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BOLORES

EICA 3 - Já lá vão 60 anos

Com o diploma do CURSO GERAL DO COMÉRCIO debaixo do braço; com trabalho assegurado na empresa de pesca onde me viria a fazer homem, a grande verdade é que, mercê do ânimo que me foi sendo incutido pelos meus professores da EICA, logo fui pensando em continuar os estudos.

Ponderando todas as alternativas, decidi que deveria fazer os três ciclos do ensino liceal de forma a matricular-me como voluntário na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O ideal seria poder matricular-me na Universidade ao mesmo tempo que os jovens da minha geração.

O Dr. António da Rocha e Cunha foi dos que mais me entusiasmou a seguir este rumo. Mas havia um óbice legal: como estudante-trabalhador só podia apresentar-me a exames do 1º e 2º Ciclos do Liceu depois dos 18 anos. E mais: só poderia fazer o 7º ano decorridos que fossem dois anos sobre os exames dos dois primeiros ciclos. E eu ainda não tinha dezasseis anos. Havia que esperar. Fui dando explicações; fui repartindo a actividade profissional pela empresa de pesca e pela Fábrica da Lixa, como ajudante de guarda-livros.

Ainda quando frequentava o quinto ano da EICA, os professores de Inglês e de Francês foram-nos dizendo que era intenção da Escola abrir cursos práticos dessas línguas e também de Alemão, com frequência nocturna, de modo a não prejudicar os nossos horários de trabalho.

E foi assim que eu me vi parte da turma que começou a frequentar, pela primeira vez, esses cursos já ministrados nos edifícios novos da Escola Industrial e Comercial de Aveiro, na então designada Avenida Salazar, hoje Avenida 25 de Abril, um quarteirão para sul do Liceu Nacional de Aveiro, também ele a funcionar em instalações que haviam sido inauguradas dois anos antes.

Quando olho para trás, revendo-me nos meus dezasseis frescos anos, parece que sinto a renascida alegria de ir estrear uma casa nova. Já lá vão sessenta anos. E parece que foi ontem…

Os tempos eram outros. Nós, os da EICA, sentíamos no pelo a sobranceria com que éramos olhados pelos alunos do Liceu. Estes seguiriam os seus estudos com os meios materiais que os faziam pensar que nos eram superiores. Mesmo os que não ultrapassavam o quinto ano do Liceu sabiam que tinham facilitado o acesso à função pública que, por esses tempos, conferia uma dignidade que hoje se esbateu. Nós não. Os da Indústria iam para as fábricas da região ou, se queriam e podiam continuar a estudar, faziam exames de admissão aos Institutos Industriais. Os do Comércio podiam concorrer também à função pública, aos Institutos Comerciais, mas, o mais normal, era enveredarem por uma carreira de empregado de escritório nas empresas ou nos bancos. As alunas da Formação Feminina podiam concorrer ao Magistério Primário e muitas o fizeram; outras, conseguiam alcançar lugares de professoras de Lavores.

Quando se olha calmamente para o passado, a certeza com que se fica é que as Escolas Industriais e Comerciais preparavam muito bem os seus alunos para a vida prática, garantindo a formação de profissionais muito competentes. A prova disso mesmo é que muitos de nós se afirmaram como comerciantes e industriais que deram origem a empresas de gabarito, nos mais variados ramos de actividade.

Voltando ao meu devir pessoal, logo que cheguei aos dezoito anos de idade, apresentei-me aos exames do primeiro e segundo ciclos do Liceu, só com a preparação que levava da EICA. Dispensei das orais. Manifestei junto do reitor de então, o Dr. Orlando de Oliveira, o desejo de fazer o sétimo ano logo no ano imediato.

Foi ele próprio quem fez por mim o requerimento ao Ministro da Educação de então. O deferimento veio já no segundo período. Precisei de explicações de Latim. Quem mas deu, por não mais de três meses, foi o ex-reitor, o Dr. José Pereira Tavares. Para as restantes cadeiras preparei-me sozinho. E na época de exames lá me apresentei no Liceu de Aveiro. Passei a tudo e, logo na primeira época, inscrevi-me na Filantrópica dos Estudantes-trabalhadores, matriculando-me no primeiro ano de Direito.

A primeira coisa que fiz foi comprar, numa ourivesaria da Baixa Coimbrã, o emblema da Faculdade em prata, que orgulhosamente coloquei na lapela do meu casaco. Antes de embarcar no comboio de regresso a Aveiro, fui tomar uma bica no café que ficava em frente à Estação. Estava lá um engraxador. Olhei para os meus sapatos e eles precisavam de ser limpos. Pedi-lhe que o fizesse. E ele disse-me: “É para já, senhor doutor!”. Acabava de ser promovido a um grau que nunca atingi por força do meu trabalho no sector das pescas industriais. De ajudante de guarda-livros passei a guarda-livros; depois, a procurador da gerência; a seguir, sócio-gerente. E nessa qualidade fui eleito pelos pares da Indústria para tudo o que havia na organização das pescas.

Quem se licenciou em Direito foi a minha saudosa Claudette, a mulher que Deus me deu, a mãe dos meus dois filhos. É que ela preparava-me as sebentas para eu estudar, sublinhando tudo o que considerava importante. E assim, por conta das minhas constantes ausências do País, no desempenho de funções que me foram sendo atribuídas no sector das Pescas, foi ela fazendo, por mim, o Curso de Direito e fez-se a advogada que eu, um dia, quis ser. Eu só cheguei ao quarto ano.

Certo dia, após o “25 de Abril”, o ensino técnico-profissional, tal como era exercido nos tempos em que frequentei a minha EICA, foi extinto. E, em sua substituição, surgiram as escolas secundárias com novas organizações de esquemas de ensino. Tudo em nome da democratização. Sinto que a intenção foi generosa. Mas tenho que reconhecer que a Sociedade que formamos continua a evidenciar enormes diferenças entre os seus componentes. Tratar igualmente o que é desigual não me parece saudável. E as alternativas que são oferecidas como meios correctores dessas desigualdades não me parecem conter, em si mesmas, remédio.

Em resumo: a generosidade bem intencionada não chega. Será que a democratização do ensino até agora perseguida chegará para dar resposta às enormes diferenças sociais que permanecem?  

A minha casa fica mesmo nas traseiras da ora ESCOLA SECUNDÁRIA MÁRIO SACRAMENTO. Este foi um homem bom que lutou pela liberdade e pela igualdade. Um homem que eu conheci bem de perto, foi meu médico e foi o marido da minha querida professora de Português, a Dra. Cecília Sacramento. Devo muito aos dois. A Escola que tem o nome de  MÁRIO SACRAMENTO tem estado a ser profundamente remodelada. Tenho lá três netos a estudar. E só dizem bem da Escola e dos seus Professores. Mas será que todos os seus colegas menos favorecidos materialmente encontram no ensino que lhes é ministrado a resposta para as suas carências efectivas?

Sinceramente não sei. Só sei que tenho saudades da minha EICA que me deu as ferramentas de trabalho que me permitiram ser o que sou.

Gaspar Albino
29-01-2016

 

06-02-2016