O terceiro episódio que eu vivi,
relacionado com a Estação da CP de Aveiro e que me marcou para sempre,
tem muito a ver com o segundo naufrágio do meu pai Manuel.
Isto de se ser um homem do mar,
um marítimo, não é vida fácil. Eu andei muitas vezes no mar e até com
mar muito mau. Mas nunca “andei ao mar” como andou o meu pai.
Nasci no dia 21 de Agosto de
1938, ano em que o meu pai naufragou pela primeira vez nos mares da
Terra Nova, sendo ele marinheiro-pescador do lugre “Santa Regina”. Eu
teria meses quando o naufrágio deste bacalhoeiro aconteceu.
Um ano depois, eclodiu a
segunda Grande Guerra Mundial que foi um conflito militar global que
durou de 1939 a 1945, envolvendo a maioria das nações do mundo —
incluindo todas as grandes potências.
Tenho perfeita consciência, pelo
que a minha mãe Mariazinha me foi contando nos anos da minha meninice,
de que o meu pai Manuel foi mobilizado para prestar serviço na Armada
Portuguesa, na Base Naval do Alfeite, nos princípios dessa Guerra. Com
a ida do meu pai para Lisboa, a minha mãe acompanhou-o, ficando a
viver num quarto arrendado com direito a uso de cozinha e de quarto de
banho, na rua da Lapa. Da janela do terceiro andar da casa
avistavam-se os telhados do Convento da Trinas e, lá para o fundo,
galgando o casario, descobria-se uma nesga do Tejo.
O meu padrinho de baptismo,
Alpoim de seu nome, irmão de minha mãe, também foi mobilizado para
prestar serviço militar no arquipélago dos Açores.
Eu fiquei sempre a viver em
Aveiro com a minha avó Joaninha. Primeiro, na rua de Gustavo Ferreira
Pinto Bastos; depois, na rua de Ílhavo. Só uma vez fui a Lisboa, nessa
fase da minha vida. Lembro-me, perfeitamente, de dizer,
constantemente, à minha mãe que queria regressar à Fonte dos Amores
para casa da minha avó.
Há memórias que guardo desses
tempos da II Guerra Mundial e que me marcaram profundamente. A minha
mãe veio sempre a Aveiro, a casa de sua mãe, a avó Joaninha, ter os
seus filhos. Lembro a noite em que o meu irmão José Luís nasceu. Eram
5 horas da manhã, Janeiro, noite cerrada. Acordaram-me e fui ao quarto
da frente que dava para a sala da rua Direita. Ao lado da minha mãe
estava um bébé a dormir, muito sossegado. Era o meu mano Zeca.
Dessa casa da rua Direita,
oficialmente rua dos Combatentes da Grande Guerra, lembro ainda as
fitas de papel transparente, gomado, que foram colocadas nas janelas,
para evitar que os vidros se espalhassem em caso de explosão. Mais me
recordo do “galena” construído pelo meu tio Coríntio que nos permitia
ouvir o noticiário da guerra pela voz do locutor da BBC, o aveirense
Fernando Peça. E tudo isto debaixo de um cobertor de papa para que os
germanófilos, que os havia, não detectassem quem escutava as notícias
dimanadas de Londres, referentes aos aliados.
Ainda vivia a minha avó na casa
da Rua Direita para a qual se entrava pela rua de Gustavo Ferreira
Pinto Basto e lembro-me com enorme nitidez do desfile das tropas que
regressavam dos Açores a desfilar garbosamente em frente ao Recreio
Artístico a caminho do Quartel de Infantaria 10. Essa nitidez resulta
do facto de eu ter sido mordido pelo cão que acompanhava a tropa.
Estava em pé, sem fazer mal a uma mosca e, zás!, o cão filou-me uma
perna e eu caí batendo com os queixos na soleira duma porta. Não sei
como, mas trilhei a língua que se fartou de sangrar. Nunca mais
esqueci esta cena.
