos e a chuva de confetis, os gigantones e as dengosas majorettes. Sobretudo falou-lhes dos mascarados trapalhões.

Tanta fantasia pôs no que contou que os olhos do Francisco se abriram como duas janelas de sonho e alegria. Como seria fantástico encher de Carnaval as paredes do quarto e toda a rua e toda a cidade. As próprias cores mover-se-iam ao som da batucada e nunca teria medo das máscaras. Talvez até usasse uma para arreliar o avô, em paga das partidas que ele lhe pregava.

Imaginou o avô sem fala, trémulo, completamente parvo de susto e voltou a adormecer sorrindo da cena que já via tão real.

Exausto, o balão perdia ar, murchava.

Quando a mãe do Francisco entrou no quarto já o balão estava caído, amarfanhado na mesinha, sem cores, sem vida, como se fosse um lenço sujo. O Xico dormia.

– Acorda meu filho! Tens que te levantar.

– Que dia é hoje, mãe?

– Quarta-feira. Quarta-feira de cinzas: acabaram-se as férias.

Ensonado, o Francisco levantou-se. Viu o balão murcho e sentiu uma grande tristeza.

A mãe pensou que ele estava aborrecido por ter de voltar para a escola.

– Noutras terras, muito longe daqui, há muita gente triste por ter acabado o Carnaval. Uns vão trabalhar, outros vão estudar. Agora despacha-te.

Deixou a mãe sair do quarto e arrumou o balão-farrapo numa gaveta. Talvez um dia o enchesse com um grande sopro, lhe restituísse a vida e o levasse pela mão numa marcha luminosa ou num cortejo.

Enquanto se vestia, abeirou-se do postigo. Lá em baixo, na rua grande da sua grande cidade, não havia restos de serpentinas, nem migalhas de papel colorido, nem nenhum eco da alegria. Apenas lixo.
 

 
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