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Nunca foram domesticados, mas acabaram
por encontrar a extinção em estado selvagem em 1969. Integrado num
projecto mundial de reprodução em cativeiro, a Coudelaria de Alter
recebeu uma das raras manadas de 'prezwalski'
O garanhão sorve sofregamente o ar.
Tenta detectar os aromas que lhe chegam às narinas e relincha de
preocupação ao ver os vultos humanos que caminham na sua direcção. É um
cavalo de 'prezwalski' – a mesma raça que sobreviveu no deserto de Gobi,
na Mongólia, até 1969. O animal raspa as patas no chão, inquieto. Mas a
terra que lhe salta dos cascos não é areia do deserto asiático. É pó do
montado alentejano. Temendo uma ameaça desconhecida, o cavalo galopa em
direcção às três éguas e aos dois potros que constituem o seu harém e
obriga a manada a correr à sua frente. Quando se sente em segurança,
para lá da linha de água, pára e olha desafiadoramente para os
estranhos.
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Apesar do susto, nenhum perigo real os
ameaçava. Este pequeno grupo de cavalos está bem protegido, no interior
da Coudelaria de Alter, no Alto Alentejo. E todos os dias recebe os
cuidados de vários tratadores e biólogos.
"As três fêmeas e o macho chegaram em
Dezembro de 2001, enviados por um zoo inglês. E tiveram um período de
adaptação complicado, pois as éguas não aceitavam bem a presença do
garanhão. Agora corre tudo bem e já registámos o nascimento de várias
crias", diz Maria do Mar Oom, bióloga da Faculdade de Ciências de Lisboa
(FCL) e responsável, em Portugal, pela reprodução e conservação destes
cavalos raros.
No monte alentejano, a manada de
'prezwalski' refez a estrutura social que caracteriza os cavalos que
vivem em liberdade: um garanhão dominante, um grupo de fêmeas adultas e
os potros. São animais pequenos, pouco maiores que póneis. A pelagem é
baia, com crina erecta e as extremidades do focinho brancas. Estes
animais são autênticas relíquias vivas. Foram descobertos na viragem do
século XX e só existiam em estado selvagem – o Homem nunca tinha
conseguido domesticá-los. Daí que, segundo os investigadores, nada
tenham a ver com os seus parentes domésticos: "As raças que foram
domesticadas possuem 64 cromossomas, enquanto os cavalos de 'prezwalski'
têm 66. É a prova que nada têm a ver uns com os outros", explica a
bióloga.
Os cientistas ainda vão mais longe e
garantem que esta raça é sobrevivente dos cavalos primitivos,
imortalizados nas pinturas rupestres de toda a Europa e da Ásia. Para
suportar a sua teoria, apontam algumas particularidades que apenas
existem nos 'prezwalski' e em outras raças do tipo primitivo, como o
cavalo do Sorraia – a risca preta que atravessa o dorso, as zebraras nos
joelhos, as orelhas orladas a negro e a crina curta e hirta como as das
zebras. "São animais primitivos, que sempre viveram em estado selvagem.
E, desse ponto de vista, são valiosos para a ciência e para a história
natural do planeta", diz Maria do Mar Oom.
O problema é que, com a descoberta desta
raridade zoológica, despertou-se a cobiça humana e o valor destes
animais disparou. Coleccionadores de todos os cantos do Mundo viajaram
para a Mongólia em busca dos cavalos selvagens, que foram caçados a um
ritmo alucinante. Como os garanhões selvagens eram indomáveis e ninguém
conseguia tratá-los em cativeiro, as vitimas passaram a ser potros. O
número de exemplares foi-se reduzindo e, em 1969, foi capturado o último
animal selvagem – que tinha encontrado refúgio numa zona remota do
deserto.
Por ironia do destino, os principais
responsáveis pelo seu desaparecimento no estado selvagem acabaram por
salvar a raça da extinção total. Na década de 1970, só os parques
zoológicos possuíam estes animais. Treze cavalos apenas, que acabaram
por dar origem, através de cruzamentos muito seleccionados, aos cerca de
1500 'prezwalski' que existem actualmente na Europa e na América. As
várias manadas, distribuídas por vários continentes são geridas por uma
autoridade única, que decide que garanhão cobre que fêmeas e que cavalos
podem ter o estatuto de reprodutores. Portugal, através de Maria do Mar
Dom, concorreu a este projecto e foi aprovado. O zoo de Lisboa é a
entidade que se responsabiliza pela aplicação das directrizes mundiais e
a Coudelaria de Alter acolhe a manada e dá pastagens. O resultado não
podia ser melhor, como demonstram os nascimentos recentes. "As crias
poderão ficar cá ou serem enviadas para outros grupos. Dentro de algum
tempo, devemos intercambiar as éguas e o garanhão, para evitar elevados
graus de parentesco entre os animais", sublinha esta responsável.
Os níveis elevadíssimos de
consanguinidade são o principal problema da raça, que pode afectar a sua
sobrevivência futura. Mas os biólogos estão optimistas: "Estamos a
conseguir salvar a raça", afirma Maria do Mar Dom. E a prova está, de
novo, no deserto de Gobi. Em 1990, foram devolvidos ao seu último
habitat natural vários cavalos de 'prezwalski' nascidos em cativeiro.
Morreram alguns, mas os nascimentos compensaram as perdas. As manadas
selvagens adaptaram-se e, apesar do programa de reintrodução ainda durar
mais alguns anos, já ninguém tem dúvidas que o regresso dos 'prezwalski'
ao deserto é definitivo. E os cavalos nascidos na Coudelaria de Alter
estão a contribuir para esse sucesso. |