Lembro-me das bichas que se
formavam por causa do racionamento de bens alimentares durante o
período da guerra. Era eu, pequenito, que ia com as “senhas” que
cabiam ao agregado familiar da avó para as bichas que não tinham fim.
Logo que acabou a guerra, o meu
pai foi desmobilizado da Marinha. Nunca mais “foi ao bacalhau”. Optou
pela marinha de comércio. E passou a andar embarcado num navio de
carga, o “Panchito”. A minha mãe com os meus irmãos, entretanto
nascera a minha irmã Joaninha, continuava a viver em Lisboa, porto de
armamento do navio onde andava o meu pai.
Frequentemente, quando o meu pai
estava em viagem, a minha mãe vinha pra casa da avó Joaninha, em
Aveiro. Certo dia, teria eu os meus oito anos, quando cheguei da
escola primária, dei com a minha mãe derramada em lágrimas. Ela ouvira
na rádio que o “Panchito” tinha ido ao fundo, durante uma tempestade
no Golfo da Biscaia. Mais acrescentou, com a voz entaramelada, que
dezoito, dos trinta e três tripulantes do navio, tinham morrido. E não
sabia nada quanto ao meu pai. Passados dias, recebeu-se em casa um
telegrama vindo do armador do navio. O meu pai Manuel tinha sido um
dos que se salvara. Estava num hospital francês, após ter sido salvo
do mar encapelado por uma vedeta daquela nacionalidade. Regressaria a
Portugal logo que estivesse em condições físicas que o permitissem.
Passados uns trinta dias sobre a
data do naufrágio, recebeu-se novo telegrama do armador. O meu pai
chegaria a Aveiro vindo de comboio. Fui com a minha mãe à Estação de
Caminho de Ferro de Aveiro esperar o meu pai. Lembro-me que seria por
volta do meio dia quando o meu pai saiu do comboio. Trazia vestido um
sobretudo da fazenda castanha, muito elegante, de gola larga à moda da
época. Muito mais tarde, já homem, cheguei a usá-lo. Os olhos azuis do
meu pai (olhos de água…) ressaltavam da sua face muito magra e
descorada. A minha mãe chorava de alegria. Voltava a ter o seu homem.
Ele abraçou-nos. Quase que não falou nos primeiros momentos da
chegada. Eu via que ele também estava comovido. Devagar, regressámos à
casa sempre certa da avó Joaninha.
E, pelo caminho, o meu pai
foi-nos contando como naufragou. O “Panchito” fora apanhado por uma
tempestade tremenda. O “mar era mais que muito”, com ondas muito
cavadas. E o navio galgou uma vaga e logo outra deixou o navio sem
água a meia nau, no seio dessas duas vagas.
O meu pai estava no convés com o
imediato quando se apercebeu de que o casco do barco começara a
ranger; subitamente, o navio começou a partir-se ao meio. O meu pai e
o imediato saltaram para vante e, agarrados a uma tábua do convés,
viram-se a flutuar nas ondas que os fustigavam. O mar invadiu a casa
das máquinas e a parte da ré do navio foi pelos ares, levada por
tremenda explosão. Os que estavam para vante salvaram-se. Os que
estavam para a ré morreram. O meu pai e o imediato aguentaram o mar
revolto agarrados à tábua do convés durante mais de um dia até que
foram salvos pela tal vedeta da guarda costeira da França. Quase sem
pele nas costas, o meu pai esteve num hospital francês durante cerca
de trinta dias.
E cá estava ele a salvo, a pisar
a terra firme do largo da nossa Estação da CP, ali à frente dos meus
olhos de menino esmagado pelo horror dos factos que o meu pai acabara
de contar.
Mal sabia eu que, homem feito, viria a dirigir uma empresa de pesca de
bacalhau e do arrasto costeiro. Coisas que o destino tece. Mas, graças
a Deus, durante mais de trinta anos, nunca nenhum dos homens que
embarcaram nas unidades da empresa cuja responsabilidade me cabia
sofreu mortalmente por força de azares da sorte do mar…
Gaspar Albino
Agosto de 2015 |