Peixe não puxa carroça! – ouvi esta boçalidade vezes sem conta. E,
na verdade, só burros e gado de corno as puxam, no entendimento de muita
gente. Sempre que ouvi esta doutrina, contive o meu parecer,
confiando que o tempo operaria a necessária mudança.
Como poderiam esses amantes da carne, da carne que puxa carroças,
todas as carroças da vida, saborear uma boa sopa de peixe? Mas os
caranguejos esperam-nos... E será a carne um retrocesso da humanidade?
Às vezes ponho-me a pensar no que sucederia se, num estalar de dedos,
desaparecessem as pocilgas e os aviários que lançam diariamente
toneladas de carne nos mercados; e as douradas, trutas, robalos... de
cultura? Fiambres, salsichas... que aconteceria se tudo isso
desaparecesse do mercado? Nem é bom pensar, pois não? E, no entanto, os
comeres dos ganhões eram bem mais acertados e puxavam bem pesadas "carroças". O
retrocesso seria a fome. Devo talvez aceitar tudo como inevitável e de
cara alegre.
Mas tenho uma grande saudade dos anos em que as galinhas eram outra
coisa. Acompanhando o meu pai, quando ele ia advogar longe, lembro-me de
ver muitas galinhas à solta por entre as muralhas de Almeida. Como me lembro dos primeiros anos em que cacei em
Vale de Espinho (Sabugal) em que havia galinhas em liberdade pelo
Largo das Eiras, com fitinhas diferentes que lhes marcavam as pertenças. Essas memórias tornaram-me deliciosa a leitura duma abertura
da caça descrita por Aquilino: «Pó-pe-rró-pó-pó, pó, pó-pó! Fogem as galinhas às sete partidas: as frangas esvoaçam e cacarejam. Largueza! Vem aí o Diabo! As velhas poedeiras tomam como sempre o caminho mais longo, patas a competir com as pás das hélices nos
Constellations, mudas e cosidas com o solo. O galaroz da Eufémia, que
está em seguro ao alto do cômoro e se deixa estar, barbilhões a escorrer
ripolin vermelho, solta um cocoricó e agressivo: Desenvergonhados, não
vir um raio! E as vacas do Cismas, que iam para o lameiro no seu doce
ripanço, ensaiam uma corrida para longe da zona perigosa, as campainhas
possuídas de frenética tilintada e, quedam de viés na rampa, a bufar,
muito surpreendidas de se verem com os ossos todos direitos. O Cisma
regouga, afogado pela vaga de poeira; e a tia Maria Quitéria, que acode
ao escarcéu, projecta para fora do cancelo o nariz de mau génio. Não
estava nada de seu em causa, mas podia estar, podiam ser dela as pitas
desarvoradas, e desata a chamar, lesa nos hipotéticos foros: - Pilinhas,
pilinhas todas!»
Raras eram as casas que não tinham um galinheiro, em que as galinhas
não andassem a ciscar, um bichinho aqui, umas pedrinhas além, lavando-se
na terra solta como as primas perdizes que são vaidosas da farpela.
Em Aveiro, mal se saía da Estação, caminhando pelo passeio esquerdo
(hoje e desde há muitos anos é um café-pastelaria) havia um
estabelecimento duma das minhas mais queridas professoras, a D. Maria Vieira, dona também duma conhecida ourivesaria, essa lá ao fundo da Avenida. Nessa sua "loja" um belo dia a montra apareceu com
coisas estranhas, novidades que faziam parar as pessoas: chocadeiras
eléctricas, sacos de ração e farinha e três jaulas, cada qual com o seu
casal de galinhas. Um casal vermelho, um casal branco e um casal pedrês, em que me ficaram os olhos. Que asseio de penas, que tamanho
de animais, que beleza!
Por esses tempos as galinhas punham e faziam o seu período de choco
com os ovos da casa
– se houvesse um bom galo
– ou com ovos comprados
nas vizinhas. Esse era o tempo em que a matança do galo era quase um
ritual, um tempo em que se dizia "quando o pobre come galinha, um dos
dois está doente", um tempo em que às mulheres que acabavam de dar à luz
se servia uma canja rica, de galinha poedeira, com ovos ainda em
formação, oveira, enxúndia à farta, prato de repetir e chorar por mais.
Hoje que é feito da diversidade de cores, que é feito das galinhas
que ciscavam no pátio ensinando os pintainhos, e do galaroz que
anunciava o dia?
Um amigo, aveirense por adopção, que se manteve fiel à tentação das trutas da sua terra natal, numa visita que lhe fiz
mostrou-me uma gaveta cheia de "moscas", dos anzóis que ornamentava para
as pescarias ao longo do Paiva. Entretinha-se aos serões a preparar
aquelas pequenas obras primas com penas de galos, penas que mandava
vir caríssimas da... Indonésia!
Não vingou a loja da D. Maria Vieira mas vingou o demais. A
construção em altura e, enfim, tanta coisa, volatizaram os pintainhos
dos quinteiros. Há por aí muita gente a dizer que vende "galos
caseiros", supermercados que anunciam "frango do campo". E eu sorrio,
quando o ouço, quando o leio. Porque agora já só vou de anjinho na
procissão quando eu quero e aborrece-me que por tal me tomem.
Em Benavente (norte de Espanha) parei um dia num restaurante a meio
duma viagem a caminho da Galiza, cansado e esfomeado. Apetecia-me tanto
uma sopinha... Veio uma mocita e perguntei-lhe se tinha. Respondeu-me
que sim, de tropezones.
– Que es eso?
– Es que siempre se tropeza en algo...
Mandei vir a sopa de tropeções e, o que veio para a mesa foi... uma canja! Comecei a comer e tropecei em corações, pedaços de moela,
de fígado... Bem apanhado, sim senhor. Não lembrava ao diabo e caiu-me
bem, até porque estava um dia de cortar à faca e eu tinha acabado de
parir umas centenas de quilómetros ao volante.
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