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BOLORES

VIVÊNCIAS QUE A NOSSA ESTAÇÃO DA CP ME FAZ RELEMBRAR

Uma aventura da meninice no lugar de Sá

Eu teria os meus oito anos quando se me encasquetou na cabeça que tinha de ir a Sá, a única parte da cidade de Aveiro que eu ainda não conhecia. Havia várias razões para tal. A primeira, porque era longe da casa da minha avó Joaninha, o número 11 da então Rua de Ílhavo, mesmo em frente ao desaparecido posto da Polícia de Viação e Trânsito, corpo de polícia que os tempos também se encarregaram de “arrumar” na actual Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana. A segunda, e talvez a mais importante, porque era uma parte da cidade que a minha avó considerava que não oferecia muita segurança para uma criança da minha idade. Não pensava eu assim pois que já desde os sete anos usava óculos, o apêndice que, permitindo-me ver adequadamente, me conferia, aos meus olhos de ganapo, uma certa autonomia. É engraçado: mas eu, ainda hoje, sem óculos, considero-me nu. Coisas que ficam desde a meninice e nos acompanham vida fora.

Certo dia duma manhã que não posso precisar, já sem ter de ir para a escola e na ausência de qualquer outra obrigação, decidi partir para o quartel de cavalaria que ficava na Vera Cruz e que eu sabia que ficava paredes meias com o bairro de Sá. Pelo canal de São Roque eu já tinha ido anteriormente até à Mina e também até à Igreja das Barrocas. Mas entrar em Sá é que eu nunca tinha feito. E entrei. Era um emaranhado de vielas, de travessas, de becos, com casas, quase todas elas térreas, muito humildes e muito antigas. Diria até que algumas, muitas, mais pareciam ruinas.  Nos quintais que se percebiam do lado de fora vislumbravam-se casinhotos ligados uns aos outros. Seriam as “ilhas” de que tinha ouvido falar. As pessoas que encontrei eram todas já de idade. As crianças, poucas, que vi a brincar, andavam descalças e com roupas muito sujas, diria mesmo andrajosas. Lembro de me ter perguntado como era possível haver na cidade de Aveiro um bairro com aquele aspecto tão mau. Percorri o autêntico dédalo em que me tinha metido o mais que fui capaz. Digo bem: o mais que fui capaz, pois que, passada que foi mais de uma hora naquele labirinto, queria sair e já não atinava com o rumo certo para a rua do quartel de cavalaria por onde tinha entrado. Lembro-me, como se fora hoje, que comecei a ficar muito nervoso, mesmo com medo. Para além dos gritos e berros das poucas crianças que encontrava só ouvia os silvos dos apitos de comboios. Bom sinal este o dos apitos. Se eu fosse atrás do seu som, à medida que ele fosse aumentando, eu estaria caminhando no sentido da linha de caminho-de-ferro, logo, da estação da CP. E daí eu já sabia o caminho de regresso até à Fonte dos Amores, até à casa da minha avó Joaninha. Poderia ter pedido ajuda a qualquer adulto que encontrasse, mas o medo falava mais alto e de tal não fui capaz. E foi atrás dos apitos frequentes de comboio, cuja intensidade ia aumentando, que eu cheguei ao passo-nível de Esgueira. Daí à estação foi um pulinho. Já estava em terreno conhecido. Quando cheguei a casa, respirei fundo. Daquela aventura já me tinha livrado.

Foi esta história que eu vivi que contei aos convivas que nos ouviam no largo da estação.

É claro que não me fiquei por esta narrativa. Sobre Sá, hoje, sei muito mais para além daquilo que os meus olhos viram. E tudo o que sei, tudo o que fui aprendendo, foi o que também transmiti aos que me ouviam.

Quantos aveirenses saberão que Sá, o bairro que eu conheci em criança e do qual já quase nada existe, foi um enclave administrativo de Ílhavo? Julgo que não serão muitos.

Pois é verdade. Segundo um texto manuscrito de José Ferreira da Cunha e Sousa, transcrito para letra de forma pelo saudoso Dr. Ferreira Neves e publicado no nº 24 de Dezembro de 1940 do Arquivo do Distrito de Aveiro, Sá foi  uma aldeia suburbana da nossa cidade que, “por uma das muitas anomalias que se notavam na antiga divisão territorial, pertenceu ao concelho e julgado de Ílhavo. Tinha um juiz de vintena ou pedâneo, com seu escrivão.” Ainda segundo o mesmo texto “a última casa da cidade era o convento de frades do Carmo/…/; e o das freiras franciscanas do convento da Madre de Deus, que estava no local onde hoje se acha o Quartel (da Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana, acrescentamos nós), já era da jurisdição de Ílhavo”. Socorrendo-nos do mesmo texto, este lugar de Sá pertenceu a Ílhavo até 1835, havendo ali “muitas tabernas que vendiam vinho em grande quantidade, por ser muito mais barato do que o vendido na cidade, e isto pela razão de diferença do imposto de consumo que em Ílhavo era muito menor. Em consequência, famílias da cidade dali se sortiam e Sá era muito frequentado à noite e nos dias feriados por todos os devotos de Baco, sendo por isso frequentes ali as desordens e os malefícios; os empresários destas tabernas eram negociantes da cidade.” /…/ “Os limites deste lugar pelo lado do nascente eram os mesmos que hoje (então) dividem as freguesias de Esgueira e Vera Cruz, pois que o lugar, conquanto pertencente a Ílhavo, no civil e criminal era pertença da freguesia da Vera Cruz.”  

Hoje, do bairro de Sá de outros tempos, com efeito, já quase nada resta. A cidade mudou. Sá/Barrocas é a designação actual desse espaço que se alargou. E por todo o lado se pode andar com afoiteza e sem temor. “Graças a Deus”, como dizia a minha avó Joaninha e como eu repito, com o devido respeito.

Gaspar Albino
Agosto de 2015

 

16-09-2015