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BOLORES

Girão: o Amigo

L’amitié doit être une joie gratuite comme celles que donne l’art, ou la vie. /…/ L’amitié ne se recherche pas, ne se rêve pas,  ne se désire pas; elle s’exerce (c’est une vertu).

Simonne Weil, “ La Pesanteur et la Grâce”.

 

Com efeito, eu não procurei o Girão. Foram os caminhos da vida que nos puseram frente um ao outro. E foram os caminhos da vida que nos fizeram amigos.

Soube, na Filantrópica da Universidade de Coimbra, que tinha um colega voluntário de Direito que era professor primário na Costa Nova, praia vizinha de Aveiro. E fui ter com ele para o conhecer pessoalmente. Frequentávamos a mesma Faculdade, ambos trabalhávamos: ele, professor; eu, funcionário duma empresa de pesca. Logo no primeiro encontro, os problemas que tínhamos em comum como estudantes foram o primeiro cimento de uma amizade que se foi fortalecendo vida fora.

Antes de chegarmos à Faculdade, ambos tivemos que ultrapassar enormes dificuldades.

O Girão, filho de pequeníssimos lavradores de Cambra, Distrito de Viseu, logo a seguir à escola primária, mercê da insistência do seu professor para que continuasse a estudar, os seus pais matricularam-no, por força de carências materiais, no Seminário de Viseu, onde estudou durante alguns anos. Mas cedo o jovem se apercebeu de que não tinha vocação para padre, pelo que, depois, frequentou com êxito a Escola do Magistério Primário de Viseu. Foi então que conheceu a sua colega Silvandira com a qual viria a casar. Já professor primário, fez o terceiro ciclo dos Liceus e matriculou-se em Direito como voluntário.

O meu percurso foi diferente. O meu pai, quando pescador de dory no Bacalhau, naufragou. Foi para a marinha de comércio e voltou a naufragar. Depois, à entrada do porto de Nova Iorque, sofreu um acidente que o incapacitou para sempre. Tinha eu nove anos. Então, a minha mãe, com mais dois filhos para sustentar, começou a trabalhar de costureira a dias. E matriculou-me, enfrentando imensas dificuldades, na Escola Industrial e Comercial de Aveiro, onde concluí o meu Curso Geral de Comércio. Fui misturando essa frequência com trabalhos que permitiam complementar a economia familiar. Logo que terminei o Curso foi-me oferecido emprego, como ajudante de guarda-livros, na empresa de pesca onde viria a ser, mais tarde, sócio-gerente. Tive de esperar pelos 18 anos, era esta a exigência legal(!), para poder fazer o primeiro e segundo ciclo dos liceus numa só época de exames. Mercê de requerimento dirigido ao Ministro da Educação, elaborado pelo Reitor do Liceu, Dr. Orlando de Oliveira, foi-me concedida a possibilidade de fazer, logo no ano imediato, os exames da alínea do terceiro ciclo que me facultavam o acesso à Universidade. E aos 19 anos estava eu a matricular-me também em Direito. Como voluntário, claro; exactamente como o meu amigo Girão.

A frequência dos mesmos anos e a proximidade que nos unia permitiram um convívio frequente, que nos facultou recíproco enriquecimento.

Entretanto, com a passagem do tempo, fui-me transformando em empresário das pescas, com inúmeras deslocações ao estrangeiro e a eleição para lugares de dirigente nos organismos do sector. Essa mudança fez com que o meu curso de Direito fosse ficando para trás. Não cheguei a fazer todas as cadeiras do quarto ano.

E o Girão, entretanto,  concluiu o seu curso.  Concorreu à Magistratura do Trabalho e foi colocado em Castelo Branco como delegado do Ministério Público. Depois foi convidado para vir para Aveiro, convite que aceitou.

Um dia, estávamos ainda a viver os calores do post-25de Abril, vinha eu da Gafanha onde a empresa que eu dirigia tinha a sede, e o Girão, que passara a morar no Bairro da Gulbenkian, fez-me sinal para eu parar o meu carro, em frente da cadeia. Era a hora do almoço. Eu tinha integrado a vereação do Dr. Artur Alves Moreira e do Dr. Mário Gaioso. Vivia-se já o clima das primeiras eleições democráticas para as Câmaras Municipais. E o Girão atira-me de chofre: “Sabes que o ex-Presidente de Câmara Mário Gaioso me convidou para cabeça da lista do CDS às próximas eleições? Que me aconselhas?” Calmamente respondi-lhe: “Olha, Girão. Tu nunca estiveste metido na política local. És um jovem impoluto licenciado em Direito. Ninguém te pode “pegar” por nada. Aceita. Vais ver que ganhas.” Demos um abraço e cada um foi ao seu destino. E o Girão ganhou a Presidência da Câmara nas primeiras eleições democráticas municipais, realizadas em Aveiro, no post-25 de Abril.  Fiquei muito feliz. Aveiro ganhara um Cambrense que já queria muito à minha terra. Eu sentia que ele já era dos nossos.

O futuro veio a confirmar a minha convicção. A obra por ele realizada ao longo dos seus mandatos foi verdadeiramente notável. O tempo, à medida que passa, dá-nos uma perspectiva muito tranquila para garantir o seu mérito nas várias vertentes do seu múnus de autarca.

Quando entendeu que havia chegado o momento de deixar as lides de presidente de Câmara, candidatou-se a eurodeputado. E foi eleito, levando para Bruxelas a sua paixão pelas coisas do mar, doença que herdou da nossa terra de água que é Aveiro. Certa noite, recebi um telefonema do Girão. Estava a falar-me da Bélgica, ele que integrava uma Comissão das Pescas. E era sobre a  sardinha da costa portuguesa que ele queria saber o que eu sabia disso, como empresário das pescas.

Disse-lhe o que ainda hoje é minha convicção: a sardinha da nossa costa é volúvel como tudo.

Explico: há safras sucessivas de relativa abundância. E, de um momento para o outro, sem explicação plausível, a sardinha quase que desaparece da nossa costa. Fala-se muito de sobrepesca da espécie. Não creio que isso explique tudo. Falta-nos conhecimento científico, que até hoje não encontrei, para justificar essa volubilidade.   Estou a repetir o que então lhe disse.

O Girão era assim. Entregava-se de alma e coração a tudo o que considerava ser seu dever como político. Não tinha horários. E tinha um dom que só pertence aos eleitos: sabia empolgar quem com ele trabalhava.

Ele tinha o hábito de dar uma volta a pé, à noite, pelo nosso “bairro do liceu”. Era frequente, quando passava pela minha casa, telefonar-me para darmos dois dedos de conversa. Raramente entrava em minha casa. Mas eu, que já lhe conhecia o vício, saía para trocar ideias sobre a política do nosso País, da nossa Aveiro. Era verdadeiramente uma pessoa preocupada com o próximo. Sentia-se que era um democrata-cristão no sentido mais puro do termo, sem se ater à rigidez partidária. O seu mundo era muito mais rico do que essa rigidez.

Estive com ele dois ou três dias antes de nos deixar. Não resisti a dizer-lhe que o achava com muito mau aspecto e que deveria ir ao médico sem delongas. Triste, muito triste, balbuciou:

Estou muito mal…

E foi-se embora, sem mais. Sem mais e para sempre…

Gaspar Albino
Outubro de 2015

 

16-09-2015