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Sérgio Paulo Silva, À bolina pelo Vouga com os Ventos da Memória, 2013, 74 pp.

Como o António Germano, de Veiros, terra marinha, trabalha as enguias

Escolher para a caldeira enguias nem muito finas, nem exageradamente grossas, dessas a que por aqui chamamos brasinos. As finas reservam-se para fritar e se o forem em demasia devem ser devolvidas ao seu meio para que cresçam e apareçam.

Amanham-se as enguias vivas, embrulhadas em areia para que se possam manipular. E, mesmo assim... Numa emergência pode-se recorrer a farinha ou até a serrim. Ter em atenção que as enguias se amanham, como os outros peixes, do umbigo para a cabeça, mas também alguns milímetros abaixo do umbigo.

Cortam-se as cabeças (o que não acontece nas que se fritam em que se enfiam os rabos pelas bocas) e lavam-se as enguias bem lavadas, em várias águas, esfregando-se bem para que percam toda a ranheta da pele. Cortam-se depois a meio ou em três, a olhómetro, mas não fazendo as postas com o tamanho que podíamos designar por "unhas de fome".

Num tacho de tamanho adequado, cobre-se o fundo com umas boas rodelas de cebola que se pousam sobre um bom fio de azeite e pedaços de pão de unto velho, que é como chamamos à gordura que se arranca das costelas quando se esquarteja o porco. Coisa a parecer um bocado de lençol amarrotado. Hoje salga-se uns dias, apenas, mas dantes ia-se buscar à velha salgadeira, quanta vez já rançosa.

Cortam-se rodelas de batatas, procurando qualidade que se dê bem à cozedura, e assim também se vê a espessura das rodelas. Demasiado grossas, ficariam cruas; demasiado finas...

Sobre as batatas três ou quatro folhas de louro, um bom ramo de salsa, um nada de sal para que a coisa não fique insossa, cobrindo tudo com nova camada de rodelas de cebola. E vão as enguias cortadas para o tacho em que se põe água até tapar ao de leve. Polvilhar com gengibre a gosto (quanto mais se puser mais cor dará) e regar com novo fio de azeite, testo no tacho e tacho p'ró lume, que não deverá passar de médio.

Enquanto apuram...: a cada passo encontro pessoas que, pelo berço e pela idade, tinham obrigação de saber um Bocadinho mais e não dizer gratuitamente asneiras. Dizem que põem açafrão na caldeirada de enguias e, na verdade, põem curcuma, açafrão-das-índias, vulgo, pó-das-enguias, que dá a coloração amarela. Dantes uma colher deste pó já bastava para pintar o tacho; agora é preciso carregar mais nas tintas para se chegar onde se pretende. Até a isto já chegou o requinte do lucro. O açafrão verdadeiro, que são estames, tem um preço por kg superior ao ouro e dá um paladar divino aos pratos em que é posto. Espreitem o que escreveu o meu amigo Manuel de Lima Bastos na receita Guizo de Xoubiñas e por favor, se puderem, usem açafrão mas, se não puderem, ponham o pó mas chamem-lhe apenas o que é porque em tudo se agradece o rigor.

Enquanto apuram, à parte, toma-se uma malga grandé, de barro, para fazer a moura. Picam-se, bem picados, seis dentes de alho que se polvilham com um pouco de pimenta, sal em quantidade que compense (recordemos que tínhamos sido inicialmente avaros no sal) e um bom golpe de vinagre.

Acabando a cozedura das enguias (que dura uns gordos trinta minutos) côa-se a água do tacho e deita-se na malga, tirando um pouco mais, que se põe de parte, para a sopa.

Vira-se a malga no tacho e deixa-se levantar de novo fervura, retirando-se de imediato sem destapar.

Agora a sopa: numa terrina miga-se pão, grosseiramente, juntando algum miolo de broa. Polvilha-se com pimenta, põe-se um raminho de nêveda, ou de hortelã, e rega-se com um fio de azeite, deitando-se por cima a água que nos tinha sobejado da caldeirada e, eventualmente, algum restinho da moura.

Na caldeirada a nêveda, ou a hortelã, colocar-se-á somente no fim, ao virar para a travessa porque, já se sabe, basta voltear no prato com o garfo que logo realça o sabor.

Ah, só mais uma coisa: preferir SEMPRE enguias da Ria e não esquecer que as do Bunheiro, Pardilhó e Válega são as mais saborosas.