A nossa estadia na Estação de Caminho de Ferro de Aveiro ainda
permitiu que eu levasse os circunstantes a arriscar, nessa manhã
chuvosa do já distante dia18 de Abril do corrente ano dedicado aos
Sítios e aos Monumentos, uma ida até ao arruamento novo que surgiu do
derrube de armazéns de retém onde eu, tempos idos, tantas vezes fui
levar e levantar encomendas que a CP se encarregava de transportar de
forma expedita de e para toda a parte, forma tão expedita como hoje,
que eu saiba, não há.
É que eu quis mostrar um belíssimo trabalho insculpido numa parede de
um antigo armazém da CUF que se mantém de pé. É um rosto conseguido à
custa da expulsão de cal e de cimento que o cinzel do artista Vhils
levou, em algumas áreas, até ao tijolo da construção desse armazém.
Foi um passeio curto, a aproveitar uma aberta do tempo, que nos
conduziu até ao belíssimo trabalho de “street art” que Vhils nos
deixou em Aveiro. É um rosto sofrido construído à escala da altura da
parede do armazém. Hoje sei, de ciência certa, que o trabalho foi
realizado pelo artista plástico Vhils. Mas na altura do dia dos Sítios
e dos Monumentos eu só desconfiava de que era este, também “grafiteiro”,
o autor da bem conseguida obra de arte que este grande artista nos
deixou em Aveiro.
Sei agora que o trabalho foi executado aproveitando uma sua vinda à
nossa cidade para participar numa sessão organizada pelo TEDex. Um
telefonema para a vereadora de então, a minha amiga dra. Maria da Luz,
bastou para dissipar a minha desconfiança e garantir-me que Vhils era
mesmo o seu autor.
Lembro-me que, na altura em que perorei acerca da “arte de rua”, terei
dito que temia pela possível vandalização do meritório trabalho e que
o mesmo mereceria ser retirado para lugar mais seguro para garantir a
sua perenidade. É um receio que mantenho. E, ainda que possa atraiçoar
o espírito com que foi feita esta obra de arte, continuo a desejar que
a mesmo possa vir a ser posta a bom recato, tal o seu mérito estético
que deve ser guardado para memória fu-tura.
Tive o cuidado de registar fotograficamente o rosto insculpido na
parede, não só para ilustrar este meu arrazoado, como também para
garantir premonitoriamente a sua leitura a todo o tempo desejável.
Isto que acabo de escrever fez-me recordar uma ida minha (e da
Claudette, minha saudosa mulher...) a Espanha para visitar, com maior
delonga, o seu triângulo árabe: Sevilha, que já conhecia de anteriores
visitas; Granada e Córdoba, ainda por descobrir. Estas duas cidades da
Andaluzia foram uma maravilhosa surpresa. De Granada guardo perene
memória da Alhambra, riquíssimo complexo palaciano e fortaleza, cujos
interiores são do melhor que eu conheço da arte islâmica. No seu
recinto está o Palácio de Carlos V, imperador que foi do Sacro Império
Romano-Germânico.
De Córdoba guardo uma impressiva ideia da sua Grande Mesquita,
reaproveitada como Catedral, que fica ao longo da sua Ponte Romana.
Quando dessa visita, sob um tórrido calor do pino do verão, tendo
percorrido esta última cidade, soube que ela era gerida por uma câmara
comunista desde há alguns anos. Uma coisa que me impressionou muito
favoravelmente foi o facto da edilidade, para evitar a conspurcação
grafiteira dos prédios da zona urbana, ter disponibilizado, em lugares
estratégicos, painéis onde os artistas de rua podiam livremente
plasmar as suas pinturas.
E a verdade é que esta disposição camarária era respeitada, já que não
vi, nessa visita, nenhum prédio, público ou privado, vandalizado.
A revista do Expresso, de 15 de Agosto último, publicou uma entrevista
com o artista plástico que usa mostrar-se sob o nome de Vhils. O tal
Vhils, autor do rosto que continua na parede do armazém da CUF,
próximo da nossa Estação de Caminho de Ferro. Essa entrevista é um
documento importante para quem quer saber mais deste jovem de 28 anos
que se assume como um artista que pretende usar a sua arte como “arma
ao serviço das comunidades esquecidas, dando rosto à exclusão social,
das favelas do Rio de Janeiro até à China”. O seu trabalho pretende
ser o de um activista que quer dar voz à sua geração que, pela sua
óptica, é tão esquecida: uma “geração desprezada, das famílias
fragmentadas, forçada a deixar o país por falta de oportunidades”.
Impossibilitado de entrar em Belas-Artes em Portugal, emigrou para se
formar na reconhecida Saint Martin’s School, de Londres. Pelo texto
introdutório desta entrevista fiquei a saber que a revista “Forbes” o
considerou como sendo um dos principais talentos no mundo das artes
com menos de trinta anos. E, no passado dia 10 de Junho, Dia de
Portugal e das Comunidades Portuguesas, foi condecorado pelo nosso
Presidente da República que o ordenou cavaleiro da Ordem Militar de
Sant’Iago da Espada. Ainda nessa entrevista Vihls afirma-se como
artista com uma leitura de esquerda, tendo-se questionado se deveria
ou não aceitar a condecoração que lhe foi imposta pelo Professor
Cavaco Silva.
E que a aceitou, depois de difícil debate em foro íntimo, pois a
entendeu como reconhecimento do nosso País a um jovem, ele, Whils, de
algum modo representante de toda a sua geração, a tal “geração mais
qualificada de sempre que se vê forçada a emigrar por falta de
oportunidades”. A entrevista foi conduzida pelo jornalista Nelson
Marques, do Expresso, em São Miguel, nos Açores. Vhils, de seu nome
Alexandre Farto, aproveitou essa sua ida para participar no festival
de arte pública Walk & Talk e para se deslocar a Rabo de Peixe,
localidade de pescadores que jamais esquecerei pois foi lá que eu
senti a mais profunda pobreza, moral e material, neste meu peregrinar
por Portugal, enquanto responsável LIONS.
Vhils conseguiu converter um moribundo barco abandonado em peça de
arte, por ele assinada, garantindo-lhe um futuro que, doutra feita,
não teria. O património artístico de Rabo de Peixe ficou enriquecido.
Pessoalmente, não gosto da chamada “street art” sempre que ela nos
aparece, selvaticamente, em edifícios públicos ou privados. Mas
aprecio-a, e até a louvo, quando ela é utilizada para tornar
provocadoramente “agradáveis” paredes de zonas degradadas.
Sinceramente, também não gosto de ver as composições dos comboios
transformadas em enxovalhos.
Mas os trabalhos de Vhils são diferentes. A parede do armazém da Cuf,
que mais parece abandonado, junto da nossa Estação de Caminho de
Ferro, tem um meritório rosto que merece, repito, ser preservado.
Posso estar a atraiçoar o espírito “grafiteiro” com este meu
arrazoado. Desconfio bem que sim… Mas, paciência; sou deste modo e já
estou velho para mudar.
Gaspar Albino
Setembro de 2015 |