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Egas Salgueiro e a Empresa de Pesca de Aveiro – As minhas memórias

Navios Polivalentes

Quando a 8 de Fevereiro de 1974 o Sr. Egas Salgueiro me chamou para chefiar os Serviços Eléctricos da EPA, comecei de imediato a trabalhar em Viana, na construção dos Polivalentes. Os três navios, Murtosa, Pardelhas e Calvão, nome dado em homenagem às gentes destas povoações, foi uma ideia do Sr. Egas. Na altura, verifiquei que o Sr. Capitão São Marcos se afastou deste projecto, talvez por não acreditar nele. E a história haveria de lhe dar razão, pois os navios nunca foram Polivalentes. A mim, o que me entusiasmava eram os próprios Estaleiros, mais modernizados, e a tecnologia dos navios, que ainda hoje não conheço mais moderna: alternadores com regulação electrónica, sistemas de sincronização electrónica, sistemas de alarmes centralizados da Visicon, detecção de incêndios, etc. Apenas os Guinchos eram hidráulicos, o que para mim foi um erro. Muito mais ruidosos, viravam a rede a uma velocidade inferior a um guincho eléctrico e as facturas de manutenção punham a Empresa a "pedir”. Fizeram-se provas de mar em Viana e Aveiro, registados como construções 96, 97 e 98.

Estas três embarcações são navios a motor de casco em aço, para a pesca de cerco do atum e da sardinha e de arrasto pela popa, com redes de fundo, pelágicas e semi-pelágicas.

Vejamos as suas principais características.

Navio Calvão em actividade no Atlântico.

De comprimento fora a fora têm 61,40 m e de pontal ao convés inferior 5,10 metros.

A potência máxima de propulsão em regime contínuo é de 2.000 HP, fornecida por um motor diesel da marca “Fairbanks Morse” tipo 38 D 1/8, de 10 cilindros a 900 rpm, que permite navegar a 14 nós.

Para maior facilidade de manobra, apresentam um propulsor transversal de proa, permitindo atracagens ou afastamento do cais com muito maior facilidade.

Possuem quatro alternadores principais, dois de 380 KVA  e os outros de 250 KVA, accionados a 1000 rpm por motores diesel da marca Caterpilar.

O guincho de pesca é do tipo «combinado» para as pescas de arrasto (de fundo e pelágica) e de cerco (da sardinha e do atum). Dispõe de dois tambores para o cabo real de arrasto (2x3000 m de cabo de aço de 26 mm de diâmetro), dois para a retenida do cabo de cerco (2x2000 m de cabo de aço de 20 mm de diâmetro), dois tambores laterais auxiliares para as malhetas de fundo (2x250 m de cabo de 26 mm de diâmetro), dois cabeços laterais auxiliares para as manobras, dois tambores para o cabo de alar a rede de arrasto através do pórtico de vante e outro para o cabo de içar o saco através do pórtico de ré. A força de tracção máxima combinada, na espira média do cabo real, é da ordem das 12 toneladas a uma velocidade de 85 metros/min. O accionamento é  hidráulico, dispondo de freio e de embraiagem independentes para cada tambor, accionados hidráulica ou pneumaticamente.

Os espalhadores de cabo são automáticos e de accionamento hidráulico, com dispositivo de accionamento manual de emergência.

Uma central hidráulica com 2 bombas de 162 KW e 2 de 60KW alimentam todo o equipamento acabado de mencionar.

O peixe pescado sofre dois tipos de tratamento, de acordo com o seu tamanho. O peixe inteiro de maiores dimensões e reduzido a filetes de pescada ou de atum são ultra-congelados em túneis de congelação à temperatura de 45º negativos. A sardinha e o atum de tamanho reduzido é tratado em quatro tanques de salmoura. Todo o pescado, depois deste tratamento, é armazenado em porões refrigerados.

Os navios estão dotados de uma instalação de climatização de ar para alimentação de todos os alojamentos, da ponte, da cozinha, da despensa e do paiol de mantimentos.

Relativamente ao equipamento electrónico de navegação, estes navios foram dotados com o equipamento mais moderno existente na época.

