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RUFINO E FIRMINO, INIMIGOS?

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António Nunes de Almeida

 

Foto de Bahia. Clicar para ampliar e observar a fotografia original.

Rufino Sequeiro e Firmino Regado eram um prodígio de desentendimento psicológico. Ou seja, odiavam ambos o mesmo, mas sempre do lado contrário do outro! Permitamo-nos criar uma expressão para alcunhar este estranhíssimo defeito: eram inimigos gémeos!

Esta situação de gémeos que o não eram, até tinham quinze anos de diferença entre eles, tinha algumas vantagens que o povo tentava deslindar…ou melhor, já nem pensava nisso! O diabo que os levasse!

Inseparáveis eram, e por isso se viam obrigados a discutirem entre eles sem qualquer possibilidade de estranhos meterem o bedelho nas suas contendas! Era o raio se isso acontecia! Adversários há segundos, parceiros ao instante se contra o intruso! Não são assim também os verdadeiros gémeos? Achamos que sim. Era bem como eles se consideravam durante as horas de vigência comum, ou seja, todas menos as de dormir.

Sabem que esse considerando deles tinha um efeito muito curioso nas ofensas quotidianamente trocadas! A ver como!

Nunca por nunca se chamavam cabrão ou filho da puta um ao outro. Porquê? Fácil. Porque morando no mesmo país e sendo gémeos lá no seu entendimento, se usassem esses elegantíssimos insultos, estavam-se a insultar a eles mesmos! Complicado? Nem por isso… Basta ter fé e acreditar que os pais deles mesmo não sendo, eram um só e os mesmos! É necessário é estar atento à psicologia um tanto ambulatória deles...

Rufino Sequeiro, como mais velho nos seus sessenta e oito anos, arvorava-se em chefe do bando (deixe-se a palavra mesmo para um bando só de dois) e trovejava aos ventos gostar de ser rei e mandão... desde que o Firmino não estivesse por perto.

Novamente a pergunta, porquê? Razão era, que mais novo sim, e rasando ainda os cinquenta e três anos lá para Março, Firmino ameaçava imediatamente tal soberania.

Era sua firme intenção que ficasse claro que a inteligência mandasse mais que o cajado ou a parvoíce burra do “irmão”, o que dava na mesma! E quem era o inteligente? Há outra resposta que não seja Firmino Regado?

Tinham um amor comum, aceite fica essa condição sem bordoada moral ou de varapau: ambos adoravam a sua terra do Alentejo. E pronto, acabava aqui a concórdia!

Há amores para todos os feitios e feitios para todos os amores. Sabe-se lá se algum filósofo dos livros em grego ou latim já pasmava esta verdade sobre os feitios?

Olhe, se já o tinham dito, foi uma grande sorte ou poder de adivinhação, porque só por estes lados é que é possível criar filosofias tão profundas, assistindo ao trovejar dos diálogos Firmino / Rufino!

Vamos então ver em pelo sem sela nenhuma, como funciona a parelha.

Pela frigideira do ”BORREGO DO LARGO” passavam no momento umas farinheiras com ovos, de cheirante apelo para o Rufino e uma dúzia de compadres. Variante podia ser umas febrinhas do alguidar. Encostado ao mesmo balcão, o “mano” ia pela linguiça assada a ser temperada antes do dente que a comesse, com poejo em quantidade Firmino q.b.. Os adeptos em volta eram quase em igual número por um e outros petiscos.

Não pensem em ansiedade na sala, pensem sim em quem ia doar e pagar a janta. Os em volta, era mesmo o que tinham na cabeça. Hábitos consabidos já por todos. Mastigavam o seu copo de tinto para fazer boca ao que dali viesse. Se a frigideira é a mesma...

O boteco com aquele nome comestível enchia o centro do largo e das vidas de muitos concidadãos. Ali entravam para uns golpes de navalha no pão e no chouriço, deitar por terra o nível das pipas (sim, ainda havia algumas pipas, agora se o vinho delas apenas tinha ali a cama e não o berço, era outro assunto a debater se alguém se importasse com isso), e depois de aliviar as pipas, passavam normalmente a carregar as conversas.

Encostados àquele balcão de faca e presunto em punho, muito borrego foi vendido, burros e caprinos trocaram de dono e se ajustaram vidas dos outros, dos que não estavam na altura, já se deixa ver.

Caraças, o gerente, tornara-se melgadamente e com todos os vagares, o epicentro de tudo. De tudo!

As notícias, embaladas em vinho tinto, podiam aprofundar o estado de ex-virgindade de qualquer rapariga (era a desgraça dela!) ou de moço novo (era a glória dele!), as festas nunca incógnitas e as cajadadas sem dó nem piedade asseguradamente públicas! Não raro, o cajadador e o cajadado remoíam no ”BORREGO DO LARGO” os restos das fúrias e antigas razões da rija bordoada. Porque aquilo era tudo muito boa gente, a amizade não se destruía a pau, salvo se havia saiame pelo meio.

Neste ambiente, não há como estranhar o azedo historial dos nossos Rufino e Firmino!

– Atão vocemecê quer plantar uvas? E não me diz aonde?...

– Homem, terra farta há em fartura! Temos é que lhe dar água!

– E vem donde essa água que quer dar às plantas? Vocemecê vai andar de regador nas unhas, home?...

Não era resposta que tolhesse a língua do Firmino Regado.

