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Sérgio Paulo Silva, À bolina pelo Vouga com os Ventos da Memória, 2013, 74 pp.

Peixe não puxa carroça

Peixe não puxa carroça! – ouvi esta boçalidade vezes sem conta. E, na verdade, só burros e gado de corno as puxam, no entendimento de muita gente. Sempre que ouvi esta doutrina, contive o meu parecer, confiando que o tempo operaria a necessária mudança.

Como poderiam esses amantes da carne, da carne que puxa carroças, todas as carroças da vida, saborear uma boa sopa de peixe? Mas os caranguejos esperam-nos... E será a carne um retrocesso da humanidade? Às vezes ponho-me a pensar no que sucederia se, num estalar de dedos, desaparecessem as pocilgas e os aviários que lançam diariamente toneladas de carne nos mercados; e as douradas, trutas, robalos... de cultura? Fiambres, salsichas... que aconteceria se tudo isso desaparecesse do mercado? Nem é bom pensar, pois não? E, no entanto, os comeres dos ganhões eram bem mais acertados e puxavam bem pesadas "carroças". O retrocesso seria a fome. Devo talvez aceitar tudo como inevitável e de cara alegre.

Mas tenho uma grande saudade dos anos em que as galinhas eram outra coisa. Acompanhando o meu pai, quando ele ia advogar longe, lembro-me de ver muitas galinhas à solta por entre as muralhas de Almeida. Como me lembro dos primeiros anos em que cacei em Vale de Espinho (Sabugal) em que havia galinhas em liberdade pelo Largo das Eiras, com fitinhas diferentes que lhes marcavam as pertenças. Essas memórias tornaram-me deliciosa a leitura duma abertura da caça descrita por Aquilino: «Pó-pe-rró-pó-pó, pó, pó-pó! Fogem as galinhas às sete partidas: as frangas esvoaçam e cacarejam. Largueza! Vem aí o Diabo! As velhas poedeiras tomam como sempre o caminho mais longo, patas a competir com as pás das hélices nos Constellations, mudas e cosidas com o solo. O galaroz da Eufémia, que está em seguro ao alto do cômoro e se deixa estar, barbilhões a escorrer ripolin vermelho, solta um cocoricó e agressivo: Desenvergonhados, não vir um raio! E as vacas do Cismas, que iam para o lameiro no seu doce ripanço, ensaiam uma corrida para longe da zona perigosa, as campainhas possuídas de frenética tilintada e, quedam de viés na rampa, a bufar, muito surpreendidas de se verem com os ossos todos direitos. O Cisma regouga, afogado pela vaga de poeira; e a tia Maria Quitéria, que acode ao escarcéu, projecta para fora do cancelo o nariz de mau génio. Não estava nada de seu em causa, mas podia estar, podiam ser dela as pitas desarvoradas, e desata a chamar, lesa nos hipotéticos foros: - Pilinhas, pilinhas todas!»

Raras eram as casas que não tinham um galinheiro, em que as galinhas não andassem a ciscar, um bichinho aqui, umas pedrinhas além, lavando-se na terra solta como as primas perdizes que são vaidosas da farpela.

Em Aveiro, mal se saía da Estação, caminhando pelo passeio esquerdo (hoje e desde há muitos anos é um café-pastelaria) havia um estabelecimento duma das minhas mais queridas professoras, a D. Maria Vieira, dona também duma conhecida ourivesaria, essa lá ao fundo da Avenida. Nessa sua "loja" um belo dia a montra apareceu com coisas estranhas, novidades que faziam parar as pessoas: chocadeiras eléctricas, sacos de ração e farinha e três jaulas, cada qual com o seu casal de galinhas. Um casal vermelho, um casal branco e um casal pedrês, em que me ficaram os olhos. Que asseio de penas, que tamanho de animais, que beleza!

Por esses tempos as galinhas punham e faziam o seu período de choco com os ovos da casa se houvesse um bom galo ou com ovos comprados nas vizinhas. Esse era o tempo em que a matança do galo era quase um ritual, um tempo em que se dizia "quando o pobre come galinha, um dos dois está doente", um tempo em que às mulheres que acabavam de dar à luz se servia uma canja rica, de galinha poedeira, com ovos ainda em formação, oveira, enxúndia à farta, prato de repetir e chorar por mais.

Hoje que é feito da diversidade de cores, que é feito das galinhas que ciscavam no pátio ensinando os pintainhos, e do galaroz que anunciava o dia?

Um amigo, aveirense por adopção, que se manteve fiel à tentação das trutas da sua terra natal, numa visita que lhe fiz mostrou-me uma gaveta cheia de "moscas", dos anzóis que ornamentava para as pescarias ao longo do Paiva. Entretinha-se aos serões a preparar aquelas pequenas obras primas com penas de galos, penas que mandava vir caríssimas da... Indonésia!

Não vingou a loja da D. Maria Vieira mas vingou o demais. A construção em altura e, enfim, tanta coisa, volatizaram os pintainhos dos quinteiros. Há por aí muita gente a dizer que vende "galos caseiros", supermercados que anunciam "frango do campo". E eu sorrio, quando o ouço, quando o leio. Porque agora já só vou de anjinho na procissão quando eu quero e aborrece-me que por tal me tomem.

Em Benavente (norte de Espanha) parei um dia num restaurante a meio duma viagem a caminho da Galiza, cansado e esfomeado. Apetecia-me tanto uma sopinha... Veio uma mocita e perguntei-lhe se tinha. Respondeu-me que sim, de tropezones.

Que es eso?
Es que siempre se tropeza en algo...

Mandei vir a sopa de tropeções e, o que veio para a mesa foi... uma canja! Comecei a comer e tropecei em corações, pedaços de moela, de fígado... Bem apanhado, sim senhor. Não lembrava ao diabo e caiu-me bem, até porque estava um dia de cortar à faca e eu tinha acabado de parir umas centenas de quilómetros ao volante.