Para um maior rendimento operacional, chegámos a ter quatro tripulações para os três navios, que tinham a sua base operacional na África do Sul, em Walvis Bay e em Cape Town. Enquanto três tripulações se mantinham operacionais, a quarta estaria em período de férias em Portugal. Deste modo se evitava as perdas de tempo e dinheiro com as deslocações ao nosso País.

Estátua de Bartolomeu Dias em Cape Town, na África do Sul. Ao fundo, a Table Mountain.

O navio “Calvão” teve vários incêndios: dois na África do Sul e dois em Espanha, (Vigo). Um deles obrigou-me a ir a Cape Town, cidade ligada aos Portugueses, onde existe uma praça com o nome de Bartolomeu Dias, que, em 1488, com uma armada constituída por três navios, dobrou o Cabo das Tormentas, designação mais tarde mudada pelo rei para Cabo da Boa Esperança. Cape Town tem a Table Mountain, com os seus 600 metros de altitude, caracterizada pelo cume plano e dobras que fazem lembrar tecido, dominando a baía da cidade do Cabo. Ao lado encontra-se o Signal Hill. Tal como o nome indica, é uma colina com 300 metros, que dava ajuda à navegação. Depois espraia-se a cidade por uma enorme planície. Vivia-se no tempo do Apartheid. Foi lá que vi os primeiros armazéns, à imitação do que hoje temos nos nossos ”Shoppings”. Tive sempre a ambição de ir a Cape Point, que fica a uns 60 Km para sul, para ver o “Cape of Storm’s”, denominado Cape Point, onde se encontra o Atlântico com o Índico. Mas é interessante, porque não é a sul a parte mais distante, como o Cabo das Agulhas, mas, historicamente, o Cape Point, junto a False Bay, foi chamado Cabo da Boa Esperança.

Juntamente com o chefe Camoesas, da EPA, e o Eng.º Delgado, da Mútua dos Pescadores, voámos para Joanesburgo, sem visto. Resolvido o problema, fizemos escala em Windhoek, na Namíbia, ainda não independente; e, finalmente, chegámos a Cape Town. Hospedámo-nos no hotel Herencraft, na baixa. O 19º andar era uma zona de Escritórios, onde  tínhamos o nosso Agente. O restaurante era no 32º, que tinha uma vista soberba sobre a baía.

O capitão Rui comandava o navio Calvão, que foi entregue às oficinas da Hesper, cujo encarregado era o algarvio Sr. Barraló. Em colaboração com a Lloyd’s, fez-se a necessária reparação.

Relativamente ao regresso, lembro-me de uma história interessante. Comprei um bouquet de flores para a minha mulher, pois na África do Sul, o ex-líbris são as “estrelitzias e as próteas”. Estas flores passaram sem problemas no RX do Aeroporto. Quando fui eu a passar, o alarme disparou. Veio ter comigo uma enorme mulher-polícia, que me fez tirar as chaves do bolso. Mas o alarme continuava a tocar. Comecei a ficar preocupado, pois trazia alguns Rands, com uns “clips” que me tinham sobrado e comecei a pensar se seria legal. Afinal, ao revistarem-me, descobriram-me no forro do meu casaco um isqueiro, quando eu nem sequer fumava! No regresso, ao sobrevoar Angola, por volta das 3 da manhã, pedi à hospedeira de bordo 3 uísques, porque fazia 34 anos. Estávamos em Junho. Nunca pensei “voltar” a Angola, depois da guerra. Eu, que fizera os meus 23 e 24 anos em pleno mato, estava agora em 1979 a celebrar anos num espaço que estávamos proibidos de sobrevoar, no tempo da guerra no Ultramar.

Ao fim de muitos anos, estes navios que andaram  na  pescada na África do Sul, Namíbia, e depois no Chile, passaram para a pesca do bacalhau no Atlântico Norte, zona onde, agora com 36 anos de actividade continuam a trabalhar superando as duras condições que esta modalidade exige. São navios robustos, de muito boa estrutura, e bem equipados.

Ilustramos esta crónica com duas fotografias, uma das quais nos mostra o navio Calvão em plena laboração no Atlântico.

 

 

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15-07-2015