– Do lago de Alqueva, ou não têm lá água?

– Há lá, há, mas está longe!

– E a terra aqui é de seara, o trigo, mê amigo, vem para cá nascer! Disse quem? O Rufino Sequeiro, apontando bem ao furo da deixa.

– Sabes bem que se a água cá chegasse era para deixar aí os campos cheios de sal e químicos lá da merda dos espanhóis.

– Matava-se a terra! – Atirou logo um deles que por acaso não conseguimos identificar.

– Compadres! Vocês nan querem andar pr’a frente só aladam como o caranguejo, se não atrasam como o mijo da burra! Venha a água que faz falta!

– Boca tem você, Firmino! E que se faz aos porcos, vamos ensiná-los a nadar?

– Caraças, vomecê tem medo de andar a nadar aqui dentro da taberna? É isso?

– Tá-me a chamar porco?

– Não se vê logo que não? Eu quero é ver este Alentejo com cara nova, sem aranhiços, mas com vinho bom, e melões que vendem bem e dão trabalho a muito povo. Se a nossa gente se desencostar do chaparro e der ó milho, a gente muda isto! É o que quero!

– Era lindo ver os porcos a nadar e as borregas de fato de banho! Dêxa-me rir!

Pouco entrou aqui o mano Rufino. Pensando nisso, arrisca-se a pensar que lhe girava na cabeça sem travão, alguma ideia, tão má como o vinho que bebia entrementes.

A luta entre as tradições velhas e já boas para cantares folclóricos e os ventos novos que podiam soprar naquelas terras ressequidas e algo exaustas pelo sequeiro arrepelavam as conversas de metade da população contra a outra metade, e isto é metafórico, porque se fossem pensar em dividir os que restam na terra de Montegrande, só encontrariam gente para uma metade, não dava para duas!

Firmino e Rufino eram bem o emblema da situação. Um pelo seco, outro pelo molhado, ambos a gostar do seu Alentejo, mas cada um com a sua maneira diferente de o ver. Tragédia não era, drama, isso sim, que as casas eram em subida crescente, habitáculo para moscas e outros bichos igualmente pouco aconselháveis.

– Mano! Ao trigo dá a chuva o beber, às uvas e aos melões tens tu que pagar a água!

Vê-se já a imagem da terra neste espelho do “BORREGO DO LARGOW”! Imobilismo, falta de imaginação, cansaço da mente, fatalismo da raça, deixa andar que sempre foi assim, há muito chaparro por aí…

A trovoada retumbou com um pretexto mais do que infantil: um concerto estival de um “famoso” cantor (?) o Violas Semedo. Longe estava o artista de sonhar que iria causar uma das piores cenas de pancadaria na terra, daquelas que nem a passagem dos combatentes pelo vinho do Largo quase pôde acalmar! Pobre famoso das cantorias…

Coisa foi, que ao ilustre foram dizer que no fim do espectáculo ou no meio, tanto dava, arrancasse uma saudação especial aos trabalhadores da terra, sem esquecer o falar russo, já que havia alentejanos mas mais ucranianos a trabalhar por ali – bons compradores de discos com música alegre ainda que não percebessem muito bem as letras.

Ordem feita, ordem cumprida! Posta a gente no terreiro a ouvir e o mulherio a dançar a compasso, o artista Semedo gargarejou vários “êxitos planetários” com pleno agrado da mais ou menos vasta audiência, entre os quais a crítica, se alguma vez tivesse tido ocasião para isso, destacaria jóias como “A minha borreguinha doce” e o estrondoso “Ó filha estás ao fresco”. Enorme!

Mas veio a proclamação encomendada pelo agente e comerciante de CD’s! Às palmas, disse o famoso:

– Obrigado! Obrigado! Muito obrigado, amigos alentejanos russos! Para vocês o meu obrigado por este…

Mais não conseguiu vocalizar! A surreada de assobios e de objectos subitamente voadores vindos das duas facções presentes, normalmente amigas entre si, deu pernas velozes aos organizadores do espectáculo, começando pelo Semedo, agora com medo, mesmo assim sem conseguirem evitar boas e certeiras bordoadas, vindas democraticamente de qualquer dos lados sem olhar a religiões, credos ou partidos, salvo os que ficaram com algum osso menos inteiro!

Foi uma festa, uma grande festa! Contra as previsões já tidas acima, acabou tudo em grandes copázios de tinto e palmadas nas costas, igualmente sem olhar a religiões, credos ou partidos. Lucro farto para o Caraças do tasco!

Sabida já como era a vida em Montegrande, porque razão continuamos a contar histórias?

Muitas vezes da discórdia nasce uma luz qualquer. A iluminação foi na cabeça do Firmino Regado, a ideia de arrendar a “Herdade do Trabalho e Esperança”, assim que a rega se tornou realidade. Com o tempo e com muito trabalho, desempoeirado de ideias, maquinaria apropriada, veio a produzir uvas com tal qualidade que as começou a vender às grandes casas vinícolas. Teve êxito e nele, o orgulho de contratar gente alentejana de ideias e formas de trabalhar novas.

Na taberna nunca mais ninguém falou em dar fatos de banho às vacas e porcos…

Rufino Sequeiro, envelhecido, bisonho e teimoso, ficou na dele, trigo é que é bom. Será?

Vê-se que a polémica, com mais ou menos força, continua. Quem terá mais razão? Quem ganhará e com ele o Alentejo? Que acha?

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