Escolher para a caldeira enguias nem muito finas, nem exageradamente
grossas, dessas a que por aqui chamamos brasinos. As finas reservam-se
para fritar e se o forem em demasia devem ser devolvidas ao seu meio
para que cresçam e apareçam.
Amanham-se as enguias vivas, embrulhadas em areia para que se possam
manipular. E, mesmo assim... Numa emergência pode-se recorrer a farinha
ou até a serrim. Ter em atenção que as enguias se amanham, como os
outros peixes, do umbigo para a cabeça, mas também alguns milímetros
abaixo do umbigo.
Cortam-se as cabeças (o que não acontece nas que se fritam em que se
enfiam os rabos pelas bocas) e lavam-se as enguias bem lavadas, em
várias águas, esfregando-se bem para que percam toda a ranheta da pele.
Cortam-se depois a meio ou em três, a olhómetro, mas não fazendo
as postas com o tamanho que podíamos designar por "unhas de fome".
Num tacho de tamanho adequado, cobre-se o fundo com umas boas rodelas de
cebola que se pousam sobre um bom fio de azeite e pedaços de pão de unto
velho, que é como chamamos à gordura que se arranca das costelas quando
se esquarteja o porco. Coisa a parecer um bocado de lençol amarrotado.
Hoje salga-se uns dias, apenas, mas dantes ia-se buscar à velha
salgadeira, quanta vez já rançosa.
Cortam-se rodelas de batatas, procurando qualidade que se dê bem à
cozedura, e assim também se vê a espessura das rodelas. Demasiado
grossas, ficariam cruas; demasiado finas...
Sobre as batatas três ou quatro folhas de louro, um bom ramo de salsa,
um nada de sal para que a coisa não fique insossa, cobrindo tudo
com nova camada de rodelas de cebola. E vão as enguias cortadas para o
tacho em que se põe água até tapar ao de leve. Polvilhar com gengibre a
gosto (quanto mais se puser mais cor dará) e regar com novo fio de
azeite, testo no tacho e tacho p'ró lume, que não deverá passar de
médio.
Enquanto apuram...: a cada passo encontro pessoas que, pelo berço e pela
idade, tinham obrigação de saber um Bocadinho mais e não dizer
gratuitamente asneiras. Dizem que põem açafrão na caldeirada de enguias
e, na verdade, põem curcuma, açafrão-das-índias, vulgo, pó-das-enguias,
que dá a coloração amarela. Dantes uma colher deste pó já bastava para
pintar o tacho; agora é preciso carregar mais nas tintas para se chegar
onde se pretende. Até a isto já chegou o requinte do lucro. O açafrão
verdadeiro, que são estames, tem um preço por kg superior ao ouro e dá
um paladar divino aos pratos em que é posto. Espreitem o que escreveu o
meu amigo Manuel de Lima Bastos na receita Guizo de Xoubiñas e
por favor, se puderem, usem açafrão mas, se não puderem, ponham o pó mas
chamem-lhe apenas o que é porque em tudo se agradece o rigor.
Enquanto apuram, à parte, toma-se uma malga grandé, de barro, para fazer
a moura. Picam-se, bem picados, seis dentes de alho que se polvilham com
um pouco de pimenta, sal em quantidade que compense (recordemos que
tínhamos sido inicialmente avaros no sal) e um bom golpe de vinagre.
Acabando a cozedura das enguias (que dura uns gordos trinta minutos)
côa-se a água do tacho e deita-se na malga, tirando um pouco mais, que
se põe de parte, para a sopa.
Vira-se a malga no tacho e deixa-se levantar de novo fervura,
retirando-se de imediato sem destapar.
Agora a sopa: numa terrina miga-se pão, grosseiramente, juntando algum
miolo de broa. Polvilha-se com pimenta, põe-se um raminho de nêveda, ou
de hortelã, e rega-se com um fio de azeite, deitando-se por cima a água
que nos tinha sobejado da caldeirada e, eventualmente, algum restinho da
moura.
Na caldeirada a nêveda, ou a hortelã, colocar-se-á somente no fim, ao
virar para a travessa porque, já se sabe, basta voltear no prato com o
garfo que logo realça o sabor.
Ah, só mais uma coisa: preferir SEMPRE enguias da Ria e não esquecer que
as do Bunheiro, Pardilhó e Válega são as mais saborosas. |