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Sérgio Paulo Silva, À bolina pelo Vouga com os Ventos da Memória, 2013, 74 pp.

Ratos e caranguejos

Há uma grossa e enriçada meada de anos, quando cumpria serviço militar no norte de Moçambique, fui um dia escalado para uma operação para a temível Serra de Gessi, no Niassa. A dada altura, levávamos já mais de um dia de marcha, faltou-nos a água nos cantis e incumbimos um cabo e alguns soldados do reenchimento num ribeiro que sabíamos próximo. Lá foram e, quando voltaram, o cabo vinha eufórico. Tinha encontrado caranguejos no ribeiro! E trazia uns quantos, uma espécie de maná... Para o cabo, para mim, para alguns mais, caranguejos a mais de mil quilómetros do mar era, na verdade, um prodígio que tinha que ser celebrado como celebrávamos as latas de enguias de escabeche que um colega da Bairrada volta e meia recebia, enviadas por uma avó, uma verdadeira santa.

Depressa se inventaram umas latas vazias, de fruta, uns saleirinhos e... toca a cozer os caranguejos nas lamparinas a álcool. O acampamento macaco, mesmo sem piri-piri e sem cerveja, foi transformado em marisqueira. Não seria bem a Portugália mas foi uma festa.

Nesses anos, os batalhões que iam de Portugal (da Metrópole, para recuperar a linguagem do tempo) eram divididos depois em companhias que se dispersavam na geografia, que era imensa. As companhias eram então engrossadas por tropas de integração, soldados negros oriundos de outras províncias moçambicanas. Um deles, do sul, penso que da região da antiga Lourenço Marques, quando nos viu a comer os caranguejos cozidos ficou de tal maneira enojado que andou a vociferar e a vomitar pelos cantos.

Passou-se. E esqueceu.

Tempos mais tarde, já no resguardo do quartel, foram requisitados uns quantos para fazer uma limpeza profunda ao depósito de géneros, onde as ratazanas metiam o dente em tudo. Mataram uma data delas, de bom calibre, tendo-as, o tal nosso amigo enojado, chamado todas a si. Para as assar, porque, no seu dizer, as ratas eram um petisco de eleição...

Se então eu já tivesse lido Las Ratas, do Miguel Delibes talvez já não me impressionasse tanto. Perturbei-me, na verdade, mas acreditei que sim, que o seriam, para ele e para toda a gente da sua região natal.

Vamos reler Torga: "Olho estes montes circundantes que desde muito cedo me desafiaram a imaginação e as pernas... Os horizontes que deles contemplei é que me balizaram a alma... Nascemos num sítio. E ficamos pela vida fora a ver o mundo do fragão que primeiro nos serviu de mirante." Estas palavras não valem só para o que os olhos abrangem e para os compassos do coração. São igualmente válidas para os primeiros alimentos. Há sabores que se vão adquirindo com a idade, com o caminhar pelas mil e uma veredas do mundo, mas os iniciais ficam-nos indelevelmente presos, muitas vezes até por razões que têm pouco a ver com as papilas gustativas ou com os cheiros.

A repulsa do soldado negro não era dissemelhante da dos seus pares brancos. E, no entanto, o sentimento que experimentei ao imaginar as ratazanas assadas, tem agora, volvidos os anos, outros condimentos. A leitura de Delibes, algumas coisas mais de que fui tomando conhecimento, revelaram-me questões culturais e, sobretudo, de subsistência que já então devia ter ponderado. Por essa altura eu bem via como os miúdos negros tiravam a barriga de misérias na época das formigas brancas, comendo-as às mancheias, apanhadas no chão, com as suas asinhas de pinhões trémulos e como se fossem um dilúvio de rebuçados...

Na realidade, neste mundo nem todos temos acesso ao filet-mignon, mas todos nos apegamos à vida e queremos sobreviver. Um gato pode tornar-se numa lebre? Pode. E fazer-se dum cão um cabrito? Também. Por isso os cabritos, quando se vendem já preparados, têm sempre, têm que ter o pincel no rabo. Há artistas para tudo e também e há-de haver sempre quem aposte a luz dos olhos na carta vermelha que já mudou de sítio. Por isso, sim, é possível perder tudo no jogo da vermelhinha.

Na minha infância, criavam-se coelhos na casa dos meus pais. Oportunistas de gabarito, as ratazanas conviviam com os coelhos e, não raro, faziam estragos. Constava que os chinos, os simpáticos porquinhos-da-Índia, as afugentavam, pelo que, um belo dia, meti lá um casal na tola crença de que resultaria.

Ao contrário das ratas, os chinos são bichos simpáticos, agradáveis, que se deixam pegar e põr ao colo. Mas, tão roedores como os outros, multiplicavam-se assombrosamente. Aos coelhos, ainda os matávamos mas, os ternurentos chinos... e inçaram os currais.

Um dia calhou eu falar disso ao almoço, na cantina da fábrica onde trabalhei. A cozinheira, ouvindo a conversa, disponibilizou-se para os receber todos. Lá lhos levei para as coelheiras ficarem mais aliviadas. Para erradicar as ratazanas outras habilidades se requeriam. A D. Zélia, assim se chamava a senhora, quis apenas saber qual era o casal base, que lhe isolei.

Tempos mais tarde soube que esse casal de porquinhos-da-índia prosseguia na criação como se tivessem ingerido o elixir da eterna juventude. Quanto aos restantes, tinham sido todos assados e comidos pela família. Manifestei o meu espanto.

– Ele há lá coisa melhor? – Questionou-me a D. Zélia. E eu lá fui titubeando um pode ser a que não era alheia a memória da minha passagem pelo Niassa...

Portanto, estas coisas dos comeres têm que se lhes diga. Em anos há muito volatilizados, quando se queria depreciar alguém, era comum usar a expressão "para quem é, bacalhau basta". São hoje outras as bitolas mas eu, ignorando-as, aceito pacificamente que digam dos meus saberes e dos meus sabores "ora, para quem é, bacalhau basta" e, assim sendo, dispus-me a levar ao meu calvário outra cruz, orientando-me por um livro (Alta Estremadura, de José Marques da Cruz) cuja leitura me sugeriu poder eu ir prazenteiramente à bolina pelo meu Distrito, falando destas coisas, o que mais não é que tecer descrições avulsas desde o fragão que me serviu de mirante. Seja, pois.