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Sérgio Paulo Silva, À bolina pelo Vouga com os Ventos da Memória, 2013, 74 pp.

A Padaria do meu avô

A padaria do meu avô cozia o pão num grande forno de lenha. Fornos eléctricos a havê-los só se fosse em Lisboa, no Porto e noutras cidades mais despachadas. Os que havia pelas casas de lavoura, sendo naturalmente de reduzidas dimensões, rezavam a mesma missa. Coziam o pão mas, estando quentes, aproveitava-se o seu calor para assar uma carne, fazer um arroz... até umas sardinhas numa telha lá podiam ir experimentar uma nesga do inferno.

O aquecimento dos fornos obrigava à apanha de lenha, de caruma, à limpeza dos pinhais. E, porque nada se podia desperdiçar, todo o brasido era abafado para servir de carvão nos mais dias da semana.

No meu livro O Antuã no seu Acabar, Fevereiro 2007, escrevi isto: «Aí por 1956 ou 57, nos meus 6 ou 7 anos de idade, acordei uma noite sobressaltado: meu avô não estava na cama onde ambos dormíamos na sua casa próxima da Escola Conde de Ferreira. Há imagens de infância que perduram pela vida e lembro-me de ter ido, às escuras, pela casa fora, à procura dele. Fui encontrar o meu velho avô na cozinha, onde também havia uma grande masseira e o forno onde cozia o célebre pão de oito dias e as padas (oitenta e oito) de muita fama. O meu avô estava no meio da cozinha, um leitão metido num ferro (ainda conservo esse ferro facetado) sobre uns cavaletes de madeira, a esfregar a pele já dourada do bicho com um naco enorme de toucinho.

O leitão voltou docilmente para o forno mas eu só a muito custo é que voltei para a cama! Na manhã seguinte fomos para a festa da Senhora da Ribeira...»

Um leitão assava-se por grande festança, quando um bácoro era deficiente, por ninhada numerosa com dificuldades de venda, enfim...

Como se designava o bicho? Leitão assado. Hoje, por todo o lado é leitão da Bairrada...

Todas as aldeias, todas as terras deste santo país, são sempre as mais belas e as mais perfeitas, mesmo que tudo o desdiga. E, se por lá houver uns silvados eriçados, toca, e depressinha, a registar a confraria das amoras e a enaltecer o tugúrio. Eu, como entendo as confrarias disto e daquilo como o que os brasileiros chamariam de vernis-sages, foguetórios para inglês ver diríamos nós basto-me com leitão assado, com ou sem recheio. Não é preciso pôr mais na carta. Um piadão tem um amigo meu, natural de Pardilhó, que vestiu a farda branca dos cozinheiros (barrete incluído...) e que tudo quanto faz é sempre rotulado de "à moda de Pardilhó". A ironia também requer os seus temperos...

Quando se assa o leitão sem recheio coisa que pessoalmente não aconselho, embora o recheio me faça sempre mal à couve-flor... aproveitam-se os miúdos para um prato muito interessante, a cabidela de leitão. Nesses anos em que o meu avô assava um leitão para uma festarola, quase toda a gente criava o seu porquito e galinhas. Tinham, pois, saída os bacorinhos e era raro o que se destinava ao forno. No meu livro A Feira de St.o Amaro, publicitei uma fotografia do Prof. Dr. Egas Moniz, fotografia de dois leitões e escrevi, como legenda: leitão de Janeiro, vai com a mãe ao fumeiro. A feira de St.º Amaro acontece, como se sabe, a 15 de Janeiro e as matanças apenas se faziam em pleno Inverno. Fácil é perceber que um leitão demorava cerca de um ano a ser criado para poder ir com a mãe ao fumeiro, sendo que esta também não tirava o ano para dar catequese à ninhada...

 

Foto cedida pelo Manuel Sagarra.

Hoje (tirando as casas de lavradores e algumas mais raras onde sobraram velhos currais e alguma teimosia) pouca gente cria porcos um ano inteiro e, menos ainda, faz criação. "Vendem-se Leitões", vê-se às vezes por aí, nalguns portões. E destinam-se aos fornos, sim, mas os fornos que a isso se dedicam, alimentam-se essencialmente da criação intensa, de animais exclusivamente alimentados com rações e assim amamentam, para além dos próprios bacorinhos também a trincarem à tripa forra. Como os leitões têm que estar sempre disponíveis, congelam-se maciçamente. A juntar à festa para não falar de algumas habilidades usam os tais fornos eléctricos. No final, para quem não sabe ou para quem não pode, Ita Missa Est e vai toda a gente em paz, está tudo certo, tudo como manda a lei e tudo é bom. Quanto a mim, aprecio (de longe em longe) uma refeição de leitão, caprichando nas portas a que bato e sujeitando-me a pagar os desejos um pouco mais caros. Se correr por minha conta. Não o sendo (a cavalo dado...) dou ao dente mas já me têm saído muitos duques e algumas senas tristes, para usar uma linguagem grata aos jogadores de cartas. Nessas ocasiões, falo em silêncio com o meu avô:

Avô Raul, tu esfregavas o bacorinho com carne gorda porque ele era magro, não era? Diz-me, usarias vinho branco se ele fosse gordo?

Mas o meu velho avô já não me pode ensinar. Mesmo sem querer, a Maria muitas vezes lá tem que ir com as outras e ficar-lhe-á menos bem não gabar o leitão à Bairrada, mas pior fará ainda se se deixar tentar pelo incendiado recheio e o comer com destravada gula.