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VIOLA CAMPANIÇA

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APONTAMENTOS HISTÓRICOS

Pesquisa de Pedro Mestre
(Com base em texto de  José Alberto Sardinha)

A viola popular portuguesa chegou até aos nossos dias sob várias formas e denominações: braguesa, ramaldeira, amarantina, toeira, de arame, da terra e, no sul do país, campaniça.
 
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Esta viola popular descende da tradição violística hispânica que se cristalizou na viola barroca que as classes eruditas ainda cultivavam no séc. XVIII, a qual é objecto do tratado escrito em 1789 pelo português Manuel da Paixão Ribeiro, Nova Arte de Viola, onde é descrita como um instrumento armado com doze cordas em cinco ordens (afinação – mi, si, sol, ré, lá), sendo três duplas e duas, as mais graves, triplas.

As classes populares, com a sua tendência de imitar os costumes musicais da alta sociedade, vinham desde quinhentos cultivando também o instrumento, naturalmente de construção mais simples ou rudimentar, como nos é atestado pela obra de Juan Bermudo, Declaración de los Instrumentos Musicales, 1555.


Como frequentemente acontece, depois de as classes cultas terem abandonado a viola barroca (o que ocorreu nos alvores do séc. XIX, em favor da viola de cordas singelas), o povo continuou por muito tempo a tangê-la ao longo de gerações acompanhando a sua música de tradição oral e conseguindo assim, através da sua prática quotidiana, trazê-la até aos nossos dias.

O povo português chama viola ao instrumento de cordas dedilhadas, com caixa de ressonância em forma de oito, a que os restantes povos europeus chamam guitarra (esp.), guitar (ingl.), chitarra (ital.) e guitare (fr.).

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Arma correntemente com cinco cordas duplas, tendo já possuído doze cordas em cinco ordens, como já acima descrevemos para a viola barroca, de que era, aliás, como também dissemos, uma congénere popular.

O instrumento de seis cordas singelas (afinação – mi, si, sol, ré, lá, mi) é um descendente finissetecentista daquela outra viola, vindo a ser conhecido em Portugal por viola francesa, violão (sobretudo no Norte, para se não confundir com a viola propriamente dita, de cordas duplas, que ali se conservou até aos nossos dias com enorme vitalidade), ou, simplificadamente , viola, sobretudo no Sul, onde a viola de cordas duplas se perdeu mais cedo.
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Só de há alguns anos a esta parte é que sucedeu um estranhíssimo fenómeno, que está a alterar a nomenclatura deste instrumento de seis cordas singelas, passando a chamar-se-lhe guitarra em vez de viola, e erradicando-se assim uma designação que tinha uma consagração de quinhentos anos de história. Com efeito, alguns intérpretes da chamada música ligeira, acompanhados por jornalistas pouco conhecedores do assunto, apercebendo-se que nos círculos de música erudita portuguesa se começou, por meados do séc. XX, a chamar guitarra ao instrumento, ou então por simples estrangeirismo, começaram também a utilizar, não sem pretensiosismo e certa dose de saloiísmo, essa designação.

E passámos assim a ver, de há cerca de quinze anos a esta parte, alguns desses jornalistas e desses músicos tocadores de viola, acústica ou eléctrica, que anteriormente falavam em viola-baixo, violaritmo, viola-solo ou simplesmente viola, a utilizarem para todas essas realidades a palavra guitarra, quando, como todos sabem, este termo é reservado em Portugal a outro instrumento de mão, periforme, da família das cítaras, a guitarra portuguesa.

Voltando à viola popular portuguesa, a tal que é a correspondente popular da viola barroca e que chegou até nós com cinco cordas duplas, diremos que ela tomou, no Baixo Alentejo, o nome característico de viola campaniça, havendo notícias escritas e orais de que, no princípio do séc. XX, ainda ela se encontrava implantada por toda a província, desde o litoral até à raia de Espanha, e por algumas franjas do Algarve – v. a nossa obra Viola Campaniça, o Outro Alentejo. A origem do nome vem, inquestionavelmente, da sua radicação na zona do “Campo Branco”, geograficamente situada nos aros concelhios de Aljustrel, Ourique, Castro Verde e Almodôvar, que o povo designa genericamente e sem grande exactidão territorial por região campaniça.

A primeira notícia histórica que estabelece a ligação terminológica entre a viola alentejana e a região campaniça data de 1916 e é escrita por Bento de Oliveira Guedes de Carvalho Lobo, Visconde de Vila Moura, na Revista "A Águia". O autor de Terras do sul – cantos alentejanos descreve, com mescla de objectividade e poesia, a Feira de Beja, os pastores, o gado, os ciganos, os cantos populares. Já para o final, fala de forma espantosamente rica e factual da viola de arame: “Há ainda ali a viola de arame, viola campaniça como lá dizem, que ouvi à porta d’uma taberna, tangida por um cego. Não se imagina o entusiasmo da circunferência de lavradores que o ouvia e alternava – todos fixos da sua fisionomia indiferente, e quase granítica, de olhos opacos, lábios descerrando décimas, a chorar e a rir à viola a vida misteriosa de todos”.

Quando, pelos idos de 1983, 84 e 85, percorremos o Baixo Alentejo realizando a nossa primeira investigação de campo sobre a viola campaniça, localizámos alguns tocadores do instrumento, todos já de idade avançada, entre os quais cumpre destacar António Jacinto (do Monte das Figueirinhas), Manuel Bento (da Funcheira), Francisco António (de Ourique-Gare), Manuel Inácio Verónica (de Amoreiras-Gare) e António Emídio (da Aldeia de Palheiros). Hoje, encontra-se gerado um movimento de renascimento e entusiasmo em torno da viola alentejana, o que veio a causar o surgimento de jovens tocadores do instrumento, entre os quais Pedro Mestre e Carlos Loução, facto que é muito para enaltecer, atento o estado geral de desinteresse em que se encontra genericamente mergulhada a nossa música de tradição oral.

